Liberta-me escrita por Teddie, Jules


Capítulo 5
Jardins da saudade


Notas iniciais do capítulo

Jules (@reine.roses): Aproveitem o capítulo, diluímos a angústia dessa vez (:

Teddie (@strngbird): Eu particularmente gostei desse capítulo, está um pouquinho mais próximo do meu favorito (no spoilers). E o título parece nome de cemitério (de fato é)

Desculpas pela demora, a gente ficou muito intensa nesse negócio de Katya Zamolodchikova hihhihih brincadeira. Agora sério, temos uma vida (mais ou menos) e às vezes fica difícil conciliar os dois. Fora que a gente escreve muito, nossos capítulos são longos e isso é um pouco exaustivo.

A gente gosta, no entanto. Desculpa mesmo a demora. Esperamos que gostem.



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Você pertence entre as flores silvestres
(...)
Você pertence a algum lugar em que se sinta livre
Fuja, encontre um amante
Vá a algum lugar totalmente brilhante e novo
— Tom Petty

 

— Isso é absoluta perda de tempo — Isabelle resmungou enquanto levava os dedos aos lábios depois de furá-lo pela quinta vez. — Não sei por que preciso aprender a bordar, Maia.

— É necessário ser prendada para a vida de casada — a Lightwood revirou os olhos e soltou um bocejo — Já bocejou vezes demais senhorita. As acomodações não estão do seu gosto?

Isabelle se alarmou. Gostava de Maia e não queria que ela levasse bronca por algo que não tivesse culpa. Até porque gostava de seu quarto, era acolhedor e confortável. De alguma maneira era mais seu quarto em três semanas do que aquele em que passara seus dezesseis anos. O cheiro de seus óleos e o aroma suave do unguento especial era mais familiar que o cheiro pungente das rosas que Maryse fazia questão de entupir em seu antigo quarto.

— Absolutamente, Maia. Meu quarto é magnífico, mas obrigada pela preocupação. — sorriu delicadamente para a dama de companhia, que também tinha abandonado o bordado. — Venho tendo pesadelos estranhos desde... bem, desde o que causou aquelas cicatrizes em minhas costas. Tinha esse violoncelista no baile e ele fez uma bagunça colossal, todavia tocava com a alma, sabe? Marcou-me de um jeito estranho. Toda noite sonho com o baile, ele está lá tocando e Lorde Montgomery me ataca de alguma maneira. O som do violoncelo fica reverberando na minha cabeça por horas, até o Sol nascer. Fora pior nos primeiros dias... — deixou a voz morrer.

Inusitadamente, sentia-se melhor por ter falado com Maia. Sentia-se mais leve, como se um peso tivesse saído de suas costas. Vinha trazendo os pesadelos com o violoncelo e a imagem turva de Lorde Montgomery desde que soubera que ia se casar com ele. Imaginava sempre as piores coisas e ele se mantendo secreto não ajudava muito.

Ainda conseguia se lembrar do pesadelo horrível e da voz firme e familiar em seu quarto, mas era tão perturbador que ela preferia apagar de sua memória, fora o mais lívido de todos. Agora eram mais turvos, pareciam com o que sonhos deveriam ser. Dançava com Lorde Montgomery até ele algemá-la e prendê-la contra ele, enquanto ela implorava para ser liberta. Igual ao primeiro sonho que tivera com ele. Sempre acordava ao nascer do Sol com as notas finais da música reverberando em seus ouvidos e não conseguia mais dormir até Maia aparecer para acompanhá-la ao desjejum.

— Lorde Montgomery não é esse monstro que imagina, senhorita. É um homem muito generoso e piedoso.

— Mediante fazerem o que ele deseja. É, eu sei. — fitou gravemente Maia, que sustentou o olhar com uma pitada a mais de raiva.

A mente de Isabelle trabalhou rapidamente e ela logo entendeu a situação. Será que Maia nutria sentimentos pelo patrão? Será que eles... Fazia sentido, apesar de incomodar Isabelle levemente. Era considerado normal que os patrões se deitassem com as empregadas, embora ela considerasse uma enorme falta de respeito para com as esposas e até mesmo com as próprias criadas, que nem sempre tinham escolha. Além disso, não parecia algo que Maia faria, mesmo que ela não conhecesse bem a jovem.

Parecia algo platônico mesmo. Mulheres eram fracas, Isabelle chegou a conclusão, sempre se interessavam pelo que menos era apelativo. Maia gostava de Lorde Montgomery, ela mesma não tinha sido chicoteada à toa, era a punição por se sentir atraída por Meliorn.

