Morte aos Lobos escrita por Beatriz Rozeno


Capítulo 24
Capítulo 23 - Desconfiança


Notas iniciais do capítulo

Aos poucos a gente chega lá. Boa leitura!



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Natasha desvia seu olhar amedrontador rapidamente, e vejo a inocência novamente em seus olhos. Pergunto-me se mais alguém percebeu o ocorrido no momento em que meus olhos encontram os de Julie, e leio sua expressão com facilidade: Eu também vi. Mas logo retiro a desconfiança da minha cabeça. Vai ver ela só queria se sentir segura, exatamente como eu faria.

— Eu vou arrumar umas roupas secas pra vocês – diz Zac. Ele vai até a cabine e traz consigo duas blusas de manga comprida e uma calça moletom, roupas que lhe pertencem, pois sabe que Julie surtaria se ele simplesmente pegasse a roupa de um de nós para dar a estranhos. – Desculpe Natasha, não tenho uma calça pra você.

— Tudo bem – diz ela calmamente.

— Eu posso te dar uma – diz Gwen.

— Bem... obrigada.

Carol aparece do meu lado com duas toalhas limpas, e dá a eles.

— Vão precisar disso também – diz ela.

— Muito obrigado – começa Mark. – Nem sabemos como agradecer.

Vejo Julie revirando os olhos do outro lado do trailer antes de dizer:

— Voltem a dormir, eu assumo a guarda agora.

— Estava combinado que eu ficaria depois do Terry – afirma Zac.

— Pode ficar comigo se quiser. Seria ótimo, inclusive – pede Julie. – Mas eu não vou dormir.

— Você que sabe — finaliza Zac.

— E vocês – Julie chama o casal. – Vão dormir nas mesas hoje. Bem debaixo do meu nariz.

Retorno à cabine com o restante. Terry fala algo à Julie, mas logo se junta a nós para descansar.

— Eu odeio a teimosia dela – diz ele após sentar no lugar onde antes minha irmã dormia.

— Não deixe ela ouvir você dizer isso – digo.

— Eu deveria ficar com ela, de guarda. Julie é instável, ela precisa de mim ao seu lado – diz Terry tristemente.

— Talvez você devesse insistir um pouco mais – lembra Thiago. – No primeiro “não” dela, você já desiste e...

— Não é tão simples – interrompe Terry. – Quer saber? Preciso mesmo dormir.

Ele deita de costas para nós, acabando de uma vez com a breve conversa. Olho para Thiago e ele diz que é melhor todo mundo dormir, e é o que fazemos.

Um pequeno feixe de luz ilumina Carol e Bob, deitados atrás de Thiago. Ouço sussurros e levanto a cabeça um pouco acima de Thiago. Vejo Bob dando um selinho em Carol, e deito a cabeça novamente, com um sorriso no rosto. Espere até Thiago ver isso, Bob. Espero alguns segundos e me mexo um pouco, e quando levanto, eles não estão mais tão próximos. Provavelmente não será uma surpresa pra ninguém se eles realmente ficarem juntos, mas ainda devem achar que é muito cedo para dizer algo.

Saio do nosso quarto improvisado e vejo que Terry e Gwen já estão acordados junto com os outros. No primeiro momento, estranho as persianas cerradas, mas logo entendo o motivo.

— Pragas lá fora? – pergunto a Terry e sento ao seu lado em uma das mesas.

— Sim, mas não mais que uma dezena — responde ele.

Julie vai até uma das janelas e observa.

— Nosso cheiro deve estar muito presente, eles nos sentem mesmo depois da tempestade, que deveria ter varrido todos os nossos vestígios – analisa ela.

— Temos que ir embora logo – lembra Zac.

— Não antes de usarmos o rio – avisa Julie. – Precisamos armazenar água e lavar nossas roupas também.

— Lembram da lojinha que encontramos enquanto procurávamos por Carol? – pergunta Terry.

— Você disse que estava infestada de lobos – digo.

— Realmente. Mas só estávamos eu e Julie na ocasião, se voltarmos com mais pessoas, podemos matar aquelas coisas e encontrar algo útil lá dentro.

— É longe, vai nos custar um dia de caminhada pela floresta. E a estrada que poderíamos seguir até lá está bloqueada — diz Zac.

