Father and Son escrita por Menta


Capítulo 1
There's a way and I know that I have to go


Notas iniciais do capítulo

Fanfic baseada no que eu mais amava nessa série quase irretocável que é Breaking Bad: a relação entre Walt e Jesse. A dinâmica entre os dois personagens principais, esta tão confusa e emocionante relação paterna, é o que considero ter sido o motor propulsor do roteiro. Sócios, mentor/aprendiz, cúmplices, por vezes inimigos. Mas, por trás de tudo isso, no final derradeiro... Uma projeção de pai e filho.

Espero que gostem. Eu não mudaria nada no final de Breaking Bad. Podem considerar isso como um "episódio bônus", é claro, se assim merecer ser chamado. Tenho um carinho enorme por essa série, então espero ter feito um trabalho que não envergonharia o Gilligan.

Recomendo fortemente que leiam a fic enquanto escutam Father and Son do Cat Stevens. A letra é simplesmente uma porrada nos sentimentos. Sempre achei que deveria haver um tributo Walt/Jesse inspirado nessa música, então fui lá e fiz um: https://www.youtube.com/watch?v=i3AQG09E0WA

Beijos e boa leitura a todos!

Ps: don't do meth, bitch!



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All the times that I've cried

Keeping all the things I knew inside

And it's hard, but it's harder

To ignore it

If they were right I'd agree

But it's them they know, not me

Now there's a way and I know

That I have to go away

I know I have to go…

Cat Stevens – Father and Son

 




 

Era a manhã do terceiro sábado de junho.

Em uma cidade no centro do isolado estado do Alaska, o ruído do marulhar do rio Talkeetna misturava-se aos sons dos estalos de uma porta de aço sendo levantada. Um estabelecimento comercial abria para os negócios, enquanto a brisa gelada soprava, fazendo farfalhar as folhas das árvores.

Perto da região comercial de Talkeetna, cidade com menos de mil habitantes e assim batizada em razão do rio de mesmo nome que a cortava, o dono da marcenaria local mais frequentada se preparava para mais um dia de trabalho.

Eram apenas oito horas e um cliente já aguardava junto a porta.

— Bom dia, senhor Liebman. — Um jovem rapaz de cabelos encaracolados negros o saudou sem muito entusiasmo, comprimindo um bocejo. Vestia um casaco térmico azul com o gorro cobrindo seu rosto.

Era quase verão, mas fazia frio. Menos de dez graus de temperatura.

— Bom dia — respondeu, cumprimentando o cliente com um tom apático. Tomara alguns remédios ansiolíticos para dormir; ainda estava um pouco grogue.

— Senhor... — O garoto parecia sem jeito. — ...Acho que tem um troço na sua barba. — Apontou para o rosto do marceneiro.

O carpinteiro moveu um dos dedos até sua barba comprida, longa já abaixo do pescoço. Retirou dela alguns restos de cereal. Colocou-os na boca, os mastigando com ruídos displicentes. O jovem cliente balançou o tronco para frente e para trás, as mãos nos bolsos, levemente constrangido.

O dono do estabelecimento entrou, enquanto o rapaz esperava do lado de fora. Alguns pescadores andavam com redes, varas e outros materiais pela calçada, se dirigindo ao rio próximo. Para os padrões do Alaska, aquele era um dia de clima ameno.

O rapaz enfim se sentiu a vontade para entrar na loja quando o marceneiro já ligara todas as luzes e se punha a trabalhar em um projeto ainda não terminado, nos fundos do estabelecimento. Alguns cavalos de balanço, feitos de madeira. Seria seu presente de dia dos pais para o orfanato da região.

— Hã... Senhor Liebman? Você está muito ocupado? — perguntou o jovem cliente, escorando-se no batente de uma abertura que separava a oficina do marceneiro da loja com os produtos expostos.

O carpinteiro levantou os olhos devagar, pigarreando.

— Pode falar, R.G. — disse, tirando as luvas. O cliente deu um meio sorriso.

— Desculpa incomodar, mas é que eu ainda não comprei nada pro meu pai. E, tipo, ele gosta das coisas que você faz. A cidade toda gosta, né — o menino tentou bajulá-lo, mas não surtiu muito efeito.

— Você quer desconto? — indagou o dono do estabelecimento, direto. Reggie Garcia levantou as sobrancelhas e olhou para o piso, desajeitado.