— Está enganada — a voz de Maia tirou Meliorn de seus pensamentos. — Chateia-me profundamente que a senhorita se deixe levar por rumores tão absurdos, especialmente a senhorita.

Isabelle sentiu algo se remoer dentro dela. Imaginava que Maia não soubesse de todo o escândalo que ela se envolvera antes de ir para a mansão, mas devia saber que era só o bom senso de Maia de não julgar sua futura patroa. Entendeu o que a dama de companhia quis dizer, havia milhões de histórias sobre a moral dela sendo contadas por toda Idris, já que quase todos estavam em seu baile.

Não deveria julgar, mas também não confiava no homem que iria se casar. Não confiava em homem nenhum. Todos os principais homens em sua vida a decepcionaram de alguma maneira. Ouvia toda noite seu pai se esgueirar pelo quarto de alguma criada e depois começou a espancá-la sempre. Alexander tinha tido nervos para ir embora e deixá-la com ele. Como confiar em qualquer homem depois do que passou?

Não deveria julgar, mas sentia que tinha algo estranho em torno de Lorde Montgomery. E sabia que não era nada bom.    

— Eu não sou de Idris — Maia começou e Isabelle franziu o cenho para a aleatoriedade do assunto — Meus pais morreram quando eu era muito jovem e eu fui criada praticamente pelo meu irmão, Daniel. Ele... não era uma boa pessoa. Desde pequeno ele sempre teve atitudes controversas: arrancava as asas das borboletas, sufocava os gatos que apareciam, sempre me machucava. Papai e mamãe nunca acreditaram e mim já que Daniel era filho homem e o primogênito...

— Não precisa continuar se não desejar, Maia — Isabelle se apiedou, vendo a dor no olhar de Maia.

— Está tudo bem — a dama de companhia continuou — Depois que meus pais morreram, Daniel foi o responsável por mim. Não era fácil, ele me machucou de maneiras impronunciáveis. Contudo todos gostavam de Daniel, ele era bonito, carismático e inteligente. Nunca me machucava onde pudessem ver e à noite... Um dia eu fugi. Não sabia para onde estava indo ou como sobreviveria. Eu mendiguei pelas ruas, vendi tudo que eu tinha levado e ainda tinha que me esconder de Daniel, que tinha mandado homens em minha procura.

“Um dia eu estava por esse beco, raspando o fundo de um prato de comida que eu tinha ganhado e ele apareceu, o Lorde Montgomery. Ele foi a primeira pessoa a ser simpática comigo em anos. Eu não confiei no começo, porém ele foi insistente, me deu de comer, me ouviu e me ofereceu ajuda. Disse que me abrigaria em seu lar que eu seria como sua irmã, mas eu não quis”.

— E por que não? — a voz de Isabelle era suave, mas desconfiada.

— Não seria justo. Convenci-o de que seria apenas a governanta daqui e isso me bastava. Nunca quis muito, só não queria mais Daniel em minha vida. Desde então eu trabalho aqui. Tem dois, três anos; perdi a conta, já.

— E... Daniel? — perguntou receosa.

— Morreu — a voz de Maia era seca, sem nenhum traço de luto — Não sei como e não me importei em saber. Devo admitir, no entanto, que meu coração ficou bem mais leve.

As duas ficaram em silêncio um tempo esperando a história afundar nos pensamentos de Isabelle. Maia não a apressou, sabia da importância do que dissera e se permitiu revisitar o sentimento de gratidão pelo lorde que saturava suas memórias mais amargas.

A jovem Lightwood não soube identificar os sentimentos que rodeavam as informações recém adquiridas sobre seu noivo. Virou o olhar novamente para Maia, que tinha voltado a bordar flores azuis no pano branco. Não sabia exatamente o que dizer, ou sequer se devia dizer algo, só que sentia a necessidade de falar, de se expor de alguma maneira.

— Sabe as cicatrizes em minhas costas? Foi meu pai. Meu irmão mais velho fugiu de seu casamento e meus pais nunca mais foram os mesmos. Apanhei muito nesse último ano e meu pai parecia ser muito adepto do chicote. Eu tinha esse... amigo e Robert não gostou de nos ver juntos. O resultado é bem óbvio.