— Eu sei, mas precisamos de suprimentos – devolve Terry. Ele olha para Natasha e Mark, sentados na outra mesa. – Somos em maior número agora.

— Acho que não custa tentar – opina Julie. – Mas pelo menos metade do grupo deve ir, não devemos arriscar entrar naquele covil de lobos despreparados. O restante fica e prepara tudo pra viagem. Partimos amanhã.

— Eu vou preparar minhas coisas enquanto vocês decidem quem vai comigo.

Terry levanta e vai até a cabine.

— E as coisas lá fora? – indaga Mark.

— Estão acabadas – responde Julie. – Eu dou conta delas. Fiquem aqui.

Ela tira as duas katanas das costas e sai do trailer. Escutamos seus passos, os gritos das pragas e os golpes que cortam sua carne. Em menos de um minuto, Julie entra no veículo com suas armas ameaçadoramente sujas de sangue. Natasha e Mark trocam olhares. Encaro Zac e ele sorri para mim. Eles não sabem onde se meteram. Acabo sorrindo de volta.

Quase uma hora depois, tudo está preparado para a empreitada até a loja de conveniências. Apenas eu, Carol e Zac ficaremos no trailer. Julie, que não fica longe de um iminente extermínio de pragas, decide levar Natasha e Mark como uma “ajudinha” extra. Mas todo mundo sabe que ela só quer ficar de olho neles.

Estão todos prontos pra sair quando Julie vem até mim e diz:

— Se não voltarmos...

— Vocês vão voltar – interrompo. – Esses moribundos não podem com você.

Ela sorri pra mim, dá um tapinha no meu ombro e vai embora com os outros. É o jeito dela de dizer que gosta de nós: “Estou indo caçar umas pragas e buscar suprimentos pra vocês, caramba! Querem demonstração de carinho maior que essa?” O pensamento me faz sorrir para ela de volta, mas ela não vê. Bob segue um pouco atrás do grupo, e se vira para nós quando ninguém está olhando para mandar um beijo para Carol. Isso faz com que eu e Zac reviremos os olhos, e Carol acha graça.

— Vamos, Julieta – digo puxando ela. – Temos muito a fazer.

Zac guarda o trailer enquanto eu e Carol vamos até o rio. Ficamos só com a roupa de baixo e entramos na água. Lavamos nossas armas, nossos sapatos e também as roupas de todos. Carol pega uma cueca da trouxa de roupa e a segura com a pontinha dos dedos.

— Acho que eu preferia ter ido matar uns lobos – diz ela.

Eu acho engraçado, mas ela logo me passa grande parte das roupas íntimas dos outros.

— Espertinha – digo.

— Bem, é só dessa vez. Porque estamos com pressa, e a maioria teve que ir com Terry para a loja.

— Eu me sinto melhor com cada um lavando suas próprias roupas – respondo.

— Eu também – diz ela sorrindo.

Carol então para de sorrir, e após alguns segundos de silêncio, volta a falar.

— Sabe, eu queria conversar com Zac. Aproveitar que Thiago não está aqui.

— Conversar sobre o quê, exatamente?

— Quando ele nos encontrou, falou sobre sua experiência em um dos laboratórios do governo. E eu queria fazer algumas perguntas – explica. – Algo que ele disse... me deixou confusa. Eu só queria entender. Mas Thiago veio até mim enquanto entrávamos naquele prédio para nos abrigar, e disse que era melhor eu deixar Zac em paz.

— Talvez seja duro pra ele lembrar de tudo o que viveu naquele lugar.

— Eu sei, Amy. Mas...

— Antes, pergunta se ele quer falar sobre isso com você. Se ele disser sim, vá em frente. Sinceramente, eu também quero entender. Apesar de achar que Zac não sabe muito mais do que nós.

— Você vai falar pro meu irmão?

— Você fala como se ele fosse te bater.

— Não é isso. Eu sei o que ele pensa sobre as informações que eu guardo, e sobre as que eu quero descobrir. Mas e se um dia encontrarmos um lugar com estrutura adequada pra que eu possa estudar e... fazer alguma coisa.

— Caroline, não tenha tantas esperanças. Nisso eu concordo com seu irmão: não seja sonhadora demais. O mundo está detonado.

