Ursa Maior, Ursa Menor escrita por Marylin C


Capítulo 1
Capítulo Único




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O menino corria sem rumo pelo deserto, os dois pedaços da flauta partida marcando suas mãos e as lágrimas escorrendo pelo rosto naturalmente queimado. Alguns passos atrás, uma pequena ovelha de pelagem negra acompanhava-o, seu balido ecoando no imenso vazio arenoso. Os dois já haviam deixado de ver atrás deles o oásis onde a família do garoto acampava há muito, o que era exatamente a intenção. Skandar As’ad estava, finalmente, indo embora.

Veja você, ele era o mais novo de cinco irmãos homens. Os mais velhos tinham tomado toda atividade realmente importante no acampamento do clã As’ad muito antes de Skandar, ou Kan, saber falar e era constantemente lembrado disso. A tarefa que seu pai lhe dera, cuidar das ovelhas, resultara em desastre e conflito. Kan não conseguia matar quando lhe pediam uma ovelha para a janta ou quando um dos filhotes nascia com a pelagem negra. Sabia que os deuses o castigariam por não eliminar o defeituoso, mas simplesmente não conseguia. Via o medo no olhar dos animais, tão igual ao seu próprio. Então tocava sua nai, sua flauta de bambu, e todos, inclusive a si próprio, se acalmavam. Menos seu pai, é claro. Majid As’ad não ficava impressionado com a musicalidade de seu garoto mais novo, e sim com a falta de ‘masculinidade’ do mesmo. Por muitas vezes colocara a culpa na mãe, que mimava Kan mais do que o fizera com os outros. Talvez fosse por isso mesmo, mas o menino não gostaria de mudar. Era por isso que, enfim, estava indo embora daquele lugar.

O que finalmente fez o garoto tomar coragem de ir embora foram três situações combinadas. A primeira delas foi o momento que o pai encontrou as pequenas ovelhas negras que ele vinha criando em um campo afastado, por não ter o coração gelado o suficiente para matar os animais que lhe faziam companhia durante as horas quentes do dia. Furioso, Majid tinha partido os pescoços de todas as ovelhas, menos a que seguia o menino agora. Kan espantara a pequeno ovelha negra até que seu pai fosse embora, e então a amarrou atrás de alguns arbustos antes de finalmente começar a chorar a morte dos outros animais.

A segunda situação foi o momento que seu irmão tomou-lhe a nai e a partiu em duas, somente algumas horas mais tarde. A Grande Estrela estava se pondo, e o menino tinha acabado de sair da parte da tenda quadrada que pertencia às mulheres e crianças depois de tocar para sua mãe, que sofria de uma doença desconhecida por todos, quando foi abordado por um de seus irmãos. Masoud era o terceiro mais velho e, portanto, tomava conta dos camelos. Ele estava irritado com o som da nai, que aparentemente tinha nos camelos um efeito contrário ao calmante que Kan sempre conseguia ao tocar para as ovelhas. Então, simplesmente tomou o instrumento das mãos do garoto e partiu-o ao meio com um pequeno sorriso aliviado. O garoto conseguiu segurar as lágrimas ao puxar a nai quebrada das mãos do irmão e correr de volta à tenda, e só aí desabou.

Sua mãe, Nazli As’ad, se levantou do arrumado de almofadas em que se deitava e com dificuldade andou até o menino que se encolhera com o instrumento em um canto ao lado da entrada da tenda.

— Que aconteceu, Kan? — ela tinha perguntado. Ele mostrou-lhe a nai e ela apertou os lábios, abaixando-se até a altura do garoto e enxugando suas lágrimas com os polegares. — Vai ficar tudo bem. — prometeu, abraçando-o. E foi naquele momento que a terceira situação aconteceu. Ao erguer os braços para retribuir ao abraço, sentiu-a desfalecer. O corpo quente e pesado de sua mãe quase caiu por cima dele, que a pôs no chão o mais delicadamente que pôde.

— Mama? — indagou, temeroso. A mulher apenas sorriu, um filete de sangue escorrendo-lhe pelo canto da boca, e repetiu com um último suspiro:

— Vai ficar tudo bem, Kan.

Skandar pôde ver a vida se esvaindo do olhar castanho de sua mãe, a única que realmente lhe dava amor naquele lugar. Sentiu seus lábios tremerem e então agiu rápido: fechou os olhos da mãe, pegou os dois pedaços da nai e puxou a mochila de couro que estava pendurada em uma das vigas da tenda. Ele sempre a mantinha pronta para o caso de seu clã ter que sair rapidamente de algo lugar, como no caso de assaltantes ou rivais. Ou, naquele momento, em sua fuga.