Ela esperou o olhar de pena vindo de Maia, mas ele nunca chegou. Imaginou que com tudo que aconteceu com a vida da acompanhante, sentir pena de Isabelle estava em último em sua lista de prioridades. Tinha compaixão no lugar, compreensão, cumplicidade. Cada dia gostava mais de Maia.

— Contei-lhe minha história para que entendesse que o lorde não é o monstro que as pessoas costumam pintar. Pode não entender hoje, ou amanhã, mas vai chegar o dia que compreenderá que ele te salvou. Vou ficar feliz em ver esse dia chegar.

Isabelle não respondeu, focou-se em seu bordado, a tentativa de rosa parecendo apenas um borrão vermelho e mal feito no tecido branco. Não queria falar nada, queria ir para longe de Maia, longe daquela casa. Não entendia como a situação em que se encontrava poderia ser considerada algum tipo de salvação. Por enquanto tudo que conseguia ver eram todas as possibilidades que um casamento infeliz com alguém indesejado poderia trazer e todas que foram arrancadas dela contra sua vontade.

Outra vez, a presença de todas aquelas pessoas novas ao seu redor a distraiam de seu foco, principalmente depois de todas essas descobertas sobre sua nova vida. Precisava de algo conhecido ao seu redor. Precisava de solidão.

Olhando para o horizonte, viu Eric passando rapidamente pela propriedade montado em um corcel ágil de pelo caramelo escuro, a crina longa flutuando por causa da velocidade brilhava debaixo dos raios de sol do fim da manhã; as patas manchadas de preto se tornando um borrão sobre a grama. O homem na cela era claramente habilidoso e provavelmente passara a vida fazendo aquilo. A cena causou um aperto no coração de Isabelle, sentia saudade da sensação do vento no rosto e principalmente de Hunter, seu amigo e cúmplice.

— Aquele com Eric é Daylighter, o cavalo de Lorde Montgomery.  — Maia comentou divertidamente, vendo o olhar de Isabelle seguindo o cavalo.

Ah... ah.  Aquele dia estava sendo totalmente controverso. O cavalo de seu noivo não era negro como ela sempre pensara, tinha uma beleza imponente e delicada. O próprio lorde das histórias contadas pelas más línguas de Idris era totalmente diferente da história de Maia.

Não sabia mais no que acreditar, sentia que sua cabeça explodiria.

— Eu costumava cavalgar sempre em casa –  na casa dos meus pais — se corrigiu, não porque aquela agora era sua casa, mas porque também não sentia que o casarão Lightwood era mais seu lar. — Sei que não é convencional que damas cavalguem, só que Hunter é especial.

— Se tem uma coisa que eu sei com certeza é que não é convencional, senhorita Lightwood.

As duas riram com o comentário e, por fim, Isabelle ostentava um sorriso nostálgico.

— Será que Lorde Montgomery permitiria que eu cavalgasse Daylighter?

O sorriso que Maia lançou-lhe como resposta era enigmático.

— Foque-se em seu bordado por enquanto, senhorita. — Isabelle soltou um suspiro exasperado.

— Isso é impossível, Maia.

(...)

O trabalho manual ajudou a diminuir a pressão na cabeça da jovem, o foco era o jardim da frente, as rosas mal bordadas substituídas por mudas de roseiras. Ouvir Maryse gritar ordens para os jardineiros a infância inteira a ajudou inesperadamente. Cinco ajudantes e Maia seguiam sua doce liderança e Isabelle se sentia mais confortável coberta de terra até os cotovelos do que se sentira em qualquer vestido de baile.  

Em algumas horas o pequeno círculo central de pedra teve seus móveis retirados e funcionava como depósito de materiais, as plantas mortas foram arrancadas, a terra aerada e propriamente nutrida. Apenas o canteiro das roseiras foi replantado, os outros esperariam pelas mudas que chegariam ao decorrer da semana. Era um grande avanço.

O suor fez com que os cabelos de Isabelle grudassem em sua nuca, mas ela não se importava com isso, ou com a sujeira – estava orgulhosa de seu progresso e ouvira os empregados que passaram por ali elogiando sua liderança. Um sorriso caloroso se prendeu nos lábios rubros da jovem enquanto ela olhava para seu jardim.

Meu jardim, mesmo que ninguém compreenda isso.

Logo após de dispensar todos, o almoço da jovem foi servido, mais tarde do que o costume e ela não tinha ideia se o lorde estava em casa. Também pouco pensou nisso, porque o cansaço e a fome a atingiram: queria comer, tomar um banho e descansar por algumas horas.