— Eu só quero estar preparada – diz ela finalmente.

— Eu sei. Mas, por enquanto, vá lavando umas cuecas – digo jogando algumas para ela, e voltamos à tarefa.

Quando retornamos ao trailer, Zac troca conosco. Ele vai até o rio coletar água e usa iodo para purificá-la. Enche todas as nossas garrafas e galões, para o caso de passarmos muitos dias sem encontrar água. Rareamos no iodo também, porque já temos pouco.

No final da tarde, já estamos com tudo preparado. Nós três recolhemos as roupas de cima do trailer, agradecendo pelo dia bem ensolarado que enxugou tudo. Carol leva tudo para a cabine, enquanto eu fico com Zac. Alguns minutos depois ela volta, dessa vez com seu caderno e lápis na mão. Sentamos os três na dianteira do veículo, Zac entre nós duas, e vejo que Carol está um pouco nervosa.

— Eles já devem estar chegando – diz ele.

— É – digo olhando para Carol. – Muito em breve.

Ela respira fundo e começa:

— Zac, eu queria muito conversar com você. Fazer algumas perguntas sobre... o experimento pelo qual passou.

— Mas eu já disse tudo o que sabia pra vocês.

— Eu sei, mas... eu queria te esclarecer uma coisa – diz ela com cuidado. – No dia em que se juntou a nós, você disse que os Ns-300 morreram ao entrar em contato com o ar aqui fora, depois que fugiram dos laboratórios.

— Era o que eles nos diziam – conta ele. – E foi o que aconteceu, a grande maioria morreu aqui fora.

Carol abre rapidamente seu caderno em uma das primeiras páginas.

— Isso não faz sentido, Zac – explica ela olhando diretamente para suas anotações. – Você está vivo, e talvez outros estejam. Eu acredito que eles só diziam isso para assustá-los, para evitar que tentassem fugir.

— Eles falavam muito casualmente – lembra ele. – Não parecia uma informação forçada.

— O que só reforça a ideia de que eles queriam fazer vocês acreditarem nisso pra valer.

— Eu ainda acho...

— Eu tenho uma teoria – diz ela o interrompendo. – Você contou que haviam vários tipos de cobaias para diferentes testes, certo?

— Sim – responde ele.

— Eles devem ter criado Ns-300 em vários graus distintos, alguns com níveis baixos e outros altos do gene lupo. O que resultou em cobaias com imunidades mais altas que as outras, e também mais características físicas desses animais.

— Okay, mas e os jovens que morreram aqui fora? – pergunto.

— Eu acho que os testes neles não haviam sido finalizados, o que os deixou frágeis à nova doença fatal presente no ar. Mas o seu estava, Zac. E talvez tenham obtido um sucesso ainda maior com outros. Transformando-os em indivíduos extremamente saudáveis e poderosos, como uma raça evoluída.

— Bem, faz sentido. Isso talvez explique a tal “Adição S” – lembra Zac.

— Sim, e com indivíduos com um organismo tão resistente, eles criariam uma cura inovadora e revolucionária – diz Carol com os olhos brilhando.

— Mas não deu tempo – diz ele.

— Por isso você tem que ficar vivo, Zac – Carol coloca a mão em seu ombro. – Você talvez seja a solução do mundo.

— É peso demais pra mim – responde enquanto se levanta. – Desculpe, mas eu prefiro morrer do que ser usado em testes novamente.

Ele vai embora, desolado. Carol olha pra mim.

— Eu sempre estrago tudo. E nem fiz minhas perguntas.

— É melhor deixá-lo em paz.

— Tudo bem – diz tristemente.

— Carol, se eles buscavam por bons resultados nos testes, por que esconderam isso de todos? – questiono. – E por que nós somos imunes ao vírus, sendo que nunca passamos pelas mãos desses cientistas?

Ela reflete por um tempo antes de responder.

— Eu também queria muito saber, Amy. Mas estou no escuro quanto a isso, assim como você.

Observamos em silêncio o lugar por onde o restante do grupo seguiu mais cedo, esperando que eles voltem vivos e bem. Não tocamos mais no assunto até que, um pouco mais tarde, vemos Terry saindo da floresta junto com os outros. Percebo que Carol está com um olhar preocupado.