Encontrou a ovelhinha negra onde a deixara, pastando tranquilamente. Kan desamarrou-o e o puxou para longe, seguindo sem rumo para fora do oásis e deixando para trás tudo o que conhecia. À medida que se distanciava, apressava o passo e deixava as lágrimas finalmente cederem. Céus, ele estava muito chorão naquelas últimas horas.

A noite finalmente chegou e, com ela, o frio quase glacial do deserto. Skandar cobriu-se com a pele de camelo que trazia sobre os ombros, encontrando uma rocha suficientemente alta que bloqueava boa parte do vento. Sua ovelha, que chamou de Titrit depois de sua mente exausta cogitar vários nomes inúteis e ridículos aos ouvidos, aconchegou-se a ela para a noite imperdoável. O pelo negro de Titrit ajudou ambos a manter a temperatura corporal durante o sono juntamente com a capa de pele de camelo que o menino sempre usava, e o odor conhecido a acalentar boa parte dos sonhos inquietos de Kan.

Ele corria pelo deserto noite adentro, sua ovelha correndo ao seu lado sem precisar ser forçada ou puxada. Como se realmente o pertencesse, e soubesse disso. O vento despenteava os cabelos escuros de Kan, que ria com a falta de preocupações que uma boa corrida o trazia. O ardor em seus pulmões, provocado pelo esforço, era a única sensação presente. Nem dor, nem medo. Nada.

Os dois pararam de correr ao chegarem a um oásis. As palmeiras e rochas pareciam normais, mas a aura de magia que emanava daquele lugar fez o menino arrepiar-se. Titrit soltou um balido que pareceu uma exclamação de surpresa e trotou até o lago à sua frente. A água cristalina refletia a luz do luar, mas emanava um brilho diferente. Skandar aproximou-se, a curiosidade tomando-o de assalto. Ajoelhou-se na margem, ao lado da ovelha negra, e encarou seu reflexo. Só que não era a ele mesmo que enxergava. Via uma mulher, de longos cabelos negros e sorriso bondoso. Sua mãe.

“Mama?” perguntou, surpreso. A mulher assentiu, rindo para ele. “O que está acontecendo? Por que você está aí, no lugar do meu reflexo?”

“Porque eu vivo em você, mesmo que tenha deixado este mundo. Os deuses... Eles me dizem que têm planos para você.”

“Planos?”

“Você passará algum tempo no deserto, meu pequeno, mas logo chegará onde será realmente feliz. Confie nas estrelas, elas serão seus guias. Você se lembra do que eu lhe disse sobre as estrelas, Kan?”

“São os olhos dos deuses, nos vendo e zelando por nós,” ele recitou uma das antigas lendas que sua mãe sempre lhe contara. “Mas mama...”

“O que foi, meu pequeno?”

“O que eles planejam para mim? Eu realmente posso confiar neles? Por que você foi embora? Como...”

O reflexo riu, interrompendo-o.

“Calma, calma. São muitas perguntas, meu filho, e nem todas devem ser respondidas. Apenas confie nas estrelas, Skandar As’ad, e será recompensado. Confie em meu recado.”

“Mas mama... Você pode me dar uma dica? Do que farei, da minha recompensa?”

“Você de fato é um garoto curioso,” a mulher riu novamente “Muito bem. Você deve voltar a este lugar, meu pequeno, na hora em que a Grande Estrela estiver em seu ponto mais alto no céu. Deve entrar no reflexo dela, dentro d’água, e encontrar seu destino.”

“Mas como posso voltar se nunca estive aqui? Isso é um sonho, certo?”

“E só porque é um sonho, não significa que é real?” Nazli replicou, sorrindo docemente. “Acorde agora, pequeno.”

Kan acordou de súbito, a respiração entrecortada. O que tudo aquilo significava?

Esfregou os olhos para espantar os resquícios do sono e olhou para o céu. A Grande Estrela ainda estava próxima do horizonte, o que significava que ele tinha algum tempo para achar um abrigo com água antes que ela atingisse o ponto mais alto e o matasse com o calor. Comeu alguns nacos de pão que tinha empacotado e bebeu um grande gole d’água para então levantar-se e por um pouco na boca de Titrit, que se entretinha com uma porçãozinha de mato que encontrara crescendo na rocha. Então chegou a hora de ir. Mas em quê direção?

