AMORES VIRTUAIS escrita por Projeto Literário ColetâneaS, Georgeane Braga, Maxine Sinclair, Hanna Martins, Piper Palace, Sr Devaneio, itsmemare, arizonas, Serena Bin, Amauri Filho, Sabrina Azzar, Leeh, Natasha Alves


Capítulo 9
Conto 9 - Cartas a Alguém que não Conheço


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas! Amoreslindos! Eu sou a Joanne Kathleen, mas talvez muitos me conheçam também por Daniela Arezzo. Bem, somos a mesma pessoa.
Espero muito que gostem do meu conto que de certa forma, sai um pouco do padrão dos contos anteriores. Vocês entenderão o porquê.

Vamos à sinopse?

Na cidade de Berlim, no ano de 1988, um muro levantado para dividir comunistas de capitalistas, dividia também vidas. Mas por alguma razão inexplicável - você pode acreditar no destino se quiser - as vidas de dois jovens se uniram para traduzir a palavra amizade em sua mais profunda essência.
Em Cartas a Alguém que não Conheço, você descobrirá o valor de uma pequena ação e talvez no fim do conto, conclua que as relações humanas vão além.

Musica tema: SOMEWHERE ONLY WE KNOW - Lily Allen 



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Passamos a vida achando que todas as relações humanas são motivadas majoritariamente por necessidade ou desejo. Que, no fundo, ninguém nunca gosta realmente de alguém simplesmente por ser uma pessoa agradável. Sempre esperam que haja algum tipo de segunda intenção entre duas pessoas. No entanto, a história que vou contar agora narra um tipo de relação que não fora pautada em envolvimento físico, mas, que ainda sim, fora recheada de sentimento. A relação entre Lily Aplin e Daniel Heiz transcendia os limites impostos pelas circunstâncias. Carinho, lealdade, cumplicidade, amor.

Mas, não espere, caro leitor, que esses dois personagens fiquem juntos no final porque esta não é uma história de romance. Na verdade, o que vou lhe contar trata-se apenas de uma amizade simples e sincera que, apesar de breve, mudou uma vida.

Muito bem, vamos ao que nos interessa: a cidade de Berlin, onde os traumas da guerra deixaram entre seus suvenires um imponente muro que separava muito mais do que duas ideologias políticas. O muro de Berlim era também um separador de vidas.

Conta-se que, no inverno de 1988, um jovem alto de pouco mais de quinze anos, inundado pela monotonia do lado comunista, lançou ao lado da Berlim capitalista uma carta. O pequeno envelope amarelado cuja face não continha nenhum destinatário voou por cima do muro e aterrisou suavemente na calçada da rua tomada pela neve que naquele momento dera uma trégua depois de dias.

A carta, porém, permaneceu na calcada durante horas até que um par de pés parou bem à frente do envelope que, molhado pelo gelo, estava quase transparente. A pessoa apanhou a carta e a analisou com olhos de desconfiança. Girou-a entre os dedos e, percebendo que não havia destinatário, largou-a novamente jogada no chão e seguiu caminho pela rua nevada.

A neve voltou a cair e o envelope amarelado mais uma vez estava ao relento. Horas mais tarde, outro par de pés encontrou a carta, porém não parou para apanhá-la. Anoiteceu e a carta agora se encontrava totalmente coberta pela neve que caia violentamente, mas por alguma razão, mesmo que fosse impossível, os olhos de uma pessoa enxergaram, no montinho de neve logo abaixo do poste de luz, algo diferente.

A pessoa cavou um pouco e encontrou, no meio do gelo, o envelope já gasto e encharcado cuja tinta da caneta já estava borrada. Notou que não havia remetente ou destinatário; olhou para os lados da rua e não viu ninguém que pudesse ser o autor da carta, então, com um gesto rápido, guardou o pequeno envelope no meio das páginas de um grosso livro de ciências e, em meio a neve gélida, lançou de volta ao caminho de casa.

