Morte aos Lobos escrita por Beatriz Rozeno


Capítulo 5
Capítulo 4 - Pesadelo


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Estou em casa. Meu pai está lendo o jornal, sentado no lado direito do sofá, onde gostava de ficar quando voltava do ateliê. Mas algo está diferente, algumas coisas não condizem com o que lembro sobre minha casa. Os móveis estão posicionados de forma diferente, e todas as janelas estão abertas. Papai nunca abria as janelas. Há várias decorações que lembram a China pela sala, e uma cortina de bijuterias que separa a cozinha da sala de jantar. A casa irradia uma felicidade incomum, não a que eu estava acostumada, que consistia em manter meu pai nos eixos e tentar fazer com que ele aparentasse ser uma pessoa controlada. Os vizinhos não poderiam saber o que ele tinha.

Ele sorri enquanto lê o jornal. O que o faz ficar tão feliz? Escuto um barulhinho de lantejoulas e me viro. E lá está ela, igual à foto: o rosto belo, o sorriso estonteante. Minha mãe, sã e salva. Ela carrega uma panela e a põe na mesa. Seus lábios se movem ao pronunciar alguma frase, mas meu cérebro não tem registros de sua voz, portanto, não a reproduz. Isso me deixa verdadeiramente triste. Duas garotinhas idênticas aparecem correndo, com um sorriso muito parecido com o da mãe. Julie e eu, com uns oito anos de idade. Será que somos mesmo tão parecidas assim ou minha mente está apenas duplicando a minha imagem? Nunca poderei saber. Todos estão à mesa agora, comendo felizes. Percebo que estou chorando, porque sempre foi assim que imaginei como seria minha família se tantas tragédias não tivessem nos assolado desde sempre.

Choro com mais força, consigo sentir a dor, mesmo que isso seja um sonho. Corro para longe dali, e o caminho para o meu quarto é o mesmo de que me lembro. Enquanto subo as escadas, minha casa volta a ser como sempre foi: sem cortinas, nem decorações. Quadros caem das paredes e os vidros despedaçam, meus pés sangram, mas essa dor eu não sinto. As janelas se fecham violentamente. Ao abrir a porta do meu quarto, vejo que ele permanece do jeito que deixei ao fugir com meu pai. A imagem ficou na minha cabeça por conta da última olhada que dei para trás antes de fechar a porta para sempre.

As gavetas estão vazias, as fotos não estão mais lá pois as trouxe comigo, e o vento sopra pela janela que não tive tempo de fechar. Sou capaz de sentir o vento desarrumando meus cabelos. Será mesmo só um sonho ruim? Sento na minha cama, agarro os lençóis com raiva, e sinto a tristeza arrancando cada vestígio de alegria da minha alma. Quero desistir de tudo, ir embora deste mundo, encontrar minha mãe e meu pai em um lugar melhor, e talvez Julie. Quem sabe o que aconteceu a ela? Começo a soluçar. Que droga de vida! Que droga de sonho que não tem fim!

— Amy! Acorda!

Abro os olhos com dificuldade, a vista está embaçada pelas lágrimas. Thiago segura meu ombro, e seu olhar é triste. Devo estar bem pior.

— Me desculpe, estávamos lá fora e só viemos quando escutamos seus gritos — diz ele.

Olho para a porta, Caroline está parada e apreensiva.

— Não devíamos ter te deixado sozinha, sinto muito — Caroline fala com verdadeira dor na voz.

Eu sento na beira da cama e tento me recuperar, sem pressa. Carol traz um pouco de água pra mim, e eles sentam ao meu lado. Faz tanto tempo que não recebo alguma demonstração de carinho que fico um pouco nervosa, mas não peço para que saiam. O choro cessa aos poucos.

— Está se sentindo melhor? — pergunta Thiago.

— Estou sim. Aliás — digo olhando para ele —, obrigada por me tirar de lá. Não foi muito bom.