— Pare e pense um pouco, Skandar. ­­— falou para si mesmo, impedindo-se de se desesperar. Não se lembrava da direção por onde viera, mas poderia decidir em qual ir. A Grande Estrela nascia ao leste, para onde deveria apontar a mão que usava sempre. À sua frente ficava o norte, atrás de si o sul e do lado oposto ao da Grande Estrela, o oeste. — “Para sair do deserto, siga sempre a Grande Estrela. Para voltar para casa, fuja dela. Mas para encontrar seu destino, sempre em frente deves ir”. — recitou, recordando-se de um antigo poema que sua mãe murmurava ao entardecer. Sorrindo levemente, puxou a ovelha e começou a andar para o norte, a mochila pesada em seus ombros. Mal notou que abandonara a nai partida no lugar em que tinha passado a noite.

***

O rapaz apoiou-se no próprio cajado, sentindo suas panturrilhas queimarem de exaustão. Aquela era uma sensação conhecida, de quando se empolgava demais em suas caminhadas pelo deserto. Ao seu lado, a ovelha negra sorvia água do lago que tinham encontrado em um oásis, seus chifres curtos evidenciando sua idade.

Skandar sorriu ao tirar os sapatos e mergulhar os pés na água cristalina, molhando uma das mãos e passando-a no rosto parcialmente tomado pela barba negra que recomeçava a crescer. De vez em quando o rapaz adquiria paciência o suficiente para usar a navalha que carregava e aparar os pelos de seu rosto. Mesmo com todos os homens importantes de seu antigo clã tendo barbas enormes, no calor do deserto a barba se tornava inconveniente. Ele não precisava mantê-la para ser respeitado, mesmo porque Titrit não se importava. E sua ovelha era a única que viajava com ele.

Cinco anos haviam se passado desde que Skandar As’ad fugiu de casa. Não teve mais sonhos como aquele em que sua mãe aparecia, mas sempre parecia que os deuses o estavam ajudando. Em todo o tempo em que vagueara junto com Titrit pelas terras áridas do deserto, nunca passou fome ou sede. Além de racionar muito bem comida e água, ele sempre encontrava um oásis quando seus mantimentos estavam no fim, provavelmente uma cortesia dos deuses, e assim mantinha a produção de leite da sua ovelha constante. Ele sempre ficava animado que aquele fosse o lugar que procurava, mas nunca era. Depois de dois anos tendo esperança, apenas desistiu e focou-se em sobreviver sozinho.

Para não perder a sanidade, costumava dizer em voz alta quem era o que estava fazendo ao fugir. Gostava de conversar com Titrit, ela o ouvia atentamente enquanto caminhavam. Kan seguia viagem sempre de manhã e no final da tarde, parando nas horas em que a Grande Estrela iluminava mais fortemente debaixo de uma tenda que roubara muito tempo atrás, quando encontrou um clã desconhecido em um dos oásis em que se abrigava, para comer algo e dar de beber ao sua ovelha. Além disso, dormia as horas mais frias debaixo da tenda, usando uma lamparina roubada como fonte de calor e uma das muitas peles de camelo que conseguira ao longo dos anos para aquecer a ele e a Titrit. Sim, sua mochila de couro acabou ficando bem mais pesada.

Ele deitou-se de costas na areia úmida, apreciando a pequena brisa que fazia as árvores farfalharem e a água molhando seus pés, quando ouviu um ruído vindo de longe. Sentou-se subitamente, olhando em volta. Sua ovelha farejou o ar, balindo levemente. O som tornou-se mais alto. Parecia... Uma grande quantidade de homens correndo com seus animais.

Kan levantou-se, pegando o cajado e a mochila com pressa antes de puxar Titrit por um dos chifres até algumas rochas próximas a água, onde já verificara a presença de uma estreita caverna escondida. Se escondeu lá com seu animal, mordendo o lábio inferior enquanto tentava acalmar o próprio coração. Roubar quando já sabia onde estava o clã era uma coisa, agora esperar pela chegada deles...

Ouviu homens descendo de animais – na certa, camelos – e várias quantidades de pés andando pelo oásis. Mas o que mais lhe amedrontou foi não reconhecer a língua que eles falavam. Os clãs geralmente possuíam palavras próprias, mas os deuses os haviam dado a mesma linguagem. Quem, pela Grande Estrela, eram aquelas pessoas?

Titrit pareceu sentir seu medo e começou a remexer-se, em pânico.