Seus planos foram impedidos por Maia.

— Senhorita, o- — foi interrompida pelo olhar de incômodo intenso vindo de Isabelle. Suspirou antes de recomeçar, com um pequeno sorriso nos lábios — O lorde deixou um recado para você.

A noiva, com um aceno de cabeça, pediu para que Maia prosseguisse.

— Ele diz que ficou alegremente surpreso com seu ânimo em melhorar os jardins, sua influência com os empregados não passou despercebida e... — a curiosidade e a ansiedade dançavam no peito de Isabelle.

A dama de companhia perdeu a voz pouco a pouco, por fim decidindo deixar o resto de lado.

— Somente isso, senhorita.

— Conte-me o resto, Maia... — o pedido veio com cautela. Isabelle estava inquieta em seu lugar na mesa de jantar cara.

A dama mordeu o lábio inferior.

— Sua ordem depois da visita de Lady Belcourt também fora notada. — Maia subitamente ficou muito interessada em um fiapo em sua saia. Ela estava constrangida? Isabelle não sabia dizer.

Um momento de silêncio se fez.

— Então? — o olhar e o tom de Isabelle eram urgentes. Precisava saber se corria algum risco. — Qual a opinião do Lorde sobre meu comando?

Maia respirou fundo uma vez, fitando os olhos escuros e curiosos da donzela.

— Ele simplesmente... riu. Não deu-me explicação alguma, mas fez questão que sua noiva soubesse que ele tem conhecimento sobre suas atitudes relacionadas a Lady Belcourt. — a dama de companhia gesticulava agitadamente. Isabelle se perdeu completamente com aquela informação. Ele caçoara dela? Ou fora um riso de pura maldade? Ela estava ultrapassando algum limite? E, principalmente, quem Lorde Montgomery pensa que é?

— Ele... hm... é o dono dessas terras e seu noivo?— respondera uma Maia muito confusa. O cenho franzido e os lábios muito apertados de Isabelle se desfizeram em uma expressão leve de surpresa. Tinha dito aquilo em voz alta?  A irritação cresceu em ondas no peito da jovem. Não lhe importava que ele fosse um lorde, ou que fosse poderoso. Ninguém tinha o direito de deixá-la desnorteada dentro de seus próprios pensamentos.

—Ele... hm... ele... — Isabelle terminou a frase com um grunhido e levantou-se de sua cadeira, já saindo do cômodo. Seu rosto estava quente e quando sentou-se de frente ao espelho de sua penteadeira viu suas bochechas coradas no reflexo.

Maldito lorde, pensara a jovem inúmeras vezes durante aquela tarde, usando mais força do que o necessário para puxar água do poço ou declinando da ajuda de uns empregados para carregar os baldes. Descontou toda a confusão no trabalho manual, por fim a enterrando junto com algumas sementes.

(...)

Já era noite quando Isabelle finalmente estava pronta para se deitar, tinha sido seu dia mais cansativo, todavia o mais feliz também. Estava cansada de só ficar andando pelos lados esperando um lorde sem rosto aparecer na sua frente e atacá-la de alguma maneira. Era desgastante viver daquela maneira e seu novo trabalho distraía seus pensamentos de todas as preocupações.

Olhou para cama, suspirando. Não queria deitar-se, sabia o que a esperava se fosse dormir: o violoncelista, a música lamuriosa, Lorde Montgomery, dor. No baile, o violoncelo tinha sido seu único conforto. Agora, se visse um em sua frente, provavelmente o quebraria na cabeça de quem o estivesse tocando.

Foi para a sacada de seu quarto, apoiando-se na amurada e sentindo bem a brisa gelada da noite em seu rosto. Isabelle detestava admitir, mas adorava o lugar onde morava. As propriedades eram vastas e bem verdes, tinha Maia, o vilarejo era acolhedor e amigável, ela tinha uma voz pela primeira vez na vida e era uma sensação tão boa que ela quase se esquecia do contrapeso que vinha junto.

Um vulto escuro distraiu seus pensamentos e ela se alarmou, se afastando da amurada, porém de um jeito que ainda conseguisse ver o que quer que fosse. Não eram cachorros, não tinham nenhum por lá. Seria algum ladrão?

O vulto se mexeu novamente, se esgueirando para onde era ainda mais escuro e Isabelle se assustou, correndo de volta para o quarto e vestindo o robe apressadamente. Seu primeiro impulso foi chamar por Maia ou qualquer outro criado, mas pareceu errado incomodar o sono dos empregados. Sua segunda opção era acordar Lorde Montgomery, só que isso parecia ainda mais inviável.

