Liberta-me escrita por Teddie, Jules


Capítulo 3
Contagem para a forca


Notas iniciais do capítulo

Oláaaaa, como vão? Estão gostando até agora? Eu e Jules estamos sofrendo bastante, mas é o sofrimento legal. Aquela dorzinha boa, de acordo com ela.

Enfim, obrigada a todos que estão curtindo. Sigam-nos no Twitter, eu estou sempre lá, falando português, inglês e várias bostas. Jules é analfabeta no Twitter, mas isso é problema dela.

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jules: @reine_roses

Aproveitem!



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Quando a escuridão se insinua
Eu sinto meus pesadelos me assistindo
E quando os meus sonhos estão dormindo
Eu sinto meus pesadelos me assistindo
— Ed Sheeran

A jovem não conseguia ouvir o próprio pensamento, todos os sons eram mínimos comparados com a pulsação nos seus ouvidos. Sua cabeça já ameaçava latejar, suas mãos tremiam, mas sua cabeça ainda não assimilara o que tinha acabado de ouvir.

— Acho que entendi errado.

Maryse sufocou o riso debochado e negou levemente, enquanto Robert apenas mostrava os dentes em um sorriso duro e frio.

— Uma menina tão bonita, pena que tão estúpida.

— Não chame Isabelle de estúpida — interveio Maxwell, apenas para levar um beliscão de Maryse.

— Quantas vezes terei que dizer-lhe para não falar quando não for convidado?

Isabelle estava tão desnorteada que não conseguiu pensar em nada nem para dizer em defesa do irmão mais novo. Sua mente esvaziava à medida que a veia em sua testa pulsava com mais força e a dor de cabeça aumentava.

Não fazia sentido nenhum. Esperava nunca ser pedida em casamento após o baile desastroso; esperava ficar boa dos machucados e ser jogada para fora de casa. Com sorte, a deixariam ficar como uma das criadas. Com muita sorte, seus pais a trancariam em um convento para o resto da vida.

— Não compreendo — colocou os talheres que ainda segurava de lado e resistiu ao impulso de mexer no cabelo trançado — Por que alguém ainda cogitaria pedir minha mão? Não sou e nunca fui considerada uma boa jovem para bom casamento.

Mesmo sendo tão suja a atual reputação da moça, a frase causou uma reação inesperada nos pais, que contiveram – não tão bem – uma delicada surpresa. A beleza de Isabelle sempre foi e sempre seria notada pelos homens, um casamento não lhe faltaria. Sempre haveria homens de nomes de menos peso que Lightwood que não se importariam de casar com uma moça sem talentos. Ela era linda e, por enquanto, uma jovem de nome.

 Homens sujos como Maryse chamava os pobres não valiam. Os Lightwood precisavam estabelecer um casamento com alguém que mantivesse o nome da família com algum prestígio, assim como os bens que eles ainda tinham, o casarão sendo o principal.

Seus pais que desejavam manter o nome... E o casarão.

Num momento de paz interior, ou talvez pena, Robert Lightwood caminhou pela sala de jantar, puxou uma cadeira ao lado da filha e a olhou nos olhos. Ela estremeceu, só que não de frio; a jovem se prendeu a esse sentimento, medo é algo que ela reconheceu nessa confusão. Nunca mais verei a luz do sol, chegou a pensar.

Porém, no olhar do pai não havia nenhuma ameaça. Ele a olhava como a muito não o fazia. Segurou as mãos da filha e disse:

— Querida, você vai se casar. O lorde enviou uma carta, uma proposta irrecusável. Você vai salvar a família, certo? — foi um momento raro, ela se sentiu segura perto dele. Podia ser sincera pela primeira vez.

— Mas, senhor, e se eu não quiser? — disse tão baixo que achou que ele não a ouviria. Mas ele ouviu nitidamente.

— Então você não preza ou pertence a essa família. — Robert levantou-se e a menina se sentiu mais sozinha do que nunca.

O jantar prosseguiu em silêncio e momentos depois Isabelle disse ao seu pai que se casaria, tão baixo que ela teve que repetir umas três vezes até que seu pai mostrasse um sorriso. Era estranho ver o pai sorrindo, principalmente por um motivo tão ruim.

O clima na mesa durante o jantar depois da confirmação de Isabelle era pesarosamente satisfeito. Os Lightwood mais velhos pareciam contentes com a decisão da filha de se casar por bem, mas a morena sentia toda a vida que poderia ter esvair-se pelos seus dedos, como se caçasse uma sombra com uma peneira.