Enquanto isso, do outro lado do muro, na Berlim comunista, o autor da carta repousava em uma cama e pensava onde estaria o pedaço de papel que lançara por cima do muro há algumas horas. O garoto, loiro de olhos muito azuis, olhava a neve cair e imaginava o que pensaria a pessoa que lesse a sua carta e que tipo de resposta receberia se a mesma de fato fosse lida. Mas, mesmo que estivesse otimista, Daniel Heiz sabia que o mais provável era que sua carta se dissolvesse no meio do gelo sem que ninguém ao menos tivesse oportunidade de lê-la. Em todo o caso, decidiu que passaria em frente ao muro no dia seguinte apenas para constatar que não haveria resposta.

Mas Daniel Heiz não poderia estar mais errado. Sua carta não dissolvera no gelo, pelo contrário, estava sendo lida naquele exato momento por uma pessoa. Um alguém que enxergou entre as letras borradas a seguinte mensagem:
]

"Caro leitor,
Tenho escrito alguns poemas, mas não sei se são realmente bons. Gostaria de lê-los e dar, quem sabe, a sua opinião?
Responda quando puder.
Afetuosamente,

Autor"

A pessoa, ao terminar de ler a pequena mensagem, retirou, do meio de um caderno, uma folha de papel. Escreveu alguma coisa e enfiou o que parecia ser um bilhete dentro de um envelope branco e onde caberia ao remetente, escreveu "Leitor" e como destinatário escreveu ''Autor".

No dia seguinte, o pequeno pedaço de papel branco mantinha-se preso no meio da neve. Daniel Heiz, surpreso, apanhou o envelopinho molhado de neve e de dentro dele retirou um bilhete que trazia escrito com uma caligrafia caprichada e inclinada apenas três palavras:

"Sim.

Afetuosamente, Leitor"

Apenas três palavras que mudaram o dia do jovem Daniel. Havia recebido a resposta de sua carta, afinal de contas. O garoto saiu, então, em direção a sua casa e, ainda naquela manhã, escrevera um de seus poemas em uma folha de papel que, mais tarde, fora arremessada novamente por cima do muro em direção ao lado da Berlim capitalista.

Horas depois, a carta de Daniel já estava nas mãos de seu leitor que prontamente concordara em ler um de seus poemas e, sob a luz amarelada de uma luminária de mesa, lia os versos do poema que dizia assim:

"Caro Leitor,

Agradeço a disposição. Envio-lhe o meu mais recente poema.

' Há coisa mais importante que o amor?

Talvez seja a dor que fingimos sentir para esconder nosso vazio

interior?

Quem sabe o que nos espera ao amanhecer?

Talvez seja o sonho, a morte ou apenas o reviver.

Ninguém nunca vai saber o real sentido da vida

Nem que queira ser sábio, nem que seja de fato, tudo o que importa

neste momento é o cheiro da flor porque, para os homens, não há

nada mais forte que o amor.'

E então? Muito ruim?

Afetuosamente,

Autor"

A resposta do poema chegou depois de dois dias. No bilhete lançado pelo leitor, Daniel Heiz leu:

"Caro Autor,

Eu gostei.

Afetuosamente, Leitor."

A resposta, mesmo que curtíssima, deixara o rapaz muito animado, afinal, havia recebido uma nota de aprovação. Uma nota que valia por todas as cartas do mundo. Seu primeiro leitor havia gostado de seu poema.

Nos dias que se seguiram, Daniel Heiz continuou a enviar poemas para o lado capitalista, sempre endereçados ao leitor misterioso que, tempos depois, Daniel tomou coragem para perguntar o nome verdadeiro do mesmo modo como ele mesmo decidira revelar o seu.

"Caro Leitor,

Fico feliz em dizer que tenho encontrado em suas cartas uma cumplicidade muito interessante. Acho que estamos firmando uma espécie de amizade, não acha?

Por achar isso, eu decidi que chegou a hora de você saber como eu me chamo de verdade. Bem como eu, gostaria de saber com quem ando me correspondendo para poder agradecer ao apoio.

Responda quando puder,

Afetuosamente,

Daniel Heiz, o autor.

p.s: Você não precisa ser tão tímido. Pode responder com cartas maiores. Adoro ler."

Do outro lado do muro, o leitor que vinha recebendo as cartas de Daniel também se sentia feliz. Da mesma forma que o garoto, sentia que ganhara um amigo a quem podia conversar sempre que havia oportunidade. Então, como se tornara de costume, sentara sob a luz amarelada da luminária para escrever uma resposta.