Olhou em volta e viu um dos castiçais de ouro com as velas apagadas e pegou correndo, quase não sentindo o peso do objeto.

— Desde quando preciso de alguém para me proteger de algo tão estúpido? — bufou enquanto resmungava sozinha.

Não sabia o que era, ou quem era, mas tinha certeza que era alguém muito idiota. Sabendo quem era o dono daquele lugar e a fama que repercutia – verdadeira ou não – só sendo muito estúpido para tentar invadir.

Ela saiu com cuidado para não ranger a porta e passou pelo corredor tentando fazer o mínimo de barulho possível. Pensou ter ouvido barulho de música vindo de um dos quarto, contudo ignorou, mandando sua cabeça parar de devanear.

Desceu as escadas quase que escorregando pelo corrimão, tinha experiência em escapar de casa sem ser ouvida, mas nunca em uma situação dessas. O castiçal tremia levemente em suas mãos e o rubi da família parecia pulsar em seu colo por causa das batidas de seu coração.

Isabelle passou para os fundos da casa, pois foi para onde viu a sombra se direcionar. Atravessou a ala dos empregados, tomando cuidado especial ao passar pelo quarto de Maia. Saiu da mansão sentindo a luz do luar iluminar sua pele e pode ver pelo canto do olho uma sombra em um dos lados.

Caminhou devagar rente a parede, segurando com firmeza no castiçal. Sentia-se cada vez mais próxima do vulto, quase podia ouvir a respiração ofegante dele, assustado. E quando virou-se na quina, concentrou toda sua força no braço que segurava o castiçal e acertou com tudo na pessoa escondida.

O barulho do choque quase a animou, porém o palavrão alto fez seus olhos arregalarem e seu coração quase sair pela boca.

Meliorn?!

Ela largou o castiçal e o puxou para onde a luz da lua iluminava melhor. Não conseguia acreditar, nem ao menos entendia o que estava acontecendo ali.

— É sempre um prazer vê-la, minha bela dama. — e em um rompante, ela se jogou nos braços dele quase o derrubando.

Ele a apertou em seus braços, soltando apenas para colar seus lábios furiosamente. Era como Isabelle se lembrava, frios, firmes e extremamente familiares. No meio de tudo que estava vivendo, o beijo de Meliorn a fazia sentir como se finalmente algo fizesse sentido.

Então a luz a atingiu e ela teve vontade de quebrar o castiçal na cabeça de Meliorn. Ou a cabeça de Meliorn com o castiçal. O que viesse primeiro. Isabelle soltou-se dele com pressa.

— O que pensas que estás fazendo aqui? Não sabe de quem é essa casa? Meliorn, qual o seu problema? — finalmente reparou no rosto do amante — O que aconteceu com você?

Os cabelos dele, que batiam nos ombros, antes lisos e sedosos, estavam emaranhados e cheios de galhos de plantas. As maças fortes de seu rosto estavam com hematomas antigos, o que antes fora roxo estava em um tom esverdeado doentio. As olheiras debaixo de seus olhos estavam enormes e ele parecia mais magro.

Suas roupas estavam imundas e rasgadas e podia se ver todas as escoriações e machucados. Ela não era a única que tinha sofrido na pele. Meliorn definitivamente parecia pior que ela e aquilo fez seu coração se apertar um pouco mais.

— Foi a punição por ter estragado seu baile, Isabelle. Soube que também fora punida, o quanto essa bela pele deve ter sofrido — ele passou os dedos delicadamente no rosto de Isabelle, que suspirou.

— Isto não importa agora. O que importa é a razão pelo qual está aqui. Estás delirando por acaso?

— Vim buscar-lhe para irmos embora daqui. Não pensaste que eu a deixaria nas mãos desse homem, não é? Você é minha.

Isabelle ignorou essa última parte, não tinha gostado muito da possessividade com o qual ele falara. Apesar de ter sido entregue como uma mercadoria para Lorde Montgomery, ela não era uma. Era um ser humano e não pertencia a ninguém.

Resolveu focar no perigo que ele correu apenas para vê-la. Ele não tinha desistido dela, ele ainda a queria. Seu coração se encheu de alegria e esperança; talvez as coisas dessem certo no final, mas... ir embora?

— Como assim? Está querendo dizer fugir de vez?