— É que... Você sabe, a fofoca rola solta nesse ovo de cidade... — O rapaz deu de ombros. —  Eu vou ser recrutado depois do verão, sabe-se lá Deus pra onde, e estamos meio curtos de grana lá em casa — o menino tentou se explicar, apelando para o emocional do carpinteiro.

— Se fosse pra sua mãe, eu indicaria aquelas estátuas. São mais baratas. — Apontou para um grupo de estatuetas de índias com crianças de colo. Sempre uma mãe e um filho. Fizera-as todas inspiradas em Andrea e Brock.

— Eu não tenho nada com o tema “dia dos pais” — avisou, sua voz no mesmo tom monocórdio de sempre. Tornara-se muito rouca com o tempo. Talvez pela falta de uso.

— Ah, mas não precisa... Pode ser tipo isso daqui. — O menino se virou para uma estante modular baixa. — ‘Tá quanto?

— Sessenta dólares.

O rapaz assoviou, erguendo as sobrancelhas outra vez.

— Você sabe valorizar seu trabalho — comentou, dando um sorriso acanhado.  Reggie coçou a cabeça, olhando ao redor da loja, indeciso.

O carpinteiro respirou fundo, andando para fora da oficina. Mesmo depois de tanto tempo, depois de tudo o que passara, continuava observador. Continuava empático. Talvez mais do que gostaria.

— Olha, acho que ele ia gostar disso daqui. São quinze dólares. — O vendedor retirou de um dos mostruários um objeto decorativo. Um salmão lavrado em cedro, simulando um peixe saltando para fora d’água. Embaixo, encravado na base do artesanato, lia-se “Talkeetna – AK”. Era um dos itens mais vendidos para turistas.

— Boa. Vou levar! — O garoto se animou, demonstrando interesse. Em seguida, os dois caminharam até o caixa, onde o marceneiro começou a embrulhar o presente depois do pagamento.

— Senhor Liebman, vai sair da cidade amanhã? — indagou o rapaz, tentando ser simpático. O vendedor não levantou os olhos do embrulho.

— Pode me chamar de Joe, R.G. — lembrou-o. O menino levantou os braços, se espreguiçando. — E vou ficar por aqui mesmo — respondeu-o, sem muita emoção.

— Então vai ter de aguentar os convites da dona Sanders — Reggie debochou com um sorriso sardônico. Molly Sanders era uma senhora de idade, responsável pelo orfanato de Talkeetna. Adorava Joseph Liebman pelas doações de seus móveis, brinquedos e diversas obras em madeira.

— Tem coisas piores — retrucou, terminando o pacote e o entregando ao cliente. Queria ter dado um tom menos fúnebre à sua fala, mas não conseguiu. O sorriso de Garcia murchou.

— Boa sorte com o presente. Mande lembranças ao seu pai — o carpinteiro tentou quebrar o ar melancólico.

— Obrigado, Joe. Mande lembranças ao seu pai por mim também! — o garoto se despediu de maneira cortês. Saiu da loja com o presente nos braços, deixando o carpinteiro sozinho com seus pensamentos.

Joseph Liebman passou os olhos por sua loja, silencioso, perpassando as paredes e piso de madeira daquele ambiente pequeno, rústico e acolhedor.

Ele era mesmo um homem de poucas palavras. Um sujeito recluso, quieto, reflexivo, e que passava boa parte do seu tempo se dedicando aos seus trabalhos manuais. Sua loja sempre estava aberta, até nos piores dias de inverno.

 Mas nem sempre tinha sido assim. Em outra época, alguns anos atrás, vivia em um estado norte-americano muito longe do Alaska. Mais quente. Mais populoso. Mais alegre, como ele um dia fora.

Joseph Liebman era responsável pela segunda vida de Jesse Pinkman.

Sua identidade depois de ter sobrevivido às turbulentas consequências da construção do maior império de metanfetamina do sul dos Estados Unidos. Império este conquistado junto a Walter White, também conhecido como Heisenberg.

“Mande lembranças ao seu pai por mim também!”

Jesse fechou os olhos, encrespando as sobrancelhas. Rangeu o maxilar, temendo a sensação que logo viria se apoderar de sua cabeça perturbada.

