Coletânea memorável escrita por Maria Lua


Capítulo 1
A amada do gato




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Amélia passa muito tempo em casa, é claro, afinal os seus pais trabalham muito. A sua babá não era ruim – sendo, às vezes, quase uma cúmplice. A sua casa tampouco lhe desagrada, tão confortável quanto podia ser.  Tinha a sua televisão, vários brinquedos, livros e, principalmente, Bartolito. Esse era o seu gato. Um daqueles malhados, sem raça pura, com uma fita enrolada no pescoço. Seu nome, o da vez, já que a garota vivia mudando, veio de um filme que ela gosta muito, onde uma duas tartarugas apaixonadas tem de ir um em busca do outro, depois que Manuelita, a tartaruga namorada de Bartolito, voou em balão para longe no meio de uma tempestade, ficando um tempo perdida e sozinha nos céus. Amélia sempre considerou seu gato um amante nato, afinal estava sempre na janela, olhos semicerrados e sorridentes, ronronando. Era um ronronar tão suave e baixinho que apenas a sua amada podia ouvir – a lua! A lua, apelidada de Manuelita por Amélia.  

Para ela era muito estranho ver seu gato ir, toda noite, para a janela. Seus pais dizem sempre que, quando começaram a namorar, se encontravam nas janelas de suas casas do interior. Isso era namoro, é claro, mas não para Bartolito! Por que seu gato não via que seu amor era improvável? Ela tentou lhe contar, bem devagar, que eles não ficariam juntos por causa da distância. A sua avó sempre dizia que o homem só chegou a lua no século passado, e mesmo assim foram poucos. É claro que tinha aquela cadela que foi até lá, a Laika, mas Bartolito era um gato. A cadela era astronauta, enquanto seu gato era apenas folgado. Não o colocariam em um foguete nem que o mundo dependesse disso. 

Vez ou outra, antes de seus pais chegarem em casa, ela ficava na janela junto ao gato. Ele costumava fechar os olhos, como se recebesse o abraço das luzes lunares. "Pobre Bartolito...", era o pensamento de Amélia ao abraçar o amigo. "Ela está tão no alto, e observa tantas pessoas, tantos bichinhos... Nem deve saber que você existe", e ali ficavam. Noite seguida de noite e seu gato, que dormia durante o dia, deitava na janela, focinho espremido na grade, bigodes ao vento, e uma cauda inquieta. Isso dava um aperto no coração da menina... Por que para uns era tão fácil encontrar o amor mas tão difícil conquistá-lo? Por sorte, segundo a mesma, ela tinha senso o suficiente para saber que tipo de amor lhe serve ou não. Jamais se deixaria encantar por algo que a fizesse sofrer a tal da desilusão. Chega para lá! Distância.  

A sua amiga da escola, Olívia, passou por isso. Ela era apaixonada por um ator. Um tal de Brad sabe-se lá das quantas, pelo que se lembra. Ele nem falava sua língua! Falava inglês, era famoso, adulto e casado. Imagine só! Jamais iria querer gostar de alguém assim. Por que sonhar tão alto? Por que não gosta do Pedrinho, Joãozinho, Paulinho? Eles também são da escola, e são bem legais. Mas um ator? A lua? Sem chance. Seus pais é que são sortudos por terem se encontrado assim, tão facilmente. Para ela ia ser assim também. Um vizinho, talvez, ou um colega de trabalho. Ou, quem sabe, alguém que faz mercado no mesmo lugar que ela? Mas algo possível. Pé no chão. E quando se apaixonar, vai ser para casar. Bobagem pensar em namorar com a lua quando se sabe que, considerando que ela te note, jamais daria certo. Nem um abraço poderiam dar, quanto mais um beijo. Os filhos seriam estrelas com orelhas e bigodes?  

Houve um dia, porém, que algo estranhíssimo aconteceu. Amélia saiu do banho e percebeu que seu quarto estava mais escuro que o normal. Assim que aproximou-se da janela percebeu que a lua não tinha aparecido, e sequer estava chovendo. Rapidamente foi atrás de seu gato, na habitual varanda.   

