À cruz no princípio escrita por Edgar Varenberg


Capítulo 1
À estrela no fim


Notas iniciais do capítulo

As maiores inspirações para esta one-shot foram:

1 - O "End of Time" do jogo Chrono Trigger;
2 - O poema "Bilhete", de Mário Quintana;
3 - O poema "Inscrição para um portão de cemitério", de Mário Quintana.



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“Mas será que nunca deixo de lembrar que te esqueci?”

(Mário Quintana)

Não é muito comum que tal luminosidade particular abranja campos tão físicos, mas metaforicamente falando não há nada de físico, muito menos no dedo que compõe a obra, é um desafio a tocar. Na aura do silêncio dos pensamentos perfeitos, na área do asfalto pedregulhoso que deixava de existir após o segundo metro quadrado; rumores de que o tempo não funcionava por aquelas bandas, como um lar para destinos desfigurados.

Apesar da coluna mal encaixada no poste fino, da ausência de mariposas no óbvio calor da luz não-material, nada parecia preocupar a quem pisava numa realidade de poucos — por poucos e em poucos —, como se devaneasse num acidente de ônibus, a viuvez sem a morte ou a física sem um vetor. Nem frio, nem quente, nem zero graus ótimo. Apenas total imersão ao que fugia atenção de um acontecimento bem maior.

— Tão jovem... — A princípio, pareciam as sombras — Um garoto como você não deveria estar aqui.

Garoto? Aqui? O garoto encostado no poste, no vão dos pensamentos, é claro.

— Desculpe, estava pensando — respondeu o menino.

— Tão jovem e tão familiarizado — Já não eram mais as sombras. A princípio, um homem. — O que o fim dos tempos te reservam?

— Quê?

— Ora, você não...

— Não.

— Faz sentido — suspirou o que agora era a certeza de um homem com chapéu — Juventude e inconsciência sempre combinaram muito bem. Principalmente em mergulhos sem fundamento como este. Porém, ainda assim, um garoto como você não deveria estar aqui.

O garoto não parecia se importar.

— Qual o seu nome, jovem?

— Mário — Para muitos, a forma instantânea de resposta, em fragmentos de segundos tão complexos, seria assustador, mas o homem, particularmente, parecia gostar.

E o homem sorriu.

— Eu gosto desse nome. — disse ele, também se encostando ao poste, que mal permitia um humanoide. — E no que pensas?

— Poesia.

Talvez para quem ainda tivesse um mínimo de físico no existir não pudesse enxergar com clareza, mas estava clara a transposição de sentimentos, o quanto a escuridão parecia menos escura de vez em quando, ou quando ela parecia mais confiante; no sentido de estar mais segura a se observar. Das apatias à parte, das curiosidades a preencher, o que parecia o fim dos tempos mais parecia um cenário barato que não enriqueceria nem o mais necessitado de espírito, mas todo um ditado poderia ser convertido em prol de uma busca que se relacionasse com tal momento.

Estranhamento. E em que tipo de história o sábio se tornaria o sujeito de aprendizado? Por que nossas cabeças insistem em dizer que quem tem experiência não pode mais adquiri-la; e quem não tem não pode ainda transmiti-la? Que chave de sabedoria perdida seria esta, ou melhor, que tipo de sabedoria se sustentaria como uma chave dessa forma? É que o desfigurado traz as mais diversas surpresas, e um jovem estar num lugar como aquele é a menor delas.

Tamanha reflexão percebe-se em qualquer existência que goste minimamente de encaixar peças. Que tamanha desfiguração configuraria um ser a estar presente em trevas tão sagradas? Ou por que a detenção de tamanho conhecimento localiza-se tão inalcançável? Se humanos fossem tão humanos e fantasmas fossem tão fantasmas, a história acabaria por aqui. Entretanto:

— Eu não enten... — disse o jovem

— Eu gosto de... — disse o rapaz

Ambos ao mesmo tempo. Um interrompendo o outro. O silêncio para ver qual gesto de educação prevaleceria e qual seria a primeira deixa de fala.

— Poesia. — Houve uma breve espera para que o homem tivesse certeza de que poderia falar e que realmente a brecha fora dada — Eu gosto muito. Escrevia muito também.

— Eu não entendo o porquê de doer tanto — o jovem finalmente disse.

— Se és o autor, poesia geralmente dói mesmo. Mesmo sendo uma ignorância.

— Para ser sincero, eu não conheço o autor.

Humanos soberbos e hereges que ainda cumprimentam as palavras sem conhecerem as origens. É provar da carne sem ter tocado a pele; covardemente fácil. E o simples e provável sábio senhor queria até poder dar boas palavras de sermão, construir paradigmas e gigantescas reflexões, mas nem ele sabia. O fluxo de conversa ali reinava como sabão na água; transbordava e escorria, até limpava, mas morria sem uma função que equivalesse tal união. Exatamente quando algo não vale a pena.

Decidiu que seria a última tentativa.

Na verdade, antes disso, recebeu um toque tímido do menino que entregava uma folha de papel dobrada.

Leu calmamente. Deu um pequeno sorriso, como se estivesse recebendo um familiar.

— É um conteúdo interessante — concluiu o rapaz — Mas por que isto te afeta? Não vejo negatividade.

— É um bilhete de encerramento, não de saudação.

Pararam, inconscientemente, para pensar. Tudo começando a se entender...

— Não é um bom jeito de usar poesia, tenho que admitir. — mostrou-se surpreso o homem — Nem muito gentil de uma moça. Usar a alma de escritores assim de forma tão fora do objetivo primordial pode fazer com que ele não descanse em paz temporariamente e vá ter que servir de lição para alguém.