Ele assentiu, o olhar esperançoso e animado. Não era nada parecido com o que Isabelle estava sentindo. Queria ir com ele, era seu plano desde o começo, ir embora com Meliorn para algum lugar onde os dois pudessem ser livres sem a pressão do nome dela, sem a família sufocante. Nos melhores sonhos de Isabelle, ela estava com ele, apenas aproveitando a companhia um do outro longe de tudo aquilo.

Mas agora as coisas eram diferentes: Isabelle não queria ir e deixar Maia, que provavelmente nunca deixaria aquela casa, enfeitiçada pelo lorde sem rosto; não queria ir e a fúria de Lorde Montgomery caísse sobre as pessoas que ela amava e que estava aprendendo a gostar e respeitar; e no fundo de sua mente uma vozinha dizia que ela não queria ir antes de saber quem Lorde Montgomery era.

Foi com pesar que ela suspirou, colou seus lábios contra o de Meliorn rapidamente e disse:

— Não.

O rosto de Meliorn despencou e ela se sentiu ainda mais culpada.

— Como assim “não”? Isabelle, eu passei por maus bocados, quase morri uma penca de vezes para encontrar-te e você dizer que não vai comigo? Enlouqueceste?

Ela recuou um passo, assustada com a reação de Meliorn. Ele não deveria estar falando assim com ela, tão rude, tão fora de sua personalidade passional costumeira. Aquilo só a fez ter mais certeza de que estava tomando a decisão certa.

— Desculpe-me — disse sem parecer nem um pouco apologética — Mas não posso simplesmente ir embora assim. Eu ainda não conheci o lorde. E se eu for embora e ele descontar a raiva dele em minha fam... Em Robert e Maryse? — se corrigiu — Sabes muito bem que vai cair tudo sobre Maxwell. Não posso fazer isso com Max, não agora. Pensei que entendia que minha família, meu irmão, sempre viria em primeiro lugar.

Talvez ele tivesse finalmente entendido. Ele mordeu o lábio e assentiu, a raiva esvaindo dos olhos e voltando a ser o Meliorn que ela conhecia.

— Entendo, minha bela dama. Apenas pensei que quiseste ir embora comigo.

— E eu quero! Deus, como eu quero — agarrou-se a ele e o beijou rapidamente — Porém preciso primeiro garantir que nada de errado aconteça com Max se eu resolver partir. Ele não merece que mais nada desse tipo aconteça, não depois de Alec.

Meliorn segurou o rosto de Isabelle entre as mãos, beijando levemente o nariz dela.

— Partiremos quando quiser.

Mais alguns beijos foram trocados e os dois amantes combinaram em segredo como e onde trocariam bilhetes; com a recém descoberta autoridade de Isabelle, seria muito mais fácil do que sob os olhos atentos de Maryse. Ela não precisava mais dar satisfação para ninguém e ela nunca sentiu tanta gratidão por isso. A jovem fez questão de acompanhar a situação de seu amante e ajudar se possível.

O encontro com Meliorn foi rápido, afinal, ainda estavam testando as águas e não podiam se dar o luxo de serem pegos. De novo.

Isabelle se esforçara um pouco demais no jardim e os músculos de seus braços estavam doloridos, a menina agradeceu aos céus por não sentir mais a dor de seus cortes. As ligações com a antiga vida dela estavam arrebentando uma a uma como fios muito esticados, libertando-a.

Assim que o rosto da jovem tocou o travesseiro ela adormeceu, a feição pacífica no rosto dela não durou muito, abriu os olhos e se viu no fatídico baile, girando pelo salão.

— Não! De novo não! — Isabelle exclamou, sua voz saíra baixa demais, quase um sussurro.

— O que houve, minha dama? — ouviu uma voz conhecida e dessa vez a moça não temeu olhar seu parceiro de dança. — Cansou-se desta valsa? Podemos pedir outra aos músicos. — Ele a olhava com carinho, falando baixo perto de seu ouvido.

Uma onda de alívio percorreu o corpo da jovem.

— Meliorn... — ela respondeu num sussurro, abraçando-o com força. — Graças a Deus, é você. — ele se surpreendeu, mas correspondeu ao abraço. Estava bem vestido, um paletó verde escuro e os cabelos penteados para trás foi tudo o que Isabelle pode ver.

Isabelle tentou o afastar, voltar a dançar propriamente, mas o aperto de Meliorn não afrouxou, pelo contrário, ele prendeu a jovem a seu peito como uma jibóia, mesmo que ela se debatesse e o empurrasse, ele sempre sobrepujava sua força.  