Isabelle repousou os talheres novamente e, pegando o lenço para limpar os lábios, indagou:

— Eu gostaria de saber o nome de meu futuro marido.

No fundo, Isabelle já pressentia o que a aguardava, ela já deveria imaginar quem era a pessoa a qual ela estava destinada.

— Lorde Montgomery — sua mãe falou.

O clima pareceu ficar abaixo de zero no mesmo instante. Até Max, que não tinha consciência das coisas que estavam acontecendo com sua família ou de quem era Lorde Montgomery, conseguia sentir toda a aflição e tensão que se instaurara ali e que, quem quer que fosse aquele homem, não era boa pessoa.

Pareceu demorar uma eternidade até que Isabelle se manifestasse. Ela tirou o guardanapo do colo e repousou delicadamente em cima da mesa; empurrou o prato um pouco para frente, para demonstrar que estava satisfeita.

— Não — disse apenas.

Maryse a fitou, os olhos azuis pegando fogo. Azuis como o de Alexander, muito embora seu irmão nunca a olhasse com tanto ódio como a mãe o fazia. Robert deixou os talheres caírem com força contra o prato.

Antes que Robert pudesse vociferar contra a filha, Maryse segurou a mão do marido, olhando-o gravemente, trocando palavras sem nada dizer.

— Maxwell, suba. — Maryse ordenou. O menino, que olhava para todos, pegando a ideia geral do que estava acontecendo, suspirou.

— Quero saber o que está acontecendo. Com quem Isabelle tem que s-

— Maxwell. Agora. — o tom imponente e assustador fez o menino estremecer e Isabelle se compadeceu. Até ela, que sentia uma calma fria, sentiu um tremor com a voz forte de sua mãe.

Ela se lembrava de todas as broncas e surras que já tinha levado de Maryse em todos esses anos. Sempre o mesmo tom de voz firme, duro e assustador.

Finalmente quando Max sumiu pela escadaria, Maryse soltou a mão do esposo. Robert não parecia tão mortífero, tampouco calmo com a negação da filha. Ele respirou fundo muitas vezes e seus punhos se flexionavam, deixando os nós dos dedos muito brancos. Isabelle se perguntou se ele não estava fazendo um esforço enorme para não machucá-la ali mesmo.

Ela descobriu com uma surpresa quase desagradável que não se importava. Não mais. Não se importava se o pai a espancasse, ou que morresse desnutrida em seu quarto, ou até mesmo que fosse jogada para fora de casa para viver em um dos alcoices que existiam em Idris. Nada poderia ser pior que ser vendida para aquele homem horroroso.

— Isabelle, pensei que estivéssemos conversados sobre isso — Robert tentou parecer calmo — Se casará com Lorde Montgomery, sim. Qual o problema? É um homem rico, tem um nome admirável e grandes feitos.

— Sim, grandes feitos — revirou os olhos, sentindo o sarcasmo sair sem querer — Sabem muito bem o que esse homem faz, todos sabem. Se queriam tanto que eu fosse embora, poderiam simplesmente ter me jogado para fora. Já não basta terem feito isso em mim? — arregaçou as mangas da camisa com força, sentindo alguns dos cortes se abrirem.

Seus pais mal piscaram e aquilo quase a desestabilizou. Não esperava que eles fossem ficar tão indiferentes.

— Eu sei que não sou a filha que queriam. Na verdade, sei que não queriam filha alguma, porém isso não justifica o que estão fazendo! Forçando-me a casar com um maníaco torturador. Sei que errei em meu baile, mas já me castigaram mais que o necessário, não precisam me vender para aquele homem — a voz estava começando a tremular, contudo ela não se deu por vencida. Não iria chorar.

— Isso não é um castigo, sua menina ingrata — Robert cuspiu — É um favor. Vai limpar seu nome do vexame que fez sua família passar, vai trazer-lhe honra. Ele não cobrou um centavo para casar-se com você. Não consegue ver o milagre que foi este homem justamente esse homem se dispor a casar com você?

Isabelle estalou a língua, sentindo a tristeza sendo subjugada por uma fúria incontrolável. Bateu com as mãos na mesa, fazendo um barulho alto. Doeu, porém ela ignorou.

— Isso não torna nada melhor! — gritou — Vocês, literalmente, estão me dando para um estranho. Estão se livrando de mim. Tem sido assim há mais de um ano, eu sei o que é isso. — constatou amarga — Parem de descontar toda a raiva que sentem de Alec em mim.