"Caro Daniel,

Eu sinto muito que minhas respostas tenham sido sempre tão curtas.

Mas entenda que eu nunca soube até agora com quem estava me correspondendo. Em tempos onde todos os traumas da guerra ainda estão tão vívidos em nós, o medo de estar sendo aliada de um subversivo sempre rondou minha mente. Por isso, achei prudente manter certa distância entre nós. Mas, confesso que não é legal responder poemas e bilhetes tão bem escritos com palavras simples. Portanto, peço desculpas e prometo responder-lhe de maneira mais leve.

E, sim, tenho notado também que somos amigos. Na verdade, eu já o considero meu amigo desde a primeira carta, mas como lhe disse, tive medo de estar sendo equivocada.

Suas cartas são a diversão dos dias nevados e chuvosos. Dias os quais detesto profundamente porque não posso fazer o que mais gosto no mundo: pesquisar insetos.

Gostei muito de saber que está praticando a escrita. Bom, a prática tem dado resultados. Você está ficando cada vez melhor. Já pensou em publicar um livro?

Afetuosamente,

Lily Aplin, a leitora "

A resposta para a carta de Lily Aplin demorou alguns dias para ser entregue, porque Daniel Heiz estava ocupado demais com as provas escolares. Entretanto, quando a semana do Natal chegou, Lily recolheu do chão da calçada um envelope amarelado onde, no campo remetente, lia o nome de seu amigo, Daniel Heiz, que escrevera-lhe assim:

"Cara Lily,

Antes de tudo, gostaria de me desculpar por demorar a responder sua última carta. Estive em semana de provas na escola. Tirei C+ em História e confesso que não fiquei tão feliz, mas não posso reclamar. O Viktor, o melhor aluno da minha classe, tirou um B-. O assunto da prova realmente era difícil: o nazismo. Não sei quanto a você, mas eu, particularmente, acho essa parte de nossa história vergonhosa demais para ficar relembrando a toda hora. Mas, felizmente as aulas acabaram e estamos livres da escola por duas semanas.

Fiquei muito feliz em saber seu nome de verdade e compreendo que você tenha se sentido desconfortável em se revelar. Mas você realmente acha que um subversivo pediria opiniões sobre os poemas que escreve?

E não me diga que você detesta os dias nevados. Eu os adoro! Para falar a verdade, eles são ótimos para escrever.

E, não. Até agora nunca havia pensado em escrever um livro. Acho que preciso melhorar muito antes disso. Mas quem sabe um dia?

Que bom que somos oficialmente amigos, Lily.

Feliz Natal.

Afetuosamente, Daniel.

p,s: Sempre tive a impressão de que quem vinha recebendo minhas cartas era uma leitora e não um leitor como você mesma respondia. Bem, estive certo esse tempo todo. "

Lily não demorou a responder. Na tarde seguinte, uma nova carta esperava por Daniel no mesmo lugar de sempre. O lugar onde ele sabia que Lily sempre jogava os envelopes de resposta.

"Caro Daniel,

Parabéns pelo C+! Você realmente se saiu bem. Eu também acredito que o nazismo tenha sido a parte mais catastrófica de nossa história recente, entretanto, acho muitíssimo válido relembrá-lo. Afinal, de que outra forma poderíamos avisar as gerações futuras de que ideologias radicais são completamente destruidoras? Lembrar do passado é uma forma de entender o presente e construir o futuro. Se ignorarmos os fatos, certamente seremos mais felizes, mas ao mesmo tempo seremos tão indignos quanto os que causaram aquela barbárie.

Espero que passe as férias bem.

Feliz Natal e bom ano novo.

Afetuosamente,

Lily."

O Natal passou depressa bem como as férias de ano novo. Logo, as duas semanas de descanso deram lugar a um janeiro particularmente frio. A neve e o vento davam à sensação de que a Alemanha se acabaria em gelo.

Por essa razão, nem Lily, nem Daniel se corresponderam por alguns dias. Entretanto, quando o tempo melhorou na segunda quinzena do mês, os dois amigos voltaram a receber cartas cujos conteúdos estavam agora cada vez mais variados, bem como as cartas que adquiriam cada vez mais páginas de conversas.