Jesse não gostava do senhor e a senhora Pinkman, que o trouxeram ao mundo. Rompera com os vínculos familiares de sangue havia muito. O problema era que o rosto que veio a sua mente, depois da fala do garoto, não fora o do seu genitor. E isso o incomodava muito mais do que as lembranças de seus pais.

Nervoso, mexeu nos bolsos da ampla jaqueta que vestia, procurando certo medicamento. Entre antidepressivos variados, achou um frasco líquido de rivotril. Tomou algumas gotas, imediatamente.

Era a única forma de suportar. Não mais se drogava com cristal, ou heroína, ou cocaína. De vez em quando, no máximo, fumava maconha. Olhar para drogas ilícitas era igual a se lembrar de Jane. De Andrea. Brock. Tomás. Gale. Gus. Mike. Lydia. Drew. Todd. Jack.

Era se lembrar dele.

O ansiolítico o impedia de sentir. Ficava em um estado esmorecido, mas calmo, equilibrado por um dia inteiro. Não mais sentia aquela explosão de ansiedade, de ódio, de amargura e de rancor. Aquela sensação de se ver preso dentro da própria mente, perdido nas próprias memórias dolorosas.

No dia seguinte, seria domingo de dia dos pais. Muitos habitantes de Talkeetna viajaram, outros chegavam à cidade. Inúmeras famílias se reuniam naquele final de semana para passarem juntos a data comemorativa.

Jesse Pinkman, por sua vez, dedicou-se a trabalhar a véspera inteira. Só fecharia a loja ao pôr-do-sol, já exausto, depois de terminar mais de uma dezena de modelos de cavalos de balanço para o orfanato.

Aquilo era bom. Ao se ocupar da marcenaria, não pensava, não sentia, não lembrava.  E quando terminava algum trabalho, sentia-se recompensado. Como se ainda conseguisse fazer algo de bom, algo que vinha de si mesmo, de seu próprio trabalho, para os outros.

Antes do final da tarde, uma moça conhecida de vinte e poucos anos veio visitar a loja. Seu nome era Hazel e cursava odontologia em Fairbanks, cidade próxima. Jesse não se lembrava do sobrenome. Sorridente, ela ficou olhando os produtos, elogiando suas mercadorias, puxando conversa e mexendo com charme em seus cabelos dourados.

Jesse percebia que ela esperava que a convidasse para sair. Volta e meia a garota insistia em visitar sua marcenaria com o mesmo ar animado. Porém, não conseguia se sentir impulsionado para agir. A companhia dela era agradável, mas, ao mesmo tempo, tinha de lidar com uma ambivalência interna que o afastava dos outros. Era como se houvesse uma espécie de abismo entre ele, entre ela, entre todas as outras pessoas. Algo que não conseguia se ver transpondo.

Não depois de tudo o que acontecera em sua vida passada.

Depois que Hazel saiu, Pinkman se preparava para fechar o estabelecimento. Contudo, quando se punha a descer a porta de aço de correr, foi surpreendido com mais um visitante.

Dessa vez, não era um cliente.

Um sujeito desconhecido estava parado perto da porta, encostado na parede da loja. Olhava para Jesse com olhos escuros marejados, como se estivesse contendo emoções à flor da pele.

Usava óculos, barba e bigode. Com um boné do Red Sox na cabeça, casaco xadrez e botas, ele se pareceria com qualquer homem de meia idade comum. Mas havia algo de familiar. Na sua forma de olhar.

Aquele homem também parecia reconhecê-lo.

O coração de Jesse acelerou. Tinha sido dado como morto, após muitas buscas por seu paradeiro depois da morte do senhor White.

— Caramba, garoto. — O homem parecia controlar a própria voz, embargada. Parecia verdadeiramente emocionado. — Como você mudou.

Ajeitou o boné de time de baseball, dando mais uma boa olhada em Jesse, de maneira quase fraternal. Como se fossem velhos amigos. Os batimentos cardíacos de Pinkman pararam por um segundo. Identificou o dono daquela voz.

— Só te reconheci pelo olhar. — O forasteiro apontou para o rosto do carpinteiro, dando um sorriso triste.

— Que porra você está fazendo aqui?! — Jesse caminhou ligeiro até o sujeito, querendo enchê-lo de socos. O rivotril não dera conta. Seu sangue já fervia de fúria.