Quando não podia mais se mover, Isabelle olhou ao redor, reparando que o salão de baile não era o mesmo. A imagem parecia uma colagem, as colunas brancas, a escadaria e os portais eram do salão do casarão Lightwood, porém o piso, as portas francesas e os lírios multicoloridos pertenciam à mansão e ao jardim Montgomery. A cena completa era desequilibrada e confusa.

Já era rotina avistar o músico, o olhar da jovem era sempre levado a ele, fixo nos seus olhos castanhos. Ele era o norte, a ajudava a se localizar naquela loucura. Entretanto não encontrou o mesmo olhar suave e conciso, o músico tinha a testa franzida, um olhar incisivo e o maxilar contraído com força. Isabelle sentiu um frio repentino quando seus olhares se encontraram brevemente, ele parecia furioso, transbordando desgosto. A jovem baixou rapidamente o olhar, intimidada pela expressão tão forte.

Quando conseguiu acumular coragem o suficiente para encará-lo novamente, surpreendeu-se ao ver que o olhar do músico – que tinha parado de tocar por um momento, parecendo pronto para levantar-se num impulso – se direcionava a Meliorn, mais precisamente onde o corpo da jovem e de seu amante faziam contato. O olhar percorreu as mãos unidas, os lábios de Meliorn pressionados levemente sobre a testa de Isabelle e por fim a mão possessiva dele segurando a cintura da donzela com mais força do que o necessário para uma dança.

Isabelle sentiu um arrepio percorrer suas costas quando sentiu a mão sobre a sua enrugar-se, o aperto em sua cintura enfraqueceu e a Lightwood sabia, mesmo sem olhar, que não era mais Meliorn ali.

A música recomeçou e Isabelle viu que o músico ostentava um sorriso delicado e satisfeito. Isabelle quis matá-lo por não ajudá-la com Lorde Montgomery. Ela se afastou dele, ainda que ele rodeasse sua cintura, e ela viu os mesmos olhos negros frios, os cabelos brancos penteados para trás e o mesmo sorriso podre e maldoso.

Deixe-me ir.

Ele a rodou durante a dança enquanto ela tentava se soltar dele, como todas as noites. O ritmo da música ia ficando cada vez mais forte e intenso e Isabelle não pode deixar de se perguntar se o violoncelista não se divertia com a desgraça dela

— Não entendeste ainda, Lady Montgomery? — o lorde falou e ela sentiu o bafo acre dele — Você pertence a mim.

Isabelle levantou-se em um pulo, acordando assustada e com o coração batendo no peito. No fundo de sua cabeça podia ouvir ainda o barulho do violoncelo: distante, melancólico e suave. O Sol começava a se anunciar no céu, um pontinho laranja no meio da escuridão.

Toda noite era a mesma coisa. Pelo menos o pesadelo tinha mudado. Isabelle jogou as costas contra o colchão, suspirando forte.

— Até quando vou ter que aturar isso? — falou sozinha.

Virou-se para o lado e torceu que para que voltasse a dormir. Contudo, era difícil fazê-lo com o violoncelo reverberando em sua cabeça.

(...)

Fora a semana mais rápida da vida de Isabelle, ela mal teve tempo de notar as horas passarem. O jardim já tinha tomado forma e faltavam poucas coisas a serem entregues e o orgulho crescia no peito da jovem. Já não se sentia mais tão intimidada pela mansão ou pela propriedade, aprendera os caminhos e conhecera os empregados, se sentia mais em casa ali do que no casarão Lightwood, mas jurava que jamais daria voz a esse pensamento.

Sua casa era onde Maxwell estava, onde Alexander estava. E seus irmãos não estavam ali.

Um mês que estava naquela mansão e já sentia que não era mais a mesma Isabelle que entrara pela primeira vez pelos portões. Ela estava mais segura de si, mais aberta, mais madura...

— E essas malditas olheiras — resmungou enquanto escovava seus cabelos em sua penteadeira. Odiava o lembrete constante de seus pesadelos toda vez que se olhava no espelho.

Suspirou e voltou a escovar os longos cabelos negros, que tinham voltado à vida depois que saíra da casa dos pais e voltara a se alimentar bem e a ser bem cuidada. Nesse instante, Maia irrompeu pelo quarto e Isabelle levou um susto, deixando a escova cair no chão.