Daniel vivia a contar sobre seus novos poemas, bem como Lily vivia a relatar suas descobertas com insetos. Certa vez, no dia do décimo sexto aniversário de Daniel, a garota enviou-lhe uma lagarta de borboleta olho-de-tigre - muito rara, por sinal.

"Daniel,

Essa é uma lagarta de borboleta Olho-de-Tigre. Ela é raríssima e eu a encontrei bem no meu jardim. Infelizmente, a coitada já estava morta.

Estou dando ela a você como um presente de aniversário. Espero que goste. É realmente muito especial.

Feliz Aniversário!

De sua amiga,

Lily Aplin."

Dias depois, a resposta eufórica de Daniel que adorara a lagarta chegou até Lily. O garoto guardara o pequeno bichinho dentro de uma caixinha de fósforos em sinal de respeito. Aquele havia sido o melhor presente que ganhara até ali.

Os dias passavam rápido e a cada carta, a amizade entre a jovem Lily e o talentoso Daniel ganhava cada vez mais força, de modo que sentiam-se livres para contar até mesmo segredos um para o outro.

Lily certa vez confessou que não gostava de usar sutiã. Dizia que a peça era incomoda e que a irritava profundamente, bem como se queixava frequentemente sobre o fato de ser a mais alta de sua classe.

Daniel, por sua vez, confessara a amiga que andava gostando de uma colega de classe.

"Cara Lily,
Não consigo imaginar como deve ser usar um sutiã, mas acho que posso comparar seu desconforto com cuecas pequenas. De verdade, cuecas pequenas tiram o sono de qualquer homem.

Já o fato de você ser a mais alta de sua turma, acho que é relativo. Olha pelo lado bom: você sempre vai conseguir sentir a chuva primeiro.

Ah! Quero te contar uma coisa.

Lembra que te contei sobre a garota que estou gostando na escola?

Bem, o nome dela é Liessel e ela tem a minha idade. Eu a convidei para o baile de primavera que acontece no primeiro fim de semana de abril na minha escola, mas ela disse que vai pensar. O que isso significa?

Com afeto,

Daniel.

p.s: Feliz Dia das Mulheres!"

Lily não conteve o riso ao ler a carta do amigo e prontamente respondeu:

"Daniel,

Quando uma garota diz que vai pensar, quer dizer que você deve

procurar outro par para o baile porque ela não quer ir com você.

Sinto muito.

Sua amiga, Lily."

Março passou tão rápido que quase não se notou sua presença. As cartas dos amigos continuavam a medida que os meses iam ficando para trás.

Quando o feriado de páscoa chegou, enviaram um ao outro balas e tabletes de chocolate. E assim passavam-se os meses. Compartilhavam de tudo. Desde as alegrias, até as tristezas. Daniel contava sobre a escola; Lily sobre o coral da igreja; Daniel falava sobre mais poemas e Lily o apoiava; Lily falava sobre sua família; Daniel sobre suas ambições.

Eram inseparáveis separados por um muro. Mantinham contato constante e como já era de se esperar, cresceu nos dois o desejo de se conhecerem pessoalmente, mas como poderiam fazê-lo com a cidade dividida em duas?

Como o mundo poderia condená-los a uma amizade sem rosto? O descontentamento de ambos ficou claro em algumas cartas.

"Cara Lily,

Tem sido muito monótono aqui no lado Comunista. As pessoas andam sempre ocupadas demais em reviver os horrores da guerra bem como garantir que nada do mundo externo chegue até aqui. Creio que essa coisa de separar a cidade em duas não é uma solução prática, mas sim um atraso de vida. Você não acha?

Abraços, seu amigo Daniel."

A resposta veio dois dias depois.

"Querido Daniel,

Você tem toda razão. Estamos vivendo um período estranho onde temos que repudiar qualquer um que pense diferente de nós.

Felizmente, as vezes é possível encontrar pessoas sensatas que pensam que a humanidade seria bem mais feliz se fosse menos resistente.

Tenho pensado muito em como seria bacana se nos conhecêssemos pessoalmente. Já estamos amigos há um bocado de tempo.

Espero que esse muro caia algum dia.

Com afeto, sua grande amiga

Lily A."

