O discípulo escrita por slytherina


Capítulo 1
Amor versus destino


Notas iniciais do capítulo

Civilização abordada: Suméria



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Prólogo

"Ao pó vieste, do pó retornarás." Mubarak Al-Majid citou ironicamente, enquanto segurava cuidadosamente o tablete de pedra ancestral, retirado do sítio de escavação arqueológica no Kwait.

"Não deveria deturpar as escrituras sagradas. Em meu país há pena de morte para isso." Retrucou Khalid Al-Abadi, enquanto ajudava a proteger o artefato em um manto, para poderem levá-lo para a tenda onde estava seu equipamento.

"Não moro no seu país, e além do mais, estava citando a bíblia cristã, e não o livro sagrado." Mubarak respondeu com um sorrisinho.

Khalid não gostou da resposta e fez cara feia, mas resolveu ficar calado. Eles colocaram o tablete com cuidado na mesa de estudo. Limparam com um pincel e o puseram sob um foco luminoso. Era um artefato finamente entalhado em múltiplos traços repetidos, enfileirados e dispostos lado a lado, formando uma espécie de dominó.

"Então, Mubarak? Consegue ler? O que diz aí?"

"Bem, não é o código de Hammurabi. Tá mais pra ... citações religiosas. Onde eu já vi isso antes?"

"O que diz exatamente?"

"Descreve os requisitos para fazer ou escolher um discípulo ou aprendiz. E fala sobre a chegada do Deus da Lua … ou Deus que vem da Lua. Como eu disse, não passa de fábula religiosa."

"Mesmo assim, é importante. Afinal tiveram o cuidado de proteger este tablete nestas urnas bem guardadas."

"Sim. Mal sabiam eles que quatro mil anos depois, sua civilização não existiria mais, e que seu Deus-Lua não pôde fazer nada para protegê-los da extinção."

Khalid olhou compadecido pela falta de fé do outro homem.

"Mubarak, nem sempre os deuses intercedem pela salvação dos homens. Às vezes eles os aniquilam."

"Bem, então esse Deus-Lua foi bem sucedido."

Mubarak passou a fotografar o tablete de pedra escura, todo coberto por cunhas em uma das faces, como se minúsculos passarinhos tivessem valsado sobre cimento fresco. Khalid ligou um gravador e passou a narrar a descoberta do dia. Os dois estavam, naquele momento, alheios ao mundo ao redor, completamente absortos na cultura antiga que se refletia naquele memento de um passado longínquo.


1.


Neste mesmo lugar, há quatro mil anos, existia uma civilização banhada pelo sol. Uma grande cidade foi construída às margens do rio Eufrates, e uma imponente construção, semelhante a uma pirâmide quadrada, dominava a paisagem, além de ser o coração da cidade. O verde invadia tudo, e as construções de tijolo avançavam até às margens dos rios, criando a ilusão de uma cidade com ruas aquáticas.

As pessoas se vestiam com túnicas, saias e mantos, às vezes apenas um desses vestuários, às vezes os três sobrepostos. Os cabelos eram negros e cacheados, e os homens cultivavam uma barba impressionante, por vezes copiando os dreadlocks dos cabelos. Eles usavam adornos como brincos e braceletes, e alguns colares, além de grampos e tiaras. O rei e o governador também usavam estranhos objetos nos pulsos, que os informava sobre o tempo, o que era idiotice segundo o povo, já que bastava olhar para o céu pra se informar sobre o tempo.

Num belo dia de verão, um casal corria pelas ruas da cidade de Ur, tentando um despistar o outro, apenas para inverter o jogo e passar de perseguido a caçador. Por fim, pararam de correr e caíram exaustos sobre um monte de palha que estava em uma carroça, rindo como loucos, suados e exaustos. O rapaz imberbe, de longos cabelos cacheados, debruçou-se sobre sua companheira de brincadeiras. Ela era bonitinha, baixa e franzina, com os longos cabelos negros arranjados em múltiplas tranças, que lhe expunham o rosto bronzeado e os olhos vivazes.

Ele desejou aqueles lábios macios e rosados, que emolduravam perfeitos dentes perolados. Aproximou o rosto do dela e sentiu seu hálito fresco de adolescente inexperiente. Colou as bocas e tocou os lábios dela com a língua. Um arrepio do corpo dela o tirou de seu devaneio. Ele se afastou rapidamente e sentou-se na carroça.

"Sinto muito, Kish! Deixei o desejo me dominar. Isso não voltará a acontecer." Ele se desculpou.

"Tudo bem … Enlil! Eu também queria." Ela falou triste, como se lhe tivessem tirado o brinquedo preferido.

"Você está prometida a outro homem, e eu me tornarei um sacerdote. Não podemos ficar juntos."

"Está bem. Ainda podemos ser amigos?" Ela perguntou com o cenho franzido.

"Sim! Claro! Somos amigos desde a infância. Seremos amigos até nossas mortes." Ele segurou afetuosamente a mão dela entre as dele.

"Gostaria que isso fosse verdade."

"Acredite, Kish. Nunca irei repudiá-la ou me afastar de você, por mais que nossos destinos sejam diferentes."

"Está bem! Só gostaria que você me escutasse mais, e não seguisse apenas essa cabeça dura sua."

"Já lhe disse mil vezes, Kish, ser sacerdote de Nanna é uma honra e um privilégio. Eu nunca desistirei disso. E quando Nanna descer da Lua para cá, ele me escolherá como discípulo."

A garota baixou os olhos tristes e não falou mais nada.

"Não fica assim, Kish. Se eu tiver azar, Nanna nem aparecerá por aqui, e eu nunca sairei de seu lado. Assim ficou melhor?" Enlil segurou o queixo de Kish e o ergueu delicadamente. A jovem o encarou timidamente, e não resistindo mais, se atirou nos braços do melhor amigo.

"Eu ficaria muito feliz. Não quero que Nanna te leve pra longe."

"Está bem! Está bem! Escute Kish, vamos até o zigurate? Tem umas estátuas que meu mestre recomendou que eu visse. São muito impressionantes. Você vai gostar."

Os dois saíram da carroça e começaram a correr novamente, se desviando de carros de boi e liteiras.


2.


Nos próximos meses, Enlil se dedicou com afinco aos estudos, transcreveu muitos textos religiosos e recitou poemas em seu grupo de estudos. Além disso tinha muito treinamento físico, carregando pesos, andando a cavalo e praticando arco e flecha. Jejuns e vigília também estavam na lista de tarefas. Enlil se submetia a tudo isso estoicamente. O que ele mais queria era prostrar-se ante o deus Nanna e ser levado por ele até a lua, mas isso só ocorreria se fosse considerado digno.

Enlil ainda se recordava das fantásticas estórias contadas por seus pais, sobre os antigos deuses que andavam na Terra, com crânios protuberantes e olhos amendoados, e de como eles ensinaram aos mais antigos como cuidar da terra para cultivar alimentos, e domesticar animais para nos servir. Esses deuses ficaram por um tempo, mas depois foram embora, para o mundo que fica acima de nós. Talvez na lua. Talvez além da lua. Enlil gostaria de conhecer esses reinos distantes.

Kish sempre observava o amigo de longe. Sabia de sua devoção à religião, bem como de seu estranho desejo de ir morar na lua. Ela também temia por ele, pois não confiava nos deuses. Blasfêmia, diria sua mãe se a ouvisse, mas ela nunca diria seus pensamentos em voz alta. Para ela, deuses poderosos e tão diferentes fisicamente não era um bom sinal. E se na lua houvesse escassez de alimentos? E se as brincadeiras dos deuses fossem muito perigosas e violentas? Quem impediria os deuses de devorarem seu amigo, ou de usarem-no como um brinquedo sem valor? Por ela, Nanna poderia morrer, mas não Enlil. Que pecado Kish acabara de pensar? Ela ficou mortificada com os próprios pensamentos. Prostrou-se de joelhos e começou uma ladainha para o deus Nanna, pedindo perdão por seu pecado.

Nos tempos vagos passeavam pelo zigurate. Demoravam-se nos pavilhões de estatuaria, adquiriam lembrancinhas, comiam frutas, encontravam amigos de infância e passavam a maior parte do tempo na rua, sendo que ao retornar para casa, a mãe de Kish sempre reclamava com Enlil, por sua amiga estar prometida a outro, e que não ficava bem ficarem namorando. Enlil tentava se explicar, dizer que eram apenas amigos, mas essas discussões sempre acabavam quando a mãe de Kish ameaçava mandar o marido militar atrás dele. Nessa hora, Enlil sempre saia correndo, como se Nergal, o deus do inferno em pessoa, estivesse atrás dele.

Certo dia, o mestre de Enlil o chamou na escola. Levou-o para o local mais alto daquela construção, no nono andar. Lá havia um estranho artefato em forma de lança, só que muito mais volumoso. Ele era oco, e havia vidro nas extremidades. O mestre posicionou Enlil diante do artefato e o mandou olhar através do vidro da lança.

Ele viu a escuridão do céu. Alguns dos astros do céu pareciam bem perto. E a lua … a lua parecia enorme, como se fosse o quintal de sua casa. Será que ele veria o deus Nanna?

"A lua está imensa, mestre."

"A lua é imensa, Enlil."

"E o deus Nanna, mestre? É possível vê-lo?"

"O deus Nanna não está na lua, Enlil, mas ele está a caminho. Vire um pouco o artefato para a direita. Está vendo aquele astro escuro? É Nibiru. É a morada de Nanna. E ele está vindo para perto de nós."

"Não entendo, mestre. Sempre pensei que o deus Nanna vivesse na lua."

"Os deuses não nos dão satisfação de seus atos, Enlil. Nanna tem a posse da lua, mas vive onde quiser."

"Mestre, aprendi nos antigos escritos que os astros do céu influenciam as águas da terra, e que por isso deveríamos estudá-los. Acha que a aproximação de Nibiru afetará as águas de nossa cidade?"

"Perfeito, Enlil! Você se revela um excelente estudante. Sim, meu caro aluno, Nibiru afetará as águas e a terra também. Já leu a estória de Gilgamesh, Enlil?"

"Sim, mestre."

"Na estória de Gilgamesh somos informados do advento de um grande dilúvio no passado. É isso que acontecerá com a chegada de Nibiru, meu jovem, uma catástrofe nas proporções de um dilúvio."

Enlil ficou mortificado.

"E quando isso ocorrerá, mestre?"

"Em cinqüenta anos, talvez um pouco mais, mas ele virá, esteja certo disso."

"Iremos todos morrer, mestre?"

"Sim, Enlil, menos o escolhido por Nanna para ser seu discípulo."


3.


Com o passar dos meses, houve um aumento na temperatura local, e as chuvas ficaram freqüentes. Houve uma fartura de alguns tipos de alimentos, em detrimento de outros. O povo ficou eufórico pela safra fora de estação, por isso fizeram festas populares em agradecimento aos deuses.

O noivo prometido de Kish passou a freqüentar sua casa, e ela o detestou. Sua mãe começou os preparativos do casamento, mas a garota bateu o pé e exigiu a presença do pai na cerimônia, senão, ela não se casaria. Seu pai estava ausente de casa há anos, em missão militar na imensa região do seu reino. O noivo resolveu aceitar os termos da noiva relutante, por ora, sendo que era costume local simplesmente juntar os trapos, e o noivo carregar a donzela nos ombros, como um saco de provisões, e levá-la a algum local mais aconchegante, a fim de consumar o casamento. Afinal, ela lhe fora prometida na infância, então não havia do que reclamar.

Enlil foi para o deserto, em treinamento de sobrevivência. Levou provisões e armas para auto-defesa. Fez uma fogueira para se proteger do frio da noite, e durante o dia usava um chapéu de peles, para se proteger do sol. Matou pequenos animais para se alimentar, e racionou a água. Rezou e recitou poemas, para afastar o tédio e a solidão. Fazia treinamento com lanças e flechas, sabendo que não era um verdadeiro guerreiro, mas sabia o suficiente para se defender. No terceiro dia ganhou companhia. Um leão o seguia e observava. Não abertamente, mas o rapaz sentiu seu cheiro e ouviu seu ronco.

Ele ficou assustado, é verdade, mas tinha confiança absoluta em seu treinamento. Quando pela manhã, o leão resolveu se apresentar, era imenso e imponente, com uma juba impressionante. Enlil o recepcionou com cuidado e respeito. Atiçou a fogueira para avivá-la. Armou-se da lança e ficou em posição de combate. Com o passar das horas, o leão deitou-se e tirou um cochilo. O jovem sentiu os músculos formigando. Mudou sua posição, mas continuou preparado para o combate. Passou a recitar ladainhas para o deus Nanna, para manter as forças. Ele suava profusamente, pelo avançar das horas do dia, e pela proximidade com a fogueira, que lentamente se extinguiu.

Longe de entrar em pânico, admirou o leão. Seu inimigo felino nem se dignou a ficar acordado para assustá-lo. Simplesmente dormiu. Aos poucos o estudante relaxou. Baixou as armas e sentou-se no chão. Tal qual o leão. Mais tarde, quando a fome falou mais forte, seguiu em direção a uma manada de cervos. Como se entendesse a sugestão, o leão que o acompanhava atirou-se sobre os animais e atacou um deles. Enlil contentou-se em matar uma lebre, enquanto o leão fazia um festim sangrento. Foi aí que decidiu que já era hora de voltar à civilização. O leão o acompanhou até às fronteiras da cidade, mas voltou daí e se perdeu no deserto.

"Eu também não entraria no seu covil meu amigo. O prazer foi meu. Tenha uma boa vida e uma morte digna." Ele se despediu do felino.

No zigurate havia um templo privado. Não era permitido ao público, e somente a alta hierarquia sacerdotal poderia adentrá-lo. O mestre de Enlil levou a ele e seus colegas de escola para tal templo. Havia os símbolos habituais nas paredes, além de tapeçarias. O que mais chamava a atenção, todavia, era uma porta. Havia sentinelas paramentados para a guerra guardando-a. O batente se misturava com as aduelas, e os enfeites e adornos pareciam brilhar no escuro, como se a porta estivesse viva. O jovem estudante ficou fascinado

"Preparem-se, alunos, pois iremos receber um visitante ilustre. Ajoelhem-se e adorem ao altíssimo." O mestre ordenou.

Nesse mesmo instante, a porta se abriu, uma figura alta e robusta de lá saiu. Ele tinha um elmo que cobria sua face inteira, suas vestes eram cheias de nervuras e grossas, deixando-o encorpado. Jóias brilhantes estavam encrustadas em toda sua roupa, e sua respiração era audível e incômoda, como se ele tivesse dificuldade em respirar.

"Alunos, saúdem ao deus Nanna!" O mestre bradou.

Houve uma grande comoção, e alguns alunos choraram, enquanto outros ficaram tremendo, incapazes de esboçar reação. Todos menos Enlil, que ficou encarando ao deus da lua, embora ainda de joelhos, ao lado dos colegas. De certo modo, Nanna o lembrava o leão do deserto.


4.


O deus Nanna examinou fisicamente um a um dos alunos, e escolheu o mais covarde, desatento e incapaz de todos, na opinião de Enlil. A cerimônia ritualística foi suntuosa, e ao povo foi dada a honra de se prostrarem diante do deus da lua. Por causa disso, filas e filas se fizeram para adentrar o zigurate, e ter uma breve visão do deus lendário.

O aluno escolhido, Enki, foi então preparado para a viagem. Seu corpo foi depilado e perfumado. Deram-lhe laxantes e ervas especiais, que o tornariam mais resistente a enjôos e mudanças bruscas de altitude. Enlil notou que seu colega parecia levemente sonolento, e ele concluiu que o mesmo fora dopado.

Ao fim de sete dias, desde sua chegada, o deus Nana adentrou a porta especial, seguido de perto por Enki, o aluno escolhido. Enlil notou que o interior do recinto, para onde foi Nanna, era negro, sem luz, sem detalhes, como o fundo escuro de um abismo. Pela primeira vez, ele ficou aliviado por não ser o aluno escolhido, e ficou triste pelo destino de seu colega de escola.

Após a porta ser fechada novamente, todos ficaram estupefatos, ainda em transe por causa das emoções daquela semana. As multidões de fiéis se dispersaram e Enlil poderia voltar a sua vida comum. Aliás, ele começaria a viver, pois até aquele momento, tudo o que fizera fora direcionado para este momento, e ele passara deixando nada no lugar.

Enlil sentiu uma mão em seu ombro. Ao virar-se deu de cara com Kish. Ela estava igual a todos os dias, grandes olhos escuros, boca macia e rosada, e tranças em toda parte. E ela nunca lhe parecera mais linda e atraente. Como ele pôde resistir tanto tempo ao que sentia por essa garota? Ele a enlaçou e procurou os lábios dela, que não esboçou resistência, antes ficou na ponta dos pés, para lhe oferecer os lábios entre-abertos.

O noivo prometido iria reclamar, sua mãe lhe ameaçaria de surra, era bem capaz do pai correr atrás de Enlil com uma lança nas mãos, mas tudo iria valer a pena, pois ninguém mandava no coração dela, e este já pertencia há muito tempo a Enlil, seu melhor amigo de infância, e o homem de sua vida.


Epílogo


Vamos sair do passado e avançar alguns séculos no futuro, quando um astro de órbita excêntrica, que demora quatro mil anos, faz seu caminho de volta ao centro do sistema solar. É o planeta Nibiru, de quem os sumérios falavam. Ao se aproximar do terceiro planeta a partir do sol, muitos cataclismos passam a ocorrer. Tornados, terremotos, furacões, desequilíbrio dos polos magnéticos, fenõmenos metereológicos como El Nino, derretimento das calotas polares, além de prejuízos na agricultura, destruição de estruturas urbanas e grande perda de vidas. Já sobrevivemos antes no passado e iremos sobreviver de novo. Assim esperamos.


Fim


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