Ela esperava gritos. Esperava uma bronca. Esperava qualquer coisa menos o estalo alto em seu rosto, resultado do tapa forte que sua mãe lhe dera. Ela tocou o lugar, sentindo arder sob os dedos. Maryse ofegava, a mão caindo devagar e os olhos cheios de lágrimas. Entretanto, quando falou, a voz estava fria como sempre.

— Nunca mais fale o nome dele nessa casa. Ele está morto.

Isabelle negou, sentindo-se cansada e esvaída.

— Querem saber? Eu me caso. Qualquer coisa é melhor que viver aqui — fungou — Alec fez certo em ir embora, ele sempre soube que tipo de pessoas nojentas e repulsivas vocês são. — Maryse estendeu a mão com força e ela esperou o tapa. Não veio. A mãe parou no meio, o maxilar travado de fúria. — Isso, bata-me novamente. Não fará diferença alguma, eu continuo a dizer que tenho nojo de vocês.

Ela deu as costas, já se preparando para ir embora. As lágrimas já preenchiam os seus olhos quando ela voltou de supetão. Contudo, ela não chorou.

— Eu parto amanhã assim que acordar e vai ser a última vez que ambos irão me ver. Não os quero em meu casamento. Não os quero em minha vida.

E voltou para as escadas, subindo rapidamente em direção ao seu quarto. Sentia-se estranha, não sabia que era possível sentir tanto pesar e, ao mesmo tempo, tanta leveza dentro de si.

Sentia que tinha feito a coisa certa, mas também sabia que tinha assinado sua sentença de morte. Tinha concordado em se casar. Todos seus planos com Meliorn subitamente tinham sido arrancados dela e por suas próprias mãos. Toda sua felicidade sonhada sendo jogada pela janela.

Pelo menos sairia da casa dos pais, livre da opressão dos seus anos tenros. Sim, iria para um lugar tão opressor quanto, tão torturador quanto, sendo que, de alguma maneira, ela sentia que nada poderia ser tão ruim quanto todos os anos que vivera entre os Lightwood.

Fungando novamente, ainda segurando o choro, ela pegou com dificuldade o malão dentro de seu guarda-vestidos, abrindo-o sem sutileza alguma, jogando as roupas de qualquer jeito dentro da mala. Pegou de repente um vestido azul marinho, seu vestido de baile. Estava inteiro, ela se lembrava de ter tirado antes que a surra começasse. Parecia a única coisa inteira no meio do desastre que era sua vida, porém trazia tantas recordações ruins que ela não sabia ao certo por que estava guardando-o ainda.

Sentou-se na cama, totalmente esgotada. Agarrando-se ao vestido como se fosse uma bóia de salvação, Isabelle chorou. Chorou pelos pais, pelo seu irmão que fugira, pelo irmão que ficaria, pela liberdade que almejara. Chorou pela vida que nunca teria.

Isabelle fechou os olhos, querendo que toda a dor que sentia passasse.

Porém logo os abriu para um redemoinho de imagens, flores, velas e cristais esfarelados pelo chão, tudo passando muito rápido diante de seus olhos. Tentou se segurar em algo e descobriu um parceiro desconhecido de dança, guiando-a graciosamente pelo salão de baile, que logo reconheceu ser o de sua própria casa, onde brincara durante a infância. Onde teve seu baile desastroso.

A música que tocava era alegre e animada, o tipo de música que ela adorava ouvir, o tipo de música que a faria dançar o dia inteiro. Isabelle amava dançar. A jovem sorriu e durante um giro viu o mesmo violoncelista que tocara em seu baile de debutante, ele a olhou de volta e os belos olhos castanhos, mesmo que ofuscados pelos óculos, a fizeram sentir-se perdida naquele universo intocado. Ele sorriu e piscou para ela, o que a fez se atrapalhar no próximo passo da dança, segurando a mão de seu parceiro para se equilibrar, notando de repente que ambos usavam as mesmas alianças douradas.

A curiosidade foi incontrolável e tentou focar-se no rosto do mesmo, quase caindo quando os olhos negros cruéis a olharam friamente, como sua mãe fazia. A face era enrugada, os cabelos completamente brancos e os dentes que restavam eram amarelados e em conjunto criavam um sorriso maquiavélico. A música tomou outro rumo; o que antes era alegre e dançante foi assumindo um tom mais grave e profundo, mais forte e rápido e Isabelle foi sentindo uma aflição surgir junto com o ritmo da música.