A carta de Lily atravessou o muro no dia seguinte. A resposta de Daniel chegou alguns dias depois. Aliás, Lily notara que as respostas do amigo estavam ficando cada vez mais demoradas. Daniel, que antes respondia quase sempre na mesma semana, agora levava quase duas para enviar uma carta resposta a Lily.

"Querida Lily,

Desculpe demorar tanto para responder.

Acho que poderemos nos ver em breve!

Corre um boato por aqui que o muro vai ser derrubado. Se isso de fato acontecer, seria genial!

O que você acha de marcarmos um local para nos conhecermos?

Acho que eu nunca disse como sou pessoalmente.

Sou um pouco alto, loiro de olhos muitos azuis. E você, como é pessoalmente?

Afetuosamente, seu amigo Daniel."

Os burburinhos do lado comunista eram reais. O muro realmente cairia em breve e como era muito esperado por ambos os amigos, logo poderiam estar frente a frente.

Lily imaginava, pela descrição dada por Daniel, como seria encontrar o amigo tão estimado pela primeira vez.

De imediato, a garota respondeu:

"Daniel!

Você não imagina! É verdade. O muro realmente vai cair dentro de algumas semanas. E sim! Poderemos nos encontrar pessoalmente.

Estou muito ansiosa para este momento. Você poderia escolher o local onde nos encontraremos.

Fique bem, sua amiga Lily.

p.s: Ah, já ia me esquecendo.
Pessoalmente sou alta, com a pele bem clara, cabelos escuros armados e olhos muito azuis. Eu uso óculos e tenho uma pinta em formato de coração abaixo do olho esquerdo. Acho que será difícil você encontrar alguém que tenha uma pinta igual a minha. Provavelmente, no dia de nosso encontro, usarei um suéter azul escuro."

Lily caminhou até o muro de Berlim como sempre fazia há mais de um ano. Jogou a carta para o outro lado e aguardou durante a tarde a resposta que ela tinha certeza que viria a galope. Mas não veio. Lily não recebeu resposta naquele dia nem nos que se seguiram. Tampouco nas semanas que se sucederam.

Quando outubro chegou, já fazia meses que a carta fora enviada a Daniel. Lily não entendia o desaparecimento repentino do amigo e sentia-se vazia. Isolada. Perdida.

Sem a companhia diária de Daniel, a garota parou de esperar por uma resposta. Talvez o garoto tivesse se cansado daquela amizade sem rosto ou talvez estivesse ocupado com coisas mais importantes, ou estivesse fazendo provas... as possibilidades eram muitas.

Quando a semana da demolição do muro de Berlim finalmente chegou, a esperança de Lily em receber novas cartas do amigo já haviam morrido. A garota sentia-se traída por não saber sequer a razão de uma desfeita tão grande.

Na manhã de nove de novembro de 1989, todos os jornais acordaram com a notícia da queda do muro que aconteceria dentro de algumas horas. Lily Aplin, como força do hábito, vestiu seu suéter azul escuro e saiu para a praça. Não encontraria seu amigo secreto, mas pelo menos presenciaria um momento histórico para a Alemanha: a queda do muro.

— Cinco! Quatro! Três! Dois! Um! - gritou a multidão e, quando a enorme bola de ferro se chocou contra o muro, uma enorme quantidade de tijolos, pedra, ferro e concreto se amontoou no meio da rua enquanto a multidão explodia em vivas.
Pouco a pouco, as pessoas começaram a atravessar para os lados opostos.

Se viam homens e mulheres se abraçando. Gritos de mães que reencontravam seus filhos depois de muito tempo. Famílias se reunindo novamente.

Lily pôde ver a alegria fluindo no meio da poeira. Era algo novo. Libertador. Imaginou por um momento como seria olhar para a multidão a sua volta e encontrar seu amigo Daniel, exatamente como ele se descrevera.

A garota, então, tomada por uma esperança muda, correu os olhos esperando o impossível. Mas como havia previsto, Daniel não estava lá. Desapontada, começou a andar pelos escombros a fim de acompanhar a multidão e acabou entrando onde até minutos atrás fora território da extinta Berlin comunista. Caminhava lentamente olhando para o chão. Via pedras, tijolos, ferros retorcidos, um par de um sapato de couro, uma garrafa de água, uma carta...

Uma carta?

Uma carta!