— Imagino.

Algo me diz que ele também sofre com pesadelos. Quem não sofreria nas circunstâncias atuais? Uma lágrima escapa, e não impeço Thiago quando ele a tira da minha bochecha com sua mão.

— É melhor tentar apagar esse sonho ruim da sua cabeça, o que acha?

— Me parece uma ótima ideia.

Carol vai para o riacho, e Thiago fica comigo por um tempo. Mas acho que está escrito na minha testa que eu não quero conversar, então ele vai embora com a desculpa de buscar frutas. Mas acho que ele só vai dar uma volta por aí. Mas sei que ele entende. Não somente o que estou sentindo, mas o pedido silencioso para que ele me deixasse sozinha e calada. Olho por uma das janelas, a tempo de ver Thiago sumindo em meio às árvores.

**

Já estamos a três dias na cabana, e pretendemos ir embora amanhã bem cedo, antes do sol se pôr completamente. Ficaríamos mais, porém é perigoso. Já nos arriscamos muito por aqui.

Thiago saiu para colher algumas frutas, ele realmente achou muitas delas nessa região. Eu e Carol arrumamos as mochilas, dividindo igualmente o que temos, para o caso de nos separarmos. O que eu decidi não fazer, a não ser que eles queiram.

Estamos esvaziando os armários da cozinha quando ela finalmente quebra o silêncio que se instalou entre nós.

— Ontem, quando acordei, Thiago estava olhando para você enquanto dormia. Acho que queria garantir que tiraria você de um pesadelo a tempo.

— Me olhando enquanto eu dormia? Isso é meio psicótico! — acabo rindo da ideia.

— Sabe, meu irmão é um pouco maluco, mas ele é um cara legal. E gosta de você. Não estou dizendo como ele gosta, talvez nem ele saiba, mas você já faz parte da família.

— Nos conhecemos a uma semana — respondo.

— Eu sei. Mas na nossa situação atual, uma semana parece um ano. Os laços que criamos hoje não são só de amizade, mas de sobrevivência. É uma coisa mais forte do que parece — ela fala sério dessa vez.

No fundo, sei que ela tem razão. Eu mesma não os deixei me acompanharem depois do que aconteceu com o acampamento? Não tive vergonha de chorar na frente deles. Nunca tinha parado pra pensar, mas eles me transmitem confiança. Mas ainda é muito cedo para falar em relacionamentos mais sérios, e Thiago não é mais do que um amigo para mim.

Ele volta da floresta com diversas frutas na blusa, e seu cabelo está cheio de folhas. Ele possivelmente se aventurou em alguma árvore.

Fizemos uma farta refeição enquanto o sol se punha, e observamos a luz do dia ir embora pela janela. Não dormimos logo, fechamos todas as portas e colocamos panos nas brechas caso saia alguma luz de dentro para fora. Dou uma última olhada em minhas coisas, vendo se está tudo pronto para amanhã. Escovo os dentes e penteio o cabelo. Hoje Thiago e Carol dormem na cama, eu fico no colchonete, mas ele também é confortável. Ficamos um bom tempo contando histórias do apocalipse, situações inusitadas e perigosas das quais escapamos. Eles dormem mais rápido do que eu esperava, e fico sozinha, somente com o silêncio da noite como companhia.

Olho para meu pequeno relógio: 5h33m. Como dormi cedo ontem, não tenho mais sono e fico sentada no colchonete, esperando dar seis horas para acordá-los. O tempo parece passar mais devagar. Vou até a cozinha beber um pouco de água, pra fazer ao menos um pouco de movimento. Tiro a garrafa que está na lateral da minha bolsa, já que tudo está bem guardado. E eu odiaria desarrumar tudo. Estou quase na metade da garrafinha quando escuto. Um galho se partindo no lado de fora da cabana, antes da cerca. Logo depois, o barulho de folhas sendo pisadas com cuidado. Coloco a água de volta no lugar e vou até a porta, que tem uma pequena abertura na fechadura. Percebi que aquele seria meu fim quando vi dezenas de pragas montando guarda do lado de fora.