— Calma! — Saul Goodman levantou sua carteira de identidade do bolso da jaqueta. Jesse nem leu, mas parou para olhar de relance. Reparou apenas que era um documento falso, forjado como os dele. Outra identidade.

— Relaxe, eu só estou de passagem. Vou embora amanhã de tarde — garantiu Saul, levantando uma das mãos, tranquilizador. — Eu vim aqui para lhe entregar uma coisa. Algo que já devia ter feito anos atrás. — Seu semblante revelava uma expressão culpada.

Aquilo não diminuiu a raiva de Jesse. Fora Saul que concordara com o senhor White naquele maldito plano de envenenar Brock. Fora todas as inúmeras tramoias que os dois deveriam ter imaginado para manipulá-lo.

— Eu não quero nada que venha de você! Sai de perto da porra da minha loja! Não quero ver sua cara nunca mais — ratificou, enunciando as palavras, seu tom de voz algumas notas mais altas. Mais próximas do timbre de Jesse Pinkman, e não de Joseph Liebman.

Sem se abalar, Saul Goodman continuou movendo uma das mãos de forma conciliadora, pedindo paciência. Pigarreou e se explicou.

— Não vem de mim. — Saul retirou um envelope do bolso do agasalho e o estendeu para Jesse. Seus olhos desceram na direção do papel branco, um pouco amarelado com o tempo, enquanto Goodman o virava. Mostrou para Pinkman o que estava escrito no lado do destinatário.

“Jesse”

Seu coração ribombou em seu peito.

— Eu. Falei. Para. Sair. Daqui! — repetiu enfático, empurrando rispidamente Saul. Não queria lembrar daquilo. Nunca mais. Nunca mais.

O sujeito que um dia fora seu advogado cambaleou para trás, escorregando na calçada. Apoiou-se outra vez contra a parede da loja, mas Jesse logo o puxou pelo colarinho. A carta caiu das mãos do homem de boné, flanando até a sarjeta.

— Garoto, por favor, me escute! Eu prometo que nunca mais vou te incomodar! — Goodman suplicava, tentando uma saída racional, mas Pinkman mal conseguia lidar com a própria revolta. Uma mistura de tristeza e ódio perfurava seu peito, como se fosse esfaqueado de dentro para fora. Queria descontar tudo em Saul, entortar com as próprias mãos a cara daquele filho da puta. Mas de que adiantaria? O mal já estava feito.

Já estava escrito, perto dos pés deles.

Pensando se algum pedestre ou carro passando poderia testemunhar aquela briga, Jesse resolveu soltar o visitante, se afastando dele, mas mantendo um olhar furioso em suas íris. Saul tossiu, recompondo-se.

— Antes de terminar com tudo... Do jeito que você sabe como foi. — Saul tentava ser o mais sucinto possível, sem diretamente tocar naqueles assuntos confidenciais reservados às suas outras identidades. — Ele visitou algumas pessoas. Fiquei sabendo que conseguiu deixar dinheiro para os filhos, por meio daquela companhia. — Se referia aos donos da Grey Matter Technologies. — Entregou o lugar onde o cunhado e o latino morreram para a mulher dele, que conseguiu um bom acordo com a promotoria. Está livre agora — contou Saul.

— Estou pouco me fodendo — rebateu Jesse, quase rosnando.

— E... — Goodman levantou o dedo indicador, demonstrando que ainda não havia terminado. — ...Eu não sei como ele fez isso, não sei mesmo, porque aquele cara que eu indiquei para nos fazer sumir não era desse tipo de coisa, impossível de rastrear, eu achava... Mesmo assim, ele conseguiu me deixar essa carta, antes de, bem, fazer o que fez. — Apontou para Jesse. — Tinha um papel para mim também. Só recebi ambos um dia depois da morte dele, e, bem, o resto é sua história. — Tirou uma folha de caderno do bolso e a mostrou para Pinkman.

Seu último trabalho: encontre-o e lhe deixe essa carta.

— Eu passei alguns anos querendo me esquecer disso. Confesso que tentei jogar fora. — Saul levantou as sobrancelhas enquanto Jesse crispava os lábios, controlando um turbilhão de emoções diferentes. — Mas não consegui. Era minha última tarefa, sabe? Eu... Eu não sei... — perguntou retoricamente, confuso.