Lily apanhou rapidamente o pequeno envelope e reconheceu na mesma hora a caligrafia reta e caprichada que pertencia a ninguém menos que seu amigo Daniel.

Abriu a carta que dizia em letras garrafais:

"O MURO VAI CAIR!

ACHO UMA ÓTIMA IDEIA NOS ENCONTRAMOS.

VAMOS MARCAR UM LOCAL COM TODA A CERTEZA! ENVIAREI UMA CARTA QUANDO EU PENSAR EM UM LUGAR!

VIVA A BERLIM! VIVA A ALEMANHA! VIVA A LIBERDADE!

SEU AMIGO, DANIEL"

Lily leu a carta várias vezes como se quisesse se desculpar com Daniel, porque ele havia enviado a resposta, entretanto, a carta não havia atravessado o muro. Talvez o rapaz não tivesse jogado com força suficiente, ou o vento poderia ter desviado seu caminho... as possibilidades eram tantas! Mas Lily não se deteve a isso.

Finalmente entendera o silêncio do amigo. Certamente pensara que fora ela quem não quisesse mais respondê-lo.

"Ora, que grande mal entendido" Lily pensou alegre. Girou o envelope nos dedos e avaliou a carta: envelope amarelado, agora sujo de poeira e barro, com a caligrafia de Daniel. Tudo igual como sempre fora desde o começo, exceto por um detalhe: a carta possuía algumas informações no campo do remetente. Lily notou que além do nome, havia um endereço também. O endereço de Daniel Heiz!

Tomada por uma alegria sem tamanho, a garota saltou pelos escombros na direção do endereço indicado: Rua Hannah Schmitz, 9854, Berlin Oriental.

A garota corria pelas ruas apinhadas de pessoas que sorriam e vivenciavam a alegria da queda do muro. Lily passou por casinhas pequenas, ruas estreitas e vielas úmidas até encontrar, quase no limite da cidade, uma ruazinha cuja pequena placa presa ao poste indicava a rua Hannah Schmitz. O número 9854 ficava há duas quadras da esquina principal.

Quando Lily chegou a frente da casa que supostamente seria de Daniel, sentiu um frio percorrer seu estômago. Seria possível que finalmente conheceria seu amigo? Companheiro dos dias nevados e chuvosos? A quem contara vários de seus mais profundos segredos? O confidente poeta que também lhe confessara muitas coisas?

O que será que o amigo diria ao encontrá-la pela primeira vez? Talvez a abraçasse ou desse a ela um aperto de mão? Mas quem se importa como o amigo reagiria? O importante é que estariam juntos para poderem conversar sobre todas as coisas que gostavam. Lily estivera mesmo ansiosa para contar a Daniel sobre sua nova descoberta envolvendo a borboleta olho-de-tigre. Mas antes de contar qualquer novidade, ela precisava chegar até a porta e tocar a campainha, entretanto, vencer a vergonha e o medo era tarefa difícil.

A casa número 9854 da rua Hannah Schmitz era uma simplória construção de alvenaria com portas de madeira e janelas brancas. Lily caminhou hesitante até a porta com a carta em mãos; tocou a campainha e esperou.

Longos segundos de ansiedade se passaram até que alguém atendesse a porta.

— Pois não? - disse a mulher loira de olhos muito azuis que Lily logo supôs ser a mãe de Daniel.

— Olá - Lily disse hesitante. - Esta é a casa dos Heiz?

— Sim.

— A senhora deve ser a senhora Heiz, eu suponho.

— Sim - respondeu a mulher sem nenhuma cerimônia. - O que deseja?

Lily tomou fôlego e respondeu:

— Gostaria de falar com seu filho Daniel, ele está?

A senhora Heiz olhou para Lily e fechou os olhos de maneira estranha e Lily teve a impressão de ver uma lágrima escorrer pelos olhos da mulher.

— Vá embora - disse a senhora Heiz antes de bater a porta da cara de Lily Aplin. A menina desconcertada não entendeu a reação da mãe de Daniel. Lily se recusou a ir embora sem tentar falar com o amigo; tocou a campainha novamente e dessa vez quem lhe atendera fora uma garota baixa e rechonchuda.

— O que quer? - perguntou a moça a Lily.

— Falar com Daniel Heiz, ele está?

— Quem é você?