— Ele não vai contar pro Thiago – digo. – Eu sei que não.

Descemos para o interior do trailer. Os outros entram rapidamente pela porta, já que está escuro. Estão carregados de suprimentos: roupas, lençóis novos, enlatados, algumas garrafas vazias e pilhas ainda na embalagem.

Thiago dá um abraço em Carol e entrega à ela um pequeno caderno: um pouco amarelado, porém nunca usado. E também dois lápis.

— Para seus desenhos – diz ele.

Ela agradece com um sorriso.

— Pelo visto a viagem valeu a pena – diz Zac.

— Eu ficaria muito puto se não tivesse – diz Terry sorrindo.

— Percebe-se – responde Carol.

E então lá estamos nós, arrumando os novos suprimentos, separando roupas e dividindo lençóis, sorrindo de orelha a orelha por conta do sentimento de esperança renovado.

Mais tarde, quando estou me preparando para deitar, Julie vem até mim e fala baixinho para que mais ninguém ouça.

— Acho que esses dois estão planejando algo. Passaram o dia cochichando, provavelmente formulando um plano pra tomar nossas coisas no primeiro vacilo.

— Julie, por favor. Eles são um casal, e acabaram de chegar. Talvez sejam tímidos.

— Zac socializou muito bem conosco, e Gwen também.

— E eu não? – pergunto.

— Você foi um caso isolado.

— Julie, relaxa. Nós somos em oito, eles são apenas dois.

— Não consigo confiar neles, nem um pouco.

— Você não confia em ninguém – digo sem pensar. Tento reverter rapidamente. – Pelo menos não nos primeiros dias. Então, dê um tempo a eles.

— Você é igualzinha ao Terry – ela revira os olhos pra mim e vai se deitar.

— Vou perdoar esse revirar de olhos porque você está com sono demais – digo irritada. Ela se deita e decide me ignorar completamente.

No dia seguinte, estamos prontos para partir logo cedo. Gwen vai dirigir, como havíamos combinado. O plano é simplesmente seguir em frente e continuar sobrevivendo.

— Gwen, pode assumir o volante. Está mais do que na hora de seguir viagem – diz Terry.

— Eu preciso urinar – avisa Natasha. — Prometo que serei rápida.

— Claro – diz Julie. – Mas eu vou com você. Sabe, fazer xixi por aí pode ser perigoso.

Ela nem faz questão de amenizar seu tom irônico.

— Eu posso ir com ela – lembra Mark.

— Não, não pode. Talvez eu precise fazer também.

As duas saem do trailer e entram na floresta pelo caminho que leva até o rio. Gwen fica na direção, esperando. Terry decide esperar lá fora, e alguns minutos depois os outros também saem. Eu fico no veículo com Gwen e Mark.

Escuto alguém gritando. De início, não reconheço a voz mas logo identifico que é a de Natasha. Do lado de fora, ela avisa em alto e bom som:

— Estão atacando ela! É um bando, com dezenas!

Saio correndo sem pensar duas vezes. Vejo que todos que estavam lá fora partem em disparada para socorrer Julie, passando por Natasha a toda velocidade e por isso estão muito na minha frente. Adentro a floresta, e alguns passos depois, sinto que algo está errado. Paro imediatamente e olho para trás: o trailer começa a andar e vai embora com Gwen, Natasha e Mark dentro dele.

Corro de volta para a estrada, mas não há nada a fazer. Levo as mãos à cabeça e só consigo pensar que se Julie estiver viva, estamos todos ferrados.

Escuto vozes atrás de mim e quando olho para o lugar de onde elas estão vindo, o trailer já sumiu de vista. Primeiro vejo Thiago e depois o restante e tenho que suportar ver a expressão de cada um. Por último, Julie. Ela olha para o local onde nosso único refúgio estava e depois para mim.

— É verdade? Ela disse que eu estava sendo atacada? – pergunta.

— E não estava? – devolvo.

Ela faz que não com a cabeça.

— O que aconteceu lá? – pergunta Terry.

— Um drone – começa Julie. – A porcaria de um drone apareceu, do nada. Parou bem acima de nós e depois foi embora, e eu decidi ir atrás do miserável. Pedi pra Natasha correr e