Tempestades de um espinho que ansiava virar flor escrita por Shiori


Capítulo 8
Pelo resguardado bem da humanidade, trancafiando devaneios escurecidos.




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O café perdia a quentura, próximo ao portal que dava acesso à rota com inacabáveis folhas em branco, dispostas a serem preenchidas com mais conversas e momentos partilhados contigo. Fracionada, parte de mim debatia-se para seguir em frente. A  contrária alegava não conter sentido, encerrando prontamente o caso.

Desabafava perante essa minha inquietude, embebendo a garganta com mais e mais goles da bebida já fria. A história tem se estendido a tanto tempo que o piano da alma reconhece todas as notas, agudas e graves, de cor.

Compartilhamos de uma pequena caixa de momentos. Instantes recheados por aflição, entusiasmo, pesares e espasmos, partilhados dentre todas as infinitas peças que compõem os quebra-cabeças carregados por cada um de nós.

Houve algum tempo em que acreditava no amor. Abria os braços, permitindo que cada uma das infinitas flechas do Cupido penetrasse aonde for, bem fundo, propagando resplandecentes filmes de palavras, instantes e recordações.  

Ou é o que parecia ser. Lastimável que cada segundo envolvendo nós dois levava consigo a pontada de melancolia que desacelera, pausa, e cessa...

Sinto muito.
Foi o que você me disse, na véspera do que antecederia o fim de tudo o que havíamos conquistado.

Sim, eu sei que você sente. Sei que você sente muito. Que sente na alma e na pele, e que às vezes essa vontade até tem vontade própria de explodir.

Aquele pequeno instante anunciava algo além de palavras: mostrava que, caso nossa sincronizada dança continuasse, provavelmente cairíamos os dois com ambos os pés - e corações - irreparavelmente danificados.

Mas seu sinto muito conduzia a um significado além.
A princípio não entendi o que te motivou a dizer isso. Era claro como a luz da lua irradiando em meio a um campo, que os sentimentos que nutria em si eram os mais reais.

Na noite seguinte, voltava para casa. A tempestade caía, se despedaçando contra o solo ao meu redor e refletindo imagens difusas nas poças de água que se propagavam pelas ruas.

Um rastro molhado delatava o trajeto dos pingos da roupa ensopada que acomodava meu corpo. O breu noturno que envolvia os cômodos frios era salpicado com o soar das trovoadas e os flashes de luz dos raios através das pequenas frestas nas cortinas das janelas.

Aquela noite seria a última em que trocaríamos tão afetuosas palavras.

Uma única vela acesa ao lado da pia acompanhava urrares reprimidos. O calor ardente da água sendo despejada em cheio sobre a pele glacial se assemelhava à explosão cortante de dezenas de granadas irreversivelmente agarradas ao meu corpo.

Rasgando as memórias, a chama presente em cada gota penetrava os confins da pele e entorpecia os neurônios de minha mente. A febril quentura da água enfraquecia cada grão de emoção e humanidade que lutava revoltosamente para continuar residindo em minha morada.

E o vagaroso ritual de purificação que parecia travar os ponteiros do tempo findou-se, entregando-me um único presente: a melancólica sensação de ter acontecido depressa como a tormenta daquela noite.

Restava apenas silêncio, e a solidão acompanhada dos passos vazios por dentre os cômodos negros.

É complicado transmitir em palavras a relação que temos.

Me intriga o quanto se assemelha às profundas ligações espirituais, cuja longínqua faixa do tempo data-se tão ancestral que não se pode descrevê-la mais.

A luz esbranquiçada dos monitores por um instante turvou minha visão. Enquanto procurava por ti, notei a capa avermelhada que havia se propagado em minha pele. Lembrança do calor, posto que é chama.

Trocamos algumas palavras. Ainda lembro-me de sentir seu rígido espírito fragilizando-se por inteiro, diante da mudança de ventos que se prosseguia.

Tais registros de nossa dolorosa conversa, por segurança, já não me estão mais acessíveis. Contudo, levo comigo a certeza de que a resolução daquele dia foi a melhor forma de saltar de um assombroso trem que nos transportava mais a tortura que felicidade.

E hoje, ainda levo comigo sua amizade. Sinto-me curiosa em saber como está, ou o que anda aprendendo. No entanto, porto também a certeza da precaução que a doce árvore que cultivamos, juntos, não mais terá a liberdade de estender suas raízes além do território que lhe é permitido.

Apenas busco o melhor a você (e, de igual modo, a mim).


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