— Quer matar-me do coração, Maia? — ofegou ao mesmo tempo que Maia exclamou:

— Tenho uma surpresa para a senhorita.

Isabelle congelou na hora.

— Odeio surpresas, Maia.

— Tenho certeza que vai gostar dessa, senhorita Lightwood — a dama de companhia nem hesitou com a hostilidade de Isabelle e tirou de um dos bolsos do uniforme uma faixa preta.

— Tenho escolha? — Maia negou — Estou apropriada?

Isabelle se levantou e exibiu o vestido preto sem mangas, que exibia todas suas cicatrizes, com o corpete aveludado e Maia assentiu.

— Linda como sempre, senhorita. Agora vamos!

Maia vendou Isabelle e a conduziu para fora do quarto, Isabelle tateando as paredes receosamente. Maia tomou cuidado extra nas escadas e, quando Isabelle percebeu, estava sentindo o Sol na pele. Tinham saído da mansão.

A princípio, pensou que Maia a levaria até Lorde Montgomery. Agora, não fazia ideia do que era, mas o encontro com seu noivo não parecia mais tão óbvio assim. Ele ainda se permanecia oculto, afinal.

Será que as novas flores tinham chegado? Esperava que não tivessem mandado tulipas, ela era terrivelmente alérgica a tulipas.

Contudo, não poderiam ser as flores, porque pelos cálculos de Isabelle, já tinham passado das flores. Então as duas passaram por algum lugar e o cheiro de feno e cavalos atingiu seu nariz. Por que estavam nas baias?

Maia tirou a venda animadamente e o queixo de Isabelle caiu com o que viu em sua frente. Era imponente, branco com malhas negras, familiar.

Hunter.

Isabelle estava sem reação. Seu cavalo estava ali. Como aquilo era possível? Ela se precipitou e se lançou contra o pescoço longo do cavalo, enterrando o rosto ali. Era quase como estar em casa.

Soltou-se de Hunter, apenas para ver que ele já estava selado e preso a sela, um pedaço de papel. Ela o pegou, admirando a caligrafia perfeita.

Suas medidas para transformar minha, futuramente nossa, casa em um ambiente mais receptivo me agrada muito, assim como a maneira que vem conduzindo tudo. Soube que tinha um cavalo na residência Lightwood e fiz questão de trazê-lo como agradecimento.

Espero que lhe faça sentir bem-vinda.

Lorde Montgomery.

— Maia, foi você? — perguntou, ainda maravilhada com tudo que estava acontecendo. Guardou o bilhete cuidadosamente no bolso do vestido.

Preferia não pensar em Lorde Montgomery no momento basicamente porque ela não o entendia. Em um momento ele destinava a ela notas grosseiras e debochava dela, em outro devolvia-lhe um de seus bens mais preciosos.

Resolveu focar-se no sorriso culpado de Maia, que parecia extremamente contente em vê-la feliz.

— Sim. Assim que me contou sobre Hunter e o quanto queria cavalgar novamente falei com Lorde Montgomery. Ele ficou muito contente com seu comando e-

Maia não conseguiu falar porque Isabelle a sufocou em um abraço. Estava tão grata, tão feliz... Não se lembrava a última vez que fora tão feliz assim. Talvez nunca tivesse sido.

— Obrigada — não tinha notado o quão embargada estava sua voz — Obrigada por Hunter, por me ajudar, por ser minha primeira amiga, por tudo.

Ela soltou Maia, que tinha um sorriso leve no rosto.

— Fico feliz que tenha gostado, senhorita.

— Chame-me de Isabelle — Maia arregalou os olhos. Era um ato grande chamar um patrão pelo nome. Ainda mais pelo primeiro nome. Era um ato de amizade.

Isabelle voltou a abraçar Hunter, que relinchava suavemente. Hunter sempre foi um cavalo muito instável, mas com ela ele sempre era dócil.

— Estava errada, Maia — disse por fim, dando-se conta de algo.

— Em que... Isabelle? — Maia testou o nome, vendo como soava.

Isabelle sorriu marotamente e montou em Hunter, ajeitando o vestido como dava.

— Esse vestido não é nada apropriado para andar a cavalo.

E avançou com Hunter baia a fora, ouvindo longe a risada de Maia. O vento em seu cabelo era reconfortante e ela se sentia bem como nunca. Sentia-se leve. Sentia-se livre.

Talvez morar ali não fosse tão ruim assim.


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Notas finais do capítulo

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