Quando finalmente saiu do choque, tentou se libertar do aperto da mão dele, porém ele era muito forte e quando encarava as mãos juntas, Isabelle viu as alianças se transformarem em algemas douradas. O velho a abraçou com força e sussurrou com uma voz grave e rouca no ouvido dela:

— Aquiete-se, minha querida Isabelle Montgomery! Não queremos que fique cansada demais para nossa noite de núpcias...

Não, não, não... Isabelle esperneava e se debatia para se livrar da prisão do suposto marido, ela virou-se para o olhar o violoncelista, mas ele também era o lorde asqueroso, tocando sombriamente e lançando a ela um olhar nojento.

Solte-me, solte-me, solte-me.

— Deixe-me ir — ela implorou — Solte-me, por favor. Solte-me.

— És minha para sempre, Lady Montgomery — ele sussurrou em seu ouvido, o bafo acre chegando em seu nariz e a enjoando.

Solte-me, solte-me, solte-me, solte-me.

— DEIXE-ME IR.

— Isabelle, acalme-se. Sou eu, Maxwell — a voz infantil de seu irmão a fez abrir os olhos de supetão e se sentar em um pulo, notando que ainda estava agarrada com o vestido. Soltou-o e passou as mãos pelo rosto, reparando que ele estava molhado, provavelmente de lágrimas.

Ela fungou, secando o rosto e ajeitando os cabelos, tentando aparentar o mais arrumada o possível para o irmão mais novo. Ele a olhava preocupadamente, uma expressão pesada demais para um menino de nove anos.

— Está tudo bem? — ele perguntou. Isabelle passou as mãos delicadamente pelos cabelos do menino.

— Eu que deveria perguntar-lhe isso, irmão — ela olhou para a janela de seu quarto, que exibia o Sol começando a nascer — Está muito cedo, o que fazes de pé?

Ele franziu o nariz, ato que Isabelle achou adorável. Amava o irmão mais novo com todas as suas forças, quase doía. Iria sentir tanta falta dele.

Isso se algum dia fosse vê-lo novamente. De repente sentiu uma vontade pulsante de dizer que o amava mais que tudo e abraçá-lo e enchê-lo de beijos, mas o menino repudiaria. Era tímido e não gostava muito de contato.

— Não dormi muito bem durante a noite, estava com fome — ela lembrou que a mãe o mandou embora antes que ele pudesse terminar o jantar — Ouvi seus gritos e fiquei preocupado. Na verdade…

Ela franziu o cenho. O que seu irmão teria aprontado dessa vez?

— Max...

— Eu não fui direto para cama ontem — ele suspirou — Ouvi sua briga com nossos pais. Ouvi que vai embora hoje. — Maxwell estava com a cabeça abaixada e a voz estava frágil.

Isabelle se odiou por dentro. Na hora que explodira com os pais, só conseguia pensar em como queria e precisava ir embora, que qualquer coisa seria melhor que passar mais um minuto com os pais abusivos. Entretanto, tinha esquecido completamente do irmão mais novo e como ele deveria se sentir com isso. Alexander o abandonara, fugira na primeira oportunidade. O irmão que o guiaria não existia mais e só restara ela. A âncora no meio de um ambiente tão hostil e frio.

Agora, Isabelle também não estaria mais ali para olhar pelo irmão. Iria embora assim como Alexander fizera. Como pode ser tão insensível?

— Ah, Max — Isabelle se permitiu acariciar o rosto do irmão mais uma vez — Tenho que me casar, preciso ir embora dessa casa. Eu e nossos pais falamos coisas que nos machucaram demais, são feridas demasiado profundas para sarar só com o tempo. Mas nunca, nunca pense que eu estou indo embora por você, ou que eu não queira mais ver-te. Convencerei meu marido a vir buscá-lo sempre para passar um tempo conosco.

E era uma promessa. Não importava o quão tirano Montgomery pudesse ser. Ninguém interferiria em seu relacionamento com seu irmãozinho.

— Só não me abandone aqui com eles, tudo bem? — ele se precipitou e pulou no pescoço da irmã mais velha, abraçando-a de um jeito que não fazia desde a ida de Alexander.

Ela apertou o irmão o máximo que pode, sentindo um pouco de amor o calor humano que emanava da criança. Sentiu as lágrimas invadirem seus olhos, mas não chorou. Estava cansada de chorar, de ser fraca.

Ela o soltou e o segurou pelos ombros, tentando gravar cada parte dele em sua memória.