— Uma amiga da igreja - Lily mentiu. Talvez assim a deixassem ver o amigo.

— Amiga? - disse a moça, duvidosa. - Meu irmão não possuía amigas na igreja. Quem é você de verdade?

Lily pensou um pouco e decidiu dizer a verdade. Não havia mais muro. Ninguém a poderia prender por ter contato com comunistas.

— Lily Aplin - disse.

No momento em que ouviu o nome de Lily, a garota que se dizia ser irmã de Daniel mudou o semblante de desconfiada para emocionada.

— Lily Aplin?

— Sim.

— Entre - disse a garota a Lily.

Na sala de estar da casa, as paredes eram repletas de quadros de fotografias. Lily pôde observar o retrato de um rapaz alto, loiro de olhos muito azuis. Era Daniel, exatamente como ele havia se descrito.

A irmã de Daniel fez um gesto para que Lily se sentasse.

— Meu irmão falou de você - disse a irmã.
Lily sorriu.

— Falou?

— Falou. - A irmã de Daniel fez uma longa pausa e suspirou fundo antes de continuar. - Você era uma grande amiga...

— Somos sim - Lily respondeu. - Cadê ele? Nos correspondíamos por carta. Ele escrevia poemas para que eu lesse e opinasse... espere um momento. - Lily secou o sorriso. - Você disse que eu era uma grande amiga dele? Por quê? Ele não quer mais ser meu amigo? Ora, vamos lá. Daniel é sempre muito temperamental, sabe? Ele deve ter ficado chateado porque eu não o tivesse respondido da última vez, mas veja bem, a carta dele nem chegou até mim. - E estendeu a carta para a moça. - Tenho certeza que foi apenas um mal entendido. Diga a ele que ainda somos amigos. Pensando bem, gostaria de dizer pessoalmente...

— Ela ainda não sabe - disse uma outra voz vinda da cozinha.
Lily virou-se para encarar o homem alto que Lily tinha certeza ser o senhor Heiz.

— Não sei de quê? - perguntou Lily sentindo uma pontada de ansiedade encher seu peito.

Todos na sala se entreolharam e Lily teve certeza que Daniel não estava em casa. Nem em casa, nem em local nenhum porque ele se fora. Para sempre.

As lágrimas caiam continuas sobre seus joelhos enquanto a irmã de Daniel lhe contava o que havia acontecido a Daniel.
Segundo a irmã, o rapaz estava desenganado de uma doença muito grave. A sentença de morte viera no dia em que ele escrevera a primeira carta. Lily sentiu um aperto silencioso no coração como se uma enorme mão apertasse seu peito. Sentia a dor pulsante da falta de Daniel. Estava sendo atingida pela perda de seu melhor amigo.

— Era por isso que ele demorava a responder - disse a irmã. - Nos últimos dias, eu transcrevia as cartas para ele...

Isso explicava a leve mudança na caligrafia das últimas cartas. Lily pensou um pouco antes de explodir.

— Mas ele nunca mencionou nada... Éramos tão amigos!

— O que você teria feito se soubesse?

— Teria tentado tornar seus últimos dias mais felizes... Tentaria acalmá-lo...Cuidaria dele...

— Foi por isso que ele não contou - disse a irmã. - Daniel não precisava de mais um médico. - olhou para Lily. - Meu irmão precisava de uma amiga, Lily.

— E você foi essa amiga. - a mãe de Daniel surgiu de repente na conversa. Os olhos inchados de lágrimas. - Você tornou os últimos dias dele leves. Ele vivia para esperar e responder suas cartas. Falar de coisas normais fazia com que ele se sentisse normal, vivo e, de certa forma, imortal.

— Eu não entendo... - Lily disse, chorando muito.

— Não precisa entender. Vocês eram amigos e tenho certeza que Daniel teria ido ao seu encontro se tivesse tido tempo. Ele gostava muito de você, garota.

As revelações faziam Lily sofrer como nunca havia sofrido antes. Parecia que perdera um pedaço de si mesma. Sentiu-se sem chão.

— Daniel... meu grande amigo... por quê? - a menina resmungava, chorando muito.

— Isso é pra você. - a irmã de Daniel esticou-se até uma pequena gaveta e tirou de dentro dela um envelope amarelado. O mesmo modelo de envelope que ela havia se acostumado a receber. A moça estendeu a Lily.