— Cale a boca, Titrit. Está tudo bem, relaxe. Está tudo bem... — o rapaz sussurrou-lhe, segurando a ovelha pelos curtos chifres. Então o animal, de olhos arregalados, baliu com medo ao escutar um grito daquele povo estranho. Fez-se então um silêncio arrebatador, quebrado apenas por passos firmes na areia e onde Kan sacava sua navalha. Titrit baliu de novo, e então Skandar viu os rostos de dois homens na entrada da caverna. Eles usavam panos amarrados sobre suas cabeças, barbas encaracoladas e enormes. Gritaram um com o outro naquela língua desconhecida e puxaram o que pareciam ser espadas com grande curvatura na ponta. Foi nessa hora que percebeu que deveria correr.

Puxou a ovelha, instigando-lhe a corrida, enquanto os homens barbados com roupas claras o perseguiam pelo oásis, berrando o que pareciam ser ordens ou impropérios. Desviou de mulheres de véu encobrindo o rosto, camelos enfurecidos e crianças curiosas para sumir daquele lugar. Um fugitivo, como era desde os doze anos.

***

Ofegante, ele finalmente olhou para trás e parou de ver os homens. Certamente tinham se cansado de caçar um moleque solitário e uma ovelha negra, então deveriam ter voltado para seu clã. Se é que se podia chamar aqueles estranhos de clã.

Aliviado, Kan jogou-se no começo de duna que se formava ao seu lado enquanto tentava recuperar o fôlego. As finas pernas de Titrit tremiam com a agitação, e seu dono pela primeira vez em anos lamentou a falta de sua nai. Deu um pouco de água à ovelha, fazendo-lhe carinho enquanto murmurava uma antiga canção e tentava desacelerar o ritmo de seu coração. Guardou a navalha, apoiando as mãos nos joelhos e expirando pela boca. A Grande Estrela já havia ido embora há algum tempo, e à medida que seu corpo voltava à temperatura normal ele percebeu que estava finalmente perdido. Naqueles cinco anos, sempre tinha tido a certeza de para onde deveria ir por causa da Grande Estrela iluminando seu caminho com a jornada diária pelo céu, e nunca parara no meio do nada quando ela desaparecia. Bom, até agora. Ele não tinha a menor ideia da direção que deveria seguir. Sabia que o Norte era onde encontraria seu destino, mas para que lado ficava o Norte?

Olhou para o céu, vasculhando seu cérebro e as estrelas para tentar se lembrar. Algum verso, um nome de constelação, alguma coisa. Qualquer coisa.

— Chegar ao Norte... Como? — murmurou para si mesmo, batendo um pé no chão nervosamente. — À noite... Se sentir-se no escuro... Podes chegar... — versos de um antigo poema subitamente vieram a ele, com um estalo. — Contemplando... A inclinação da Ursa Maior, com a sua pendente cauda, atravessar em pleno inverno o céu do Norte!

Kan levantou-se rapidamente, ainda esquadrinhando o céu. Mas agora sabia o que procurar.

— Ela segue sua filha, que indica o caminho para o destino do viajante. — continuou falando consigo mesmo, segurando um dos chifres de Titrit para que ela não andasse sozinha por aí. Agradeceu aos deuses por prestar tanta atenção às histórias de sua mãe, quando finalmente achou a constelação que queria. Ursa Maior, ou Mamãe Ursa, como ela costumava contar.

Skandar riu sozinho ante a lembrança, e finalmente achou a estrela correta. Polar, a mais brilhante da Ursa Menor. A que o levaria pelo Norte.

Deu meia volta e então começou a seguir a Polar, soltando Titrit para aconchegar-se mais à pele de camelo enquanto andava apoiado no cajado. O vento cortante congelava-lhe as bochechas e a escuridão o deixaria cego se não fosse a velha lamparina que afanara a iluminar alguns metros à frente.

Caminhou pelo que poderiam ter sido horas, até cair de joelhos e sem forças aos pés de uma palmeira do oásis que encontrou. Carregara sua ovelha nos ombros quando o animal começou a cambalear de exaustão, só para soltá-lo quando se exauriu de todas as suas energias.

— Conseguimos, Titrit. — Kan afirmou com um sorriso fraco, deixando o próprio corpo tombar sobre a areia fria e caindo em um sono profundo e sem sonhos. A ovelha negra arrastou-se até o lago, bebeu um pouco de água e então voltou para perto do dono, arrumando a pele de camelo sobre ele com a boca e deitando-se ao seu lado. Era mais inteligente do que deixava transparecer.

***

Skandar acordou com calor torrando-lhe o rosto. Ele tinha dormido a manhã inteira, e naquele momento a Grande Estrela estava em seu ponto mais alto no céu. O que significava um dia inteiro de viagem perdido, porque o rapaz não podia caminhar com a Grande Estrela iluminando-o diretamente.