— Vá chamar Kaelie para mim, Max. Preciso da ajuda dela para me arrumar. — o menino já ia, mas ela o chamou de volta — Diga também que traga o necessário para eu me banhar.

O menino assentiu e saiu correndo do quarto. Isabelle nunca tinha se sentido tão solitária. Provavelmente Kaelie também estava proibida de falar com ela, assim como todos os empregados. Não que Kaelie fosse particularmente legal, mas ela costumava ajudar-lhe com Meliorn, já que vinham do mesmo vilarejo e tinham parentes em comum.

Os olhos de Isabelle se arregalaram com a lembrança e ela se apressou para pegar um pedaço de papel e a pena, para que pudesse escrever. Por fim, tinha em mãos um bilhete rápido explicando para Meliorn toda a situação em que se metera e pedindo desculpas por tudo que acontecera, mesmo nem tudo tendo sido sua culpa.

Era só convencer Kaelie a entregá-lo.

Mas onde encontrar a coragem para tal? O nó que se fixou na garganta da bela jovem foi complexo e ela só se viu livre dele e capaz de falar propriamente quando Kaelie já dava os últimos toques em seu penteado. Então Isabelle cruzou seu olhar com o da dama de companhia no reflexo do espelho, segurou as mãos delicadas de Kaelie. Por favor.

— Kaelie, Depois de tantos anos juntas, podemos nos considerar amigas, certo? — virou-se em direção a dama, fitando o rosto terno dela e segurando as mãos da mesma com cuidado. Era mentira, pelo menos de sua parte. Não considerava Kaelie sua amiga necessariamente. Estava mais para uma aliada.

Sem quebrar a regra de silêncio de Maryse, Kaelie concordou com um gesto confiante. A jovem Lightwood sentiu um pequeno alívio dentro do peito, já que a outra não a desprezava.

— Preciso pedir-lhe uma última coisa… Algo arriscado, mas que precisa ser explicado ou não terei paz no futuro. — tentou mostrar sua ânsia em seu olhar. Por favor, Kaelie. Em um sussurro a dama respondeu:

— Não acha que já houve confusão o suficiente, senhorita? Meu primo não merece sofrer mais por caprichos. — Foi dito em um tom calmo e Isabelle compreendeu que não era exatamente uma reprimenda.

— É a última vez, tens minha palavra. Por favor...— vendo a sinceridade no olhar de Isabelle e evitando quebrar a regra outra vez, Kaelie assentiu, abrindo a palma da mão, onde a jovem pôs o bilhete fechando a mão da criada e depositando um beijo sutil nos nós dos dedos calejados.

— Obrigada.— saiu quase inaudivelmente, mas ela sabia que Kaelie tinha ouvido quando fechou a porta do quarto.

A jovem respirou o mais fundo que o espartilho a permitiu, olhou tristemente o cômodo. Acho que as despedidas começam aqui, pensou, adeus.  Fechou a porta do quarto pela última vez. Desceu as escadas com cautela, se lembrando de quando era pequena e corria pela casa atrás de Alexander, ela imitava tudo o que o menino fazia. Desde escorregar pelos corrimões das escadas até subir nas árvores do jardim. Suspirou se lembrando de quando Maxwell aprendeu a andar e seguia os mais velhos por todos os cantos da casa, até Maryse contratar uma preceptora para mantê-lo quieto.

Passou rapidamente pelas salas, não se torturaria com memórias agora. Quando se encontrou com sua família, focou-se em Maxwell.

— Queria que pudesse vir comigo. — suspirou tristemente — Sentirei falta de meu adversário de xadrez favorito. — se ajoelhou ficando da altura do menino, o prendendo em um abraço apertado.

— Posso fazer visitas! Ainda deve-me uma revanche, Isabelle. Posso mamãe? — Isabelle não precisava olhar para saber que ele estava com sua melhor expressão pedinte. Era seu truque pessoal.

— Faremos aquilo que combinamos mais cedo, certo? — ela piscou para ele, que se virou para ela e piscou de volta — Até logo, Max.

Maryse não se importou em responder o filho, assim como Robert não se importou em dar adeus à filha. No entanto a jovem viu um pontinho de tristeza no olhar do pai, apesar de achar que estava imaginando coisas. A decisão de dá-la em uma bandeja de prata para o tal lorde fora dele.

Ao se levantar, esfriou seu olhar ao fitar seus pais. Esperou que fosse a última vez que precisasse lhes dirigir o olhar.

Então saiu em direção a seu futuro.