— Foi a última carta que ele escreveu.

Lily apanhou a carta. Dentro estava escrita uma mensagem muito curta:

"Querida Lily,

Estive pensando e acho que já tenho o lugar perfeito para nosso encontro.

Vamos nos encontrar no local onde nossas cartas são entregues e recebidas. O lugar que só nos conhecemos.

A carta é pequena porque logo estaremos conversando pessoalmente.

Até lá.

Forte abraço, de seu amigo

Daniel Heiz.

ps: Estarei usando um suéter vermelho e luvas verdes."

As lágrimas de Lily manchavam tinta da caneta.

A última carta era a resposta para o que vinham planejando há muito tempo. O local onde se conheceriam: embaixo do poste de luz do lado capitalista e sobre o hidrante do lado comunista.

— Ele morreu dois dias depois de escrever essa carta - disse a irmã. - Não foi de repente, sabe, nós já esperávamos e de certa forma ele também. Bem, é isso - a garota disse por fim.
Lily limpou as lágrimas com a manga do blusão e fungou profundamente. Guardou as cartas junto ao peito.

— Obrigada - disse Lily. - Por me contar. Vou indo então. - Lily se dirigiu para a porta. Se despediu da família de seu amigo e foi caminhando lentamente de volta para sua própria casa. Entretanto, antes que atingisse o fim da rua, uma voz esganiçada rasgou o ar frio do ambiente. Lily virou-se para trás e viu a senhora Heiz correndo ao seu encontro. Trazia nas mãos um caderninho muito surrado.

— Ele planejava lhe dar isso em seu aniversário - ela disse, os olhos marejados de lágrimas. - Não teve tempo obviamente...
Lily abraçou a mulher com força. A senhora Heiz, cansada de ser forte, desabou em lágrimas.

Naquele momento Lily só poderia imaginar como é que uma pessoa a beira da morte poderia ter conseguido pensar em presentes de aniversário para uma amiga que nem se quer conheceu pessoalmente.

— Obrigada - Lily sussurrou. A senhora Heiz agradeceu também e ficou no fim da rua enquanto Lily sumia no horizonte.

Os dias passaram muito devagar depois da queda do muro de Berlim. A cidade já voltava a se reunificar, mas os pedaços do coração de Lily Aplin continuavam estilhaçados pelo chão. Nem mesmo os dias ensolarados que se seguiram davam a menina algum ânimo, como se depois da partida de Daniel, as coisas que antes a faziam alegre tivessem perdido a graça.

Nem mesmo abrira o presente que a senhora Heiz lhe entregara. Certamente qualquer coisa que contivesse naquela caixa estaria repleta de lembranças da amizade breve que teve com o garoto autor. Mas houve um dia particularmente frio em que, presa em casa, Lily olhou para o caderno que fora entregue a ela e sentiu curiosidade para abri-lo.

Folheou as páginas e logo reconheceu: era um caderno de poemas. Todos escritos pelo próprio Daniel. Cada um representado em sua melhor caligrafia. Lily correu os olhos e leu o poema que ele lhe enviara em sua segunda carta.

Aquele caderno não era apenas um caderno de poemas. Era a coisa mais próxima de um livro que ele poderia publicar antes de partir. Fechou o caderno e leu o título na capa.

"Cartas a alguém que não conheço por Daniel Heiz"

Lily abriu o caderno novamente e leu logo na primeira página uma mensagem que fez com que todas as palavras da senhora Heiz fizessem sentido.

Ali, na página, uma dedicatória escrita em caneta nanquim dourada:

"Para Lily, grande amiga, apoiadora e alívio nos dias tempestuosos." abaixo da dedicatória, havia algo preso com uma fita adesiva. Lily reconheceu no mesmo instante as asas da borboleta olho-de-tigre, um presente dela para Daniel.  Os olhos de Lily Aplin pingaram as últimas lágrimas antes que as lembranças a inundassem por completo.

 

 

Epílogo 

Não existe um epílogo porque nem sempre as histórias precisam de fato continuar. Quando se conta o que precisava ser contado , acréscimos posteriores tornam-se desnecessários. 

Afetuosamente,

Autora.

 

 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Obrigadíssima por ler!



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