"Ah, Bartolito, não fica assim...", começou a lamentar ao ver que ele estava lá, deitado, cabeça erguida. Será que estava esperando a lua aparecer? "Hoje ela não vem. Talvez nunca mais venha. Eu te disse, eu te disse! Não se pode amar alguém tão difícil assim. A lua é a maior celebridade que existe, é claro que ela tem coisas mais interessantes para fazer do que conversar com você", dizia enquanto acariciava seu animal. Ele levantou para enroscasse nela, flagelando sua cauda no rosto da amiga. Logo, depois de se esticar, voltou para a posição anterior, olhos voltados para o céu.   

A sua Manuelita havia ido embora, voado de balão, como no filme. Ela queria muito mais que um mundinho pequeno, pensou Amélia, e voou em busca de coisas boas o suficiente. Ela sabia... Essa história já era batida. Ela sabia que seu pobre gato ia se magoar, e o dia tinha enfim chegado. Abraçou seu amigo bem forte.  

"Eu estou aqui com você. Não importa se a lua não te ama, gatinho, pois eu amo", disse. Foi então que percebeu. Ela o ama tanto que não conseguia pensar em motivos para a lua não amá-lo também. Tão dócil, quieto e devotado. Revoltou-se com a ideia de que alguém poderia dizer que ele não é bom o bastante. A lua! Quem ela pensa ser? Uma bolota cheia de purpurina, coberta de manchas e completamente solitária. Deve haver um motivo para ela não ter amigos, não ter ninguém ao lado. Se o Bartolito a ama significa que ela está em dívida com ele. Ela deveria agradecer. Quem precisa dela? Já há eletricidade o bastante para torná-la inútil. E disse tudo isso ao gato. Ele não deu bola, é claro, encegueirado pelo amor platônico. Ela não viria hoje, Bartolito, desista. Ela repetia diversas vezes, mas ele a ignorava, sorrindo.  

Ele sabia de algo que Amélia não sabia? Será que eles – a lua e o gato – tinham trocado, secretamente, juras de amor? Por que ele estava tão otimista depois de tudo que ela disse? Ainda mais chateada, saiu batendo o pé. "Se ele quer sofrer, é problema dele! Só quis ajudar", resmungou para a sua babá que, desentendida, deu risada da menina e seguiu com o seu celular. Amélia pegou suas bonecas de pano e começou a brincar por um tempo, mas logo sua mente estava longe. Ela invejava esse amor de Bartolito. Ele tinha alguém, apesar dela não merecer, mas tinha alguém. Sonhava com a lua e acordava ansioso para vê-la novamente. Ah, a lua... Se soubesse a sorte que tem. A menina queria que, um dia, alguém como seu gato se apaixonasse por ela. Com certeza não vacilaria como a lua fez! Iria agarrar esse amor e levar amarrado em seu balão para Paris, longe de tudo que interrompesse esse amor.   

E assim ficou sonhando durante a noite quase toda. Seus pais chegaram, ela escovou os dentes, e lá estava seu gato, na janela. Quando estava deitada na cama, olhos fechados, despertou. Uma luz invadiu suas pálpebras, que foram obrigadas a se abrir. A lua! Correu para a janela e viu algumas nuvens se afastando umas das outras, dando espaço à linda e esplendorosa lua. Pôs a mão no queixo, cotovelos no parapeito, e sentou. A luz, pura e cintilante, a deixou aliviada, já que seu gato não estava mais sozinho, mas a única coisa que passava em sua mente é que Bartolito estava certo o tempo todo. Adorava a imagem que sua imaginação formava de seu sorriso ao receber o distante abraço de sua amada. Devem estar conversando. Agora Amélia entendia o pensamento dos dois. É algo tão impossível de dar certo, mas é tão bonito, e ele a ama tanto... Não tem como não ser recíproco. Era um namoro tão complicado, e seu gato sabia, mas eles dariam um jeito. Quem se ama dessa maneira arruma um jeito, independente das nuvens ou qualquer outro obstáculo. Eles dariam um jeito.


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