Meu coração bate forte contra o peito, e tento controlar minha respiração, com medo de que eles escutem até o palpitar do meu coração. Eles estão farejando o chão, aproximando-se cada vez mais da cabana. Caminho muito devagar até o quarto. Acordo Thiago com muito cuidado, e logo que ele abre os olhos, ponho o indicador em meus lábios, indicando que ele deve fazer o mais absoluto silêncio. Ele somente acena com a cabeça e levanta para acordar Carol. Volto para a cozinha e ponho minha mochila nas costas, e logo os irmãos aparecem esfregando os olhos.

Thiago vê o mesmo que eu pela fechadura, e fica apreensivo. Ele aponta para a porta dos fundos e eu olho pelo buraco da fechadura, nenhuma praga à vista. Silenciosamente, bolamos um plano.

Caroline e Thiago ficam a postos atrás de mim; eu destranco a porta e a abro violentamente. Corremos em disparada, em direção à cidade que vimos. Temos alguns segundos de vantagem, já que as pragas estavam despreparadas. Mas logo escuto seus passos apressados atrás de nós. Mas não nos arrependemos da decisão, eles teriam entrado e nos cercado. Seria pior.

Vejo a cidade a alguns metros de distância. Minhas pernas querem parar, mas sei que não posso, ou serei alcançada e devorada. Um deles uiva, chamando o restante do bando. Caroline está a nossa frente, e percebo que ela mudou de direção, indo um pouco mais para a direita da cidade. Ela aponta para um pequeno prédio e vemos ali nossa salvação.

Um rapaz está jogando algumas caixas, que estão empilhadas em um carrinho de compras, para alguém dentro do prédio. Quando ele nos vê, acelera o processo. Não quer que cheguemos até eles. Do lado oposto de onde estamos, outro bando surge. Ele termina rápido e começa a baixar a enorme porta de ferro.

— Espere! Por favor! — Carol quase não consegue gritar.

Alguém impede que ele feche as portas totalmente. Um outro rapaz aparece, com a porta na metade do caminho até o chão. Ele faz sinal para que corramos mais rápido. Caroline é a primeira a chegar até a pequena escadaria, e se joga para dentro. Segundos depois, eu me lanço no chão e Thiago também, em segurança. Os dois rapazes fecham a porta de ferro e, quando estão descendo a segunda porta, as pragas chegam. Uma grade também serve de reforço, e eu me sinto segura de verdade.

— Por que você não me avisou que eles estavam vindo? Ia deixá-los pra trás?

Tento recuperar o fôlego e, por alguns instantes, tenho medo de não conseguir. Eles continuam brigando, mas não consigo prestar atenção. Depois de alguns minutos, ninguém fala nada. Percebo que eles me encaram, perplexos. Por quê? O cara que nos ajudou é enorme, tem pele escura e cabelo raspado. Agradeço a ele pela ajuda.

— Obrigada, de verdade.

Ele não me responde, mas me olha com uma expressão esquisita. O outro cara, que quase nos matou, é loiro e baixo, e segura um porrete ameaçador. Ele vira-se para mim com olhos de cobra.

— Você está brincando com a gente?

— O quê? — pergunto.

— Bob... — começa o grandão.

— É a sua cara fazer uma palhaçada dessas! — diz apontando o dedo na minha cara.

— Não fala assim com ela — Caroline empurra o tal Bob com raiva.

Uma discussão tem início.

— O que está acontecendo aqui?

Uma voz nos cala, parando a briga. Todos nos viramos para ela. É uma garota, mais do que apenas uma garota. Olhar para ela é como encarar o espelho.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo capítulo.
Abraços, Beatriz ♥



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