Tempestades de um espinho que ansiava virar flor escrita por Shiori


Capítulo 21
Naquela madrugada, dançamos juntas em meio à rubra tinta em nossos corações.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/696736/chapter/21


Os anjos estão cantando nesta noite. Os anjos cantam uma melodia suave.

A lua ilumina as velas que acendem, e ascendem a luz às longas paredes do cômodo frio. Serpenteiam as chamas, vibrando e dando forma aos pensamentos humanos, em meio aos coreografados movimentos descritos pelas sombras dançantes. A presença da luz materializa a rubra tinta, que segue desprendendo-se progressivamente das entranhas interiores da pele violada. A figura humana assistia-a, como que paralisada pelo encanto tranquilizador que havia em perceber traços de seu líquido vital brotando através das camadas externas de sua pele.

Era seu sangue.

Uma a uma, gotas rubras eram formadas. Elas se desp(r)e(n)diam e iam atravessando o corpo trêmulo, chocando-se contra as pétalas no interior do íntimo casulo, parcialmente aberto. As pétalas, pesadas, mergulhavam na poça formada pelo líquido tingido, que intima e profundamente as abraçava, sendo diluídas pelo pequeno oceano rubro. Um cântico suave rompia o plano consciente, sendo esboçado pela voz doce, ainda que trêmula e fatal.

Flutuava, estática, em sua piscina de sangue.

Diagramas distintos e multicoloridos ornavam a finíssima estrutura do casulo. Seus tons diversificados realçavam com a seriedade rubra que deixava os confins da carne interna para cromatizar o tecido exterior. Com imenso custo, a humana foi erguendo seus braços, agora finíssimos, em direção aos céus, tocando as extremidades de seus dedos murchos no topo arredondado de seu casulo. Como uma ordem sagrada, o sangue contido ao seu redor era atraído pelos diagramas, ascendendo a eles e preenchendo seus interiores anteriormente transparentes.

Os confins de sua mente, sincronizados com a consonância angelical, permitiam que tais combinações sonoras vibrassem perseverantemente através de sua consciência. Oxigênio marchava ao longo de seus doloridos pulmões, combustível que designava as notas atravessando suas cordas vocálicas e libertadas através de sua garganta em chamas. A cada instante em que dava cor à beleza em seu casulo, mais e mais seu corpo e sua alma pareciam vibrar.

Atraída por sua beleza fatal, foi assim que eu a conheci.

—:–

Minha última melodia se despedia de meu corpo sangrento, levando consigo memórias de um passado distante. Compilada, a dor que eu sentia era formada por um conjunto predestinado de todas as mágoas que já havia experimentado, e que meu futuro, agora ceifado, talvez me permitiria experienciar caso não tivesse executado a ordem de minha escolha irrevogável. Tudo o que um dia fora tocado por minha presença se perderia. Contudo, em nenhum instante duvidei desta minha mortífera escolha.

A vida que me foi presenteada me permitiu enxergar, dia após dia, mágoas como as que me acompanhavam derrubarem almas que nesse mesmo instante poderiam estar lapidando-se e construindo seus agradáveis futuros, na companhia dos fragmentos de realidade a que aprenderam a amar. Minha visão era turva, mas não me importava agora: já havia visto tudo o que precisava e ia precisar antes de meus últimos momentos sublimes.

Realizava a peça mais bonita, em meio ao meu palco solitário. Peça esta capaz de alterar todos os rumos humanos. Peça esta pela qual eu buscava, por meio de dar fim a quem era, presentear a todos pequenos grãos de vida, embrulhados por novas oportunidades de recomeços, paz e esperança. Sementes as quais eu sentia tão necessárias naquele momento profundamente extraordinário.

Iria passar meus últimos instantes sorrindo. As formas geométricas agora já estavam plenas, estimuladas por meu líquido vital. Minhas mãos, ainda elevadas, posicionaram-se com seus palmos virados para seu interior, e apesar da violenta instabilidade, iam se aproximando vagarosamente. O casulo, vivificado, correspondia à interação, unificando-se conforme meus palmos iam se aproximando.

Estava ficando escuro. Contudo, nunca tive medo da escuridão. Meus olhos pesavam, assim como todo o resto de meu ser, apesar de estar amavelmente adormecida pela minha própria dor. Proferir as notas terminais de minha delicada canção divinal estava complicado, então as entoei por meio de sussurros, sincronizados com as remanescentes batidas de meu coração.