— Eu não sei em qual século você vive, mas saiba que eu gosto de homens. — o jovem pareceu se irritar, como se fosse algo inaceitável — Nenhuma moça está envolvida.

— Nunca vi um caso assim antes. Talvez seja o fato de ser tão intrigante.

— Não sabia que alguém tão atrasado abrigava minha consciência.

O homem riu.

— Achas que estás no controle das coisas e dentro da própria consciência... Seria uma mente e tanto caso fosse verdade. Nenhum de nós deveria estar aqui, juro que tentei enxergar motivos, mas não encontrei um por quê.

— Se você entrou, sabe como sair.

Velhos sempre desprevenidos em relação à prudência dos mais jovens.

Se ambos enxergassem a oportunidade que estavam enfrentando, teriam revelações identificadas a universos jamais exploráveis novamente; conceitos de verdade transformar-se-iam em relatos de puro conhecimento jamais humanamente adquiridos. Mas não. Eles só estavam ali, sofrendo choques de ideia. Um não fazendo ideia da importância do outro.

— Talvez tenhas merecido este bilhete.

Cruel.

Vê-lo choramingar não foi a melhor sensação de um dito sábio a dar para o seu aprendiz. Tudo bem, talvez ele não merecesse tanto assim tal bilhete; afinal, quem em sã consciência gostaria de experimentar o amor bem baixinho, de se poupar os telhados e os vizinhos. É como querer conservar um grito dentro de um pote de vidro.

Qualquer ser extremamente sensível a comunicação já teria delirado naquela conversa extremamente sem qualquer resquício de tentativa fática, como se fossem estranhos dialogando, obrigatoriamente, pelo celular, quando na verdade ninguém é obrigado a nada, mas as pessoas gostam de ser obrigar para ter desculpas do quanto são mínimas e irrelevantes.

— Às vezes é bom ter uma companhia — disse o garoto de repente — Não como uma necessidade, mas a companhia tende a trazer mais facilidade para a vida, para os conceitos, até mesmo de pessoas para pessoas. Não consigo definir muito bem, mas é como se existisse uma ligação, o que um sofre; o outro também sofre, mas a dor é dividida pela metade. O que um comemora, o outro também, e é uma comemoração dividida em duas. Dividir é bom. Se um coração pode ficar feliz, por que não dois?

— Ah, meu jovem. A vida tem dessas coisas. As pessoas vêm e vão. Eles passarão; você passarinho.

 — A vida tem dessas coisas porque permitimos. As pessoas vêm porque nós as acolhemos; assim como vão porque nós damos essa brecha. Se eles passam, eu não tenho que continuar no ninho.

Quem era aquele garoto na fila do pão mesmo?

— Sim, mas...

— Você tem um conceito muito conformista do sentido da vida. — Que jovem, hein! — Do que adianta aceitar as coisas por puro destino se sabemos que isso traz o fim que todos conhecem? Sim, que o fim é impossível de impedir, é óbvio, mas o caminho até ele pode ser escolhido, modificado e entendido. O fim é imutável, o meio jamais.

— Isso é bem pós-moderno, assim por dizer, não sei bem. — disse o homem — Por isso é importante pôr-nos a cruz no princípio, e a luz das estrelas no fim.

— Você daria um bom poeta, hein.

O espanto na alma do homem fê-lo configurar certos conceitos que só aquela alma compreenderia no campo das palavras. Mesmo que influente no sentir, ainda seria algo de extrema delicadeza de percepção; muitas horas anuais de olhos fechados seriam necessitadas para a compreensão de tal experiência. Vulgar foi pensar de que viera de uma breve frase, nem um pouco construída, totalmente ignorante, mas, ainda assim, completa e repleta de verdades.

Se a consciência estivesse no lugar certo, seria um absurdo ouvir tais palavras.

— Difícil perder tal companhia? — perguntou o homem.

— Ah, é que não é todo dia que você tem compreensão a qualquer momento. É um conforto diferente, todo mundo sabe. E...

Esperou-se o aditivo, porém ele não ocorreu. Tudo aquilo já estava deixando os campos do plural, tornando-se inapropriadamente singular, que barrava com qualquer sentido de tal encontro; era como se a transparência estivesse tão verdadeira que estava começando a ganhar os primeiros tons de invisível. Mas a corrosão de algo que está prestes a desaparecer, principalmente no campo espiritual, é como vírus terminal; logo o invisível também estaria intocável, indizível e, por fim, inexistente.

As ideias, as conquistas, até mesmo o campo do saber está sempre em mutação. E o sábio clichê sentia-se burro, era muita modernidade para aquela mente que cresceu diante de realidades onde as mudanças eram outras. Mais irônico ainda é um ser que antes brigava por revolução, agora estava sendo vítima dela. Egoístas somos, pois queremos revolução só para gente; bom, pelo menos é o que humanos até então pensavam, as novas gerações sempre estiveram existindo para contestar. Talvez o jovem Mário não concordasse com isso, por exemplo.

— Até que ele fodia bem — Sem comentários.

— Estou confuso — resmungou o homem.

— Estamos.

— Até mesmo os grandes poetas precisam aprender uma lição.

— Precisam.

E aquela forma monótona do início voltou. Não mais como a cruz no princípio, mas talvez como a estrela no fim. E o bilhete continuava sendo uma forma muito errada de compor poesia; onde estaria a lição?

— Ainda acho que você não deveria estar aqui.


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Notas finais do capítulo

Acaba que fica uma homenagem a Mário Quintana (apesar de eu não gostar tanto assim dele). Espero que tenham gostado.