O rapaz sentou-se para observar o lugar, sentindo seu estômago roncar. Não teve como explorar aquele oásis na noite anterior, pois quase que desmaiava de exaustão. Encontrou Titrit sorvendo calmamente a água do lago, e a chamou para extrair seu leite. Depois de tanto tempo, o animal já se acostumara a alimentar aquele humano.

Notou então, ao tomar o leite fresco em um caneco de barro, que aquele ambiente parecia familiar. Puxando a navalha para aliviar sua ovelha dos grossos pelos que já se emaranhavam, analisou o espaço. Parecia que já havia estado lá, talvez em sonho. Kan estava quase terminando de formular o pensamento que o levaria a dizer por que estava com aquela sensação, vasculhando o próprio cérebro e encontrando a memória do sonho de cinco anos atrás, quando subitamente o céu explodiu.

Um raio caiu, incendiando uma das palmeiras do lado oposto do lago. Seu relâmpago reverberou no ouvido do rapaz, que largou a navalha com o susto, e fez Titrit balir assustada. Ela tentou correr, mas Kan a segurou antes de sumisse. Acalmou-a com uma pequena canção e olhou para a árvore em chamas, percebendo que ela não se queimava. As folhas continuavam verdes e sadias, mesmo embebidas em fogo. Ele franziu as sobrancelhas e começou a se aproximar, sua ovelha seguindo-o com um curto balido de hesitação.

A pequena movimentação já deixando-o suado por causa do calor, Skandar tirou parte do cabelo de cima da testa antes de terminar de rodear o lago. Parou ao lado da palmeira.

— Que coisa esquisita. — comentou para ninguém em especial, hesitando antes de fazer o que seu instinto inicial mandava. Tocou em uma das folhas flamejantes da árvore, para então arregalar os olhos com a dor.

À medida que o fogo se espalhava pelo seu corpo, parecia que uma quantidade infinita de minúsculas facas atingia-o, juntamente com o ardor insuportável que era a queima da pele. Kan, desesperado, correu cegamente pela areia buscando um modo de apagar o fogo. Acidentalmente tropeçou sobre Titrit e ambos caíram no que deveria ser a água cristalina do lago, mas se revelou como um vazio sem fundo algum. E, ao contrário do que se pode pensar, a agonia não passou. O rapaz sentia seus ossos transformando-se, crescendo e retorcendo. No escuro, sua angústia acentuou-se. Não sabia o que estava acontecendo, se tinha ficado maluco ou morrido. Se aquilo era a morte, e ele fora condenado àquele sofrimento por toda a eternidade... Gritou, o desespero tomando conta de si.

Subitamente, tudo começou a clarear. Tempo indeterminado tinha se passado, podiam ter sido minutos ou séculos, em que Kan delirava com a dor e suas suposições. Titrit berrara algumas vezes, certamente tendo sua própria dose daquela tortura.

Tão logo que o escuro se dissipou, Skandar encontrou-se deitado de costas em um chão úmido, a respiração entrecortada e um céu muito azul acima dele. De esguelha, ele poderia ver as copas de enormes árvores dignas de uma floresta tropical e, estranhamente, algumas figuras de aparência estranha surgiam.

— Ele chegou, Na! — ouviu uma voz de sotaque diferente gritar. O rapaz sentou-se em confusão, usando uma mão para tirar os cabelos da frente dos olhos e então notando o que acontecera com seu corpo.

Kan arregalou os olhos, olhando para os braços e pernas. Seus pés haviam se transformado em garras de pássaro, com três unhas negras e a pele enrugada como as patas de uma ave predatória. Havia crescido penas vermelhas em seus braços, que haviam afinado e alongado. Como... Asas.

— O que...? —começou a perguntar para si mesmo, mas a mulher que aparecera sorrindo em seu campo de visão o embasbacou.

— Você conseguiu, meu pequeno. — sua mãe falou, ajoelhando-se à frente dele. Nazli parecia mudada, não só pelas asas e garras de pássaro. Seu rosto se tornara mais anguloso, e seus cabelos, estavam cortados na altura dos ombros. Além disso, notou outras pessoas-pássaro descendo das árvores e seguindo na direção da dupla, as penas variando do marrom ao vermelho.

— Mama? O que está...? Mas você...? — tentou começar novamente, mas estava muito perplexo para concluir seus pensamentos. A mulher riu.

— Está tudo bem, meu pequeno. Eu não morri, e nem você. Somos seddars agora.


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