(...)

Um... Dois...

A jovem compreendera isso quando as surras ficaram frequentes. Qualquer um pode sobreviver a qualquer coisa por dez segundos e, quando a contagem terminava, era só recomeçar. Já tinha contado pelo menos cem vezes desde que a carruagem passou pelo portão adornado da Mansão Montgomery; a curiosidade controlada apenas pelas dores nas costas, uma vez que passara a manhã inteira e parte da tarde sentada na carruagem viajando. Sabia que não estava mais em Alicante, a principal cidade de Idris, talvez uma cidadela nos limites do país.

O clima estava tão confuso quanto os sentimentos dentro de Isabelle: fazia frio e ventava, mas não chegava a chover ou ao menos nublar completamente. O céu também parecia se negar a chorar ultimamente.

Três... Quatro...

Ela correu as mãos pelo tecido do vestido, tirando uma poeira invisível dele. Só então realmente notou o que estava usando para aquela curta viagem. O tom de creme do vestido era delicado, rosas vermelhas pintadas com esmero subiam num padrão sutil pela saia longa e cheia. Mangas compridas cobriam os braços doloridos e numa prece silenciosa Isabelle pediu aos céus que não sangrasse através do tecido. Não precisava que o Lorde soubesse de sua fraqueza logo no primeiro encontro.

Não usava a jóia de família naquele dia, a poupara de tal situação, escolhera os brincos de prata que usara no enterro de seus avós, combinavam com a sensação de estar caminhando para o abate. Os cabelos presos num coque apertado debaixo do chapéu creme, com poucos fios emoldurando o rosto da jovem.

Cinco... Seis...

Ao descer da carruagem, apertou a mão de sua dama de companhia numa despedida. Correu as mãos pela carruagem uma última vez e agradeceu, num fio de voz, ao cocheiro e ao criado que desembarcavam suas malas. Acariciou o pescoço dos cavalos, já com saudade de Hunter. Não queria estar ali. Não queria voltar pra casa. Queria seus irmãos e sua liberdade.

Sete... Oito...

Era difícil tirar o olhar do chão, mas Isabelle era forte. Ao levantar o olhar viu folhas ressequidas espalhadas por quase todas as superfícies, flores secas e arbustos magros. Engoliu em seco, era uma imagem macabra e cada vez que ela fechava os olhos, via flashes do lorde de seus pesadelos. Um sorriso amarelado e cruel. Olhos frios e vazios.

— Eu sou Isabelle Lightwood, e uma Lightwood não fraqueja. — suspirou com uma determinação que não sentia de verdade.

Nove... Dez...

A caminhada até a porta foi curta e antes mesmo que a donzela pudesse sequer tocar a argola na boca da aldrava de camaleão a porta foi aberta. Uma jovem vestida impecavelmente em seu uniforme branco de empregada e seu colete e saia azul marinho surgiu. Sorria simpaticamente para Isabelle.  

— Bem vinda, senhorita Lightwood! Entre. — ela disse, abrindo caminho para que Isabelle passasse, tinha cachos saindo de baixo do lenço branco e emoldurando o rosto forte e alegre. — Meu nome é Maia e estou encarregada de ajudá-la com o que precisar para sentir-se em casa.

— Prazer em conhecê-la, Maia. — Isabelle procurou o foco de seus pesadelos no cômodo, mas não viu nenhum sinal de sua presença. — O lorde não virá cumprimentar-me? — disse com o cenho franzido. Imaginava que ele viria inspecionar sua aquisição recente com seus próprios olhos.

— Ele pede perdão pela sua ausência, teve que fazer uma viagem de negócios inesperada. Volta em dois dias. — Os olhos de Maia eram castanhos, assim como seus cabelos, complementando o tom chocolate da pele da moça. — O lorde também me pediu que lhe mostrasse seu novo lar e a acomodasse em seu quarto. — Isabelle percebeu que ela não parava de sorrir.

Como podia ser tão alegre servindo a um crápula?

Os cômodos principais foram apresentados a Isabelle, assim como os que lhe eram proibidos; o escritório, a biblioteca particular do lorde e seu quarto. As malas foram desfeitas, refeições servidas e logo chegou a noite e quando a jovem se deitou em sua nova cama, no quarto de hóspedes que lhe foi designado, encarou intensamente o teto ornamentado. Sentia os pesadelos espreitando nas sombras. A saudade já pesava no peito. Ela fechou os olhos com força.

Um... Dois...


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Notas finais do capítulo

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