Meus palmos se encontraram, apertando um ao outro como um sereno abraço. Desta forma, o casulo retrocedeu, tomando minha forma e mesclando-se com o que restava de meu corpo, conectando-se com a minha matéria física e espiritual. Meus olhos perderam sua luz e, antes da intensa erupção que antecederia meu fim, eu adormeci.

—:–

Medidas protetivas. Foi o que realizei a cargo de meu próprio sangue, que ocultava a própria presença ao redor do delicado casulo. Eu a observava, acompanhando cada partícula de oxigênio que deixava seus pulmões. E, por ter acesso tão abundante a seu sangue, pude saber cada detalhe do que se passava em sua consciência e nos perímetros de seu corpo. Alinhando meu sangue, eu a assistia desistir de si para doar aos humanos, fragmentos de uma felicidade destinada a ser apenas sua.

Havia me preparado para isso. Era certamente arriscado, já que causaria numerosos danos a mim e a ela, porém não permitiria que sua luz afável e determinada se esvaísse com a erupção de seu sangue. Eu estava prestes a rasgar os profundos laços de seu destino para salvá-la. Oh, minha doce humana, que havia se tornado marionete conduzida pelo próprio pecado terrano. Durante aquela noite, ela seria minha.

E assim como ela, sorri. Ergui meus braços, simulando o harmonioso movimento que fazia enquanto seu casulo se fechava. Mentalizei seu sorriso, mesclando-o com infindáveis sequências de sentenças sagradas que programava em minha consciência espiritual. Meu corpo fervia, dada a quentura do sangue que bombeava por minhas veias. Ao aproximar de meus palmos, caracteres com traços distintos eram desenhados nas pontas de meus dedos em ambas as minhas mãos.

Veloz, saltei ao chão do cômodo já escuro. Minha mão esquerda em meus lábios, indicador e médio estendidos. A direita, estendida, com seus dedos fixos no chão. Sussurrei um punhado de termos gerados pela união de todo sincronismo em minha mente e então, dos intrincados desenhos que tomavam forma em minhas mãos, surgiam cortes. O sangue brotava, e no instante em que tocou o chão, a situação fatal estava dominada.

—:–

O abismo era silencioso. Demorei para articular meus pensamentos, já que por um longo tempo pude apenas percebê-los por meio daquela curiosa sensação. Estava quente, mas não fervia. Abraçava os meus joelhos, semelhante à posição fetal. Minha consciência ainda acordava de um sono que parecia milenar, e se tornou inquieta ao perceber que meu coração ainda batia.

Havia sangue ao meu redor. Havia sangue pulsando por minhas veias, e sangue contido em meu corpo. Havia sangue incorporado ao meu corpo. Sim, eu flutuava no interior de um casulo, mas de um casulo que não era, em essência, meu. Reconheci como tudo fluía, após buscar coragem suficiente para mover vagamente meu dedo indicador esquerdo. Este não era o abismo. Não poderia ser o abismo. Era materno, cálido e afetuoso. Certamente não era o abismo.

Pouco a pouco, redescobria meu tato. E com ele, o reconhecimento de minha ligação com a vida. Sua pulsação era transmitida e percorria cada trecho do que restava em meu corpo, auxiliando o sangue em minhas veias e amparando o andamento das funções em meus órgãos. Sua pulsação garantia que as batidas em meu coração estivessem seguras, sincronizadas com a constância serena das batidas presentes no seu. Sentindo gradativamente a vitalidade florescendo outra vez em meu ser através de seu sangue, permaneci embalada por esta ritmada sensação tranquila.

Com a normalização de minhas funções vitais, percebi como o casulo havia diminuído de tamanho. Com o passar do tempo o sangue, repleto em nutrientes, esteve sendo absorvido por minha pele, e preenchendo meu corpo em sua totalidade. Sentia as diversas camadas de suas paredes sendo unidas com minha própria pele, formando uma cobertura protetora e me permitindo respirar o ar exterior, após um longo tempo, por primeira vez.

Todavia, a pulsação continuava. Minha ligação com a vida mantinha-se desperta. Conectado ao meu ventre, um fino, vigoroso e delicado laço. E então eu a senti. Senti quando suas mãos deslizaram por minha cintura e seus palmos percorreram a extensão de minhas costas, e ela foi enrolando seus braços em meu corpo úmido e sensível enquanto me puxava para perto. Senti seu corpo quente. Senti como meu próprio corpo respondia, como que por instinto, entrelaçando-se com o seu. Senti sua respiração tão próxima, ao ponto de memorizar para sempre o aroma metálico que sua proximidade exalava.

Eu havia nascido outra vez.

Ela havia me salvado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Tempestades de um espinho que ansiava virar flor" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.