— ...Enfim, meu trabalho acabou. Definitivamente. Demorei alguns anos, mas consegui te achar. Não se preocupe, ninguém além de mim sabe que você está vivo e que está aqui. — Saul pareceu finalizar a explanação.

— É bom ver que está bem, garoto. Que tem uma vida nova. Uma vida melhor — ressaltou Goodman, tentando dar um sorriso para Jesse enquanto guardava o papel com as instruções de Walter White. O ex-pupilo de Heisenberg continuou em silêncio.

— Espero que um dia possa me desculpar por tudo. — Fitou Jesse com os mesmos olhos lacrimosos do início da conversa. Pinkman não se sentiu particularmente comovido, apenas raivoso e angustiado.

— Estou no Grace and Bill’s Freedom Hills. Ficarei no bar do hotel hoje à noite, se quiser conversar — Saul se despediu, dando um último olhar empático para Jesse. Seu antigo cliente se manteve silente, e Saul Goodman levantou uma das mãos em um sinal de adeus, caminhando pela calçada na direção oposta.

A carta destinada a si continuava na sarjeta.

Urrando de raiva, Jesse chutou a porta de aço que já havia descido por inteiro, o som reverberando até a esquina. Olhou assustado para os lados, mas ninguém atestara seu descontrole. A rua estava vazia. Até Saul já havia ido embora.

Ele juntou os punhos contra a porta, escondendo o rosto nos braços erguidos.

Ainda não tinha acabado?

Aquele sujeito maldito o atormentaria até depois de morto?

Outra brisa gelada o acordou de sua inquietação. O envelope voou metros longe, parando no meio da rua. Ele seguiu o movimento, piscando algumas vezes. A certa distância, ouviu o som longínquo de um carro se aproximando.

Sem entender por que, Jesse Pinkman não pôde evitar. Correu até a carta, a tirando do asfalto, evitando que fosse atropelada ou sumisse de vista. Trincou o maxilar, abrindo a loja outra vez, puxando a porta de aço para cima e entrando em seu estabelecimento. Depois, fechou-se em sua marcenaria.

Subiu até o depósito do segundo andar, local que havia transformado em um apartamento. Pegou o destilado mais forte que encontrou, um whisky velho, e desceu. Tomara algumas doses de ansiolítico naquela manhã, mas não se importou com o risco. Bebeu um gole generoso e o líquido desceu rasgando sua garganta, ardendo pelo teor alcóolico elevado. Em poucos minutos, a bebida potencializou o efeito do calmante. Continuou bebendo a garrafa, ainda indeciso sobre o que fazer. Acabou bebendo todo seu conteúdo.

Irritado, cansado e emocionalmente desgastado, decidiu subir para seu apartamento e tentar se distrair. Passou horas buscando enganar sua mente, mas seu pensamento volta e meia voltava para a carta deixada no balcão da oficina.

Desistiu. Andou de um lado ao outro dentro do apartamento, até achar um isqueiro. Acendeu-o com as mãos trêmulas, assim como seus lábios. Crispando o cenho, tentando controlar sua garganta trancada, Jesse sentiu lágrimas subirem aos olhos. Desceu até a marcenaria, andando até o balcão enquanto estalava o isqueiro. Pegou o envelope nas mãos, e se pôs a queimar a borda.

“Mande lembranças ao seu pai por mim também!”

Ele zuniu o isqueiro longe, derrubando uma galinha de brinquedo que fizera. Jesse Pinkman se jogou em um banco. Escondeu o rosto nas mãos, abafando uma exclamação alta de lamentação.

Finalmente arrancou a carta do envelope parcialmente queimado.

“Jesse,”

Ele se lembrava perfeitamente da voz daquele sujeito. Ecoou em sua cabeça, como se estivesse sentado na sua frente, chamando seu nome. Ficou zonzo pelo misto de emoções controversas que se apoderavam de si.

Teve de baixar a carta e respirar fundo para começar a ler novamente.

“Eu não estou escrevendo isso para pedir desculpas. Nem para tentar me redimir.”

Crispou os lábios, mordendo a própria mandíbula. É claro que ele não pediria desculpas. Ele era um filho da puta maldito. Um escroto. Um psicopata egoísta. Era o demônio em pessoa.

“Enquanto escrevo, não posso saber o que você decidiu. Não sei se me matou depois que me livrei de Jack, de Lydia e dos outros para tentar te salvar. Se o fez, não o culpo, e espero que não se culpe também.”

A respiração de Pinkman estava descompassada. Tinha lágrimas quentes crescendo em seus lacrimais, que não conseguia segurar.

“Eu estou escrevendo para que possa me despedir com mais calma. Para que você saiba um pouco da verdade, depois de tudo. Para tudo ter um... Encerramento.”

Para que lia aquilo? Para que se torturava tanto? Aquele monstro conseguiria manipulá-lo mesmo enterrado a sete palmos debaixo da terra?

“Eu não vou mentir. Não vou fingir que não queria que você morresse, por um tempo. Eu realmente quis. Acreditei que você tinha estragado tudo. Que a culpa era toda sua.”

Os dedos de Pinkman começaram a amassar as bordas da carta. Rasgaram-na um pouco.

“Porque era mais fácil. Como era mais simples dizer que fiz tudo o que fiz pela minha família. Mas não é verdade. Admiti para Skyler minhas reais motivações. Eu tenho orgulho do que construímos. Do que iniciei. Eu fui feliz, Jesse. Eu estava vivo, eu me alegrava por acordar todos os dias e cozinhar metanfetamina com você.”

Aquilo era horrível. Era doentio, era sinistro. Mas por que ele não podia parar de ler?

“Mike morreu porque eu o matei. Hank morreu porque eu o matei. Gus. E tantos outros. Eu realmente sinto pela morte de Hank. Não queria que tivesse sido assim. E, agora, também tenho mais clareza. Não quero mais que você morra. Senti tanta raiva, Jesse. Tanta raiva. Não nego que te manipulei muitas vezes. Não nego que te usei.”

O queixo de Pinkman tremia. Já chorava abertamente, a raiva, a tristeza, e toda a dor do passado que há tanto o atormentava, irreprimível.

“Mas desde o começo do nosso trabalho, manter você vivo era uma das minhas prioridades. Acho que nunca deixei isso claro o suficiente. Culpei você pela morte de Hank, mas quando descobri recentemente que alguém andava produzindo metanfetamina com 96% de pureza, foi como se eu recebesse uma segunda chance. Algo que já não existia nas minhas perspectivas.

Eu sabia que era você, Jesse. Só poderia ser você.”

As lágrimas já manchavam seu rosto, perdendo-se nos fios de sua barba cheia. Com seus olhos brilhando pelo pranto, mais do que nunca ele aparentava ser o garoto que um dia fora. O aprendiz de Heisenberg.

“Decidi que era assim que eu queria partir. Não me prenderiam. Não teriam o gosto de me levar. Meu último feito na vida seria te libertar. E, depois, eu poderia morrer. Assim escolhi. Eu não posso mudar o que foi feito. Meu tempo acabou. Mas o seu não.”

Jesse soluçou. Tanta amargura, tanto sofrimento. Mesmo depois de diversos anos, ele carregava aquilo consigo. Talvez carregasse para o resto da vida.

“Jesse, você é melhor do que eu. Eu, que estudei a vida inteira, e só em meus últimos anos fui reconhecido de alguma forma. Você é jovem, e não sei quem lhe impediu de se enxergar a si mesmo, mas você tem um potencial inexplorado imensurável. Antes, eu te julgava como só mais um moleque estúpido mimado, viciado, decidido a jogar uma vida já ganha no lixo.

Mas você aprendeu a produzir metanfetamina tão boa quanto a minha. Sem nenhuma qualificação formal. Tirando aquelas notas patéticas no colégio, nas minhas aulas.”

Ele tentou secar o canto dos olhos, mas as lágrimas persistiam.

“Você é notoriamente inteligente e capaz. Nunca lhe disse isso, e deveria ter falado. Como tantas outras coisas não ditas. É por isso que precisei escrever essa carta.

Sei que poderá construir uma vida nova, em outro lugar. Você tem força para tanto. Tem toda a capacidade. Espero mesmo que, quando tiver a oportunidade de ler isso, já tenha uma nova história pela frente. Uma só sua, não mais na minha sombra.

Espero que se case, que tenha filhos, que encontre uma profissão que o recompense. Espero que deixe tudo o que passamos para trás. Espero que, ao se libertar de Jack e dos outros, se livre de todo o mal que um dia eu também te fiz.

Gostaria de ter podido lhe deixar um pouco do nosso dinheiro, mas sei que jamais o aceitaria. Honestamente, acho que não vai precisar da minha ajuda quando já estiver livre. Nunca precisou.

Era eu quem precisava de você.

Você merecia mais do que isso.

Jesse, eu sinto muito pelos seus pais. Pela família que deve ter tido. Trabalharmos juntos foi o que nos aproximou. Ironicamente, acho que eu poderia dizer que te conheço melhor do que conheço Walt Jr. e Holly.

Você provavelmente não se lembra, mas, nas aulas de química, eu costumava iniciar o curso dizendo que o estudo da química é o estudo da matéria. Na verdade, gosto de focar nela como o estudo da mudança.

Elétrons mudam seus níveis de energia. Moléculas mudam suas ligações. Elementos se combinam e se transformam em compostos. E isso é tudo na vida.

 É a constante, é o ciclo. É solução e então dissolução, de novo e de novo e de novo. É crescimento, então decadência e então transformação, sempre tão fascinante. É uma vergonha nós não pararmos para pensar a respeito.

Com novos elementos, meus compostos mudaram. Sabe, quando comprei minha casa com Skyler, anos e anos atrás... Eu disse a ela que um dia teria três filhos.

Acho que estava certo.

 

Espero que seja feliz.

Adeus, Jesse.

 

 

Walter White.”

 

 

 

Ele leu o último trecho sem interrupção. Algumas gotas de lágrimas se desprenderam de seu rosto, manchando partes do papel já embotado pelo tempo.

Surpreendentemente, o angustiante misto de emoções que se digladiavam dentro dele pareceu se acalmar. Como se uma delas superasse as outras, tomando conta. A tristeza inexpugnável que o acometia o impedia de pensar. Só conseguia chorar. Sem mais gemidos aflitivos, sem mais grunhir de ódio. Ele se entregava ao pranto, sozinho, por inteiro.

Era aliviante. Catártico.

Finalmente se permitia vivenciar uma partida. Ao enfim assumir para si aquela perda. Enfim um real ponto final.

Walter White se fora. Era o fim de Heisenberg. E com ele Jesse Pinkman, aquele Jesse Pinkman, morrera também.

 Joe, Jesse, Liebman, Pinkman... De que importavam os nomes? Ele já era outra pessoa. E realmente ganhara um futuro. Um futuro livre das amarras que o prendiam, diferentes dos grilhões de Jack. Amarras simbólicas, de lembranças, de emoções mal resolvidas... Que ele insistia em não ver.

O senhor White enfim fizera algo de bom para ele.

Sozinho em sua oficina, Jesse se lembrou de algo importante. O primeiro material que lavrara ao abrir sua carpintaria em Talkeetna.

Foi até as prateleiras do final da área onde esculpia. Na última delas, estava uma caixa solitária. Listrada em mogno, polida, minuciosamente carpida. Similar ao seu primeiro trabalho, ainda na época da escola, do qual tanto se orgulhara. Nunca soube o que guardaria dentro daquela caixa pequena.

Até então.

Jesse Pinkman pegou a carta que continha as últimas palavras de Walter White. Guardou-a dobrada no envelope, tal como o recebera. Colocou-o dentro da caixa, e fechou a tampa.

Pestanejando, olhou em seu relógio de pulso e viu que já passava da meia-noite.

Já era dia dos pais.

Assim, se pôs a apagar as luzes da oficina, para enfim fechar a loja. Decidiu ir para o bar mais animado da cidade. Não o bar onde estava Saul. O bar onde provavelmente estaria Hazel.

— Adeus. — Dando uma última olhada para a caixa no canto oposto da marcenaria, Jesse se despediu de seu passado. Despediu-se de seu mentor. Seu algoz. Sua figura paterna.

A carta ficaria para sempre guardada naquela caixa.

Ele não precisaria abri-la outra vez.


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Notas finais do capítulo

Como disse o Vince Gilligan, gosto de imaginar que o Jesse teve uma vida finalmente feliz no Alaska. Cercado pela natureza, ganhando um recomeço de verdade depois desse adeus.

Aguardo comentários. Espero ter conseguido emocioná-los e dar uma despedida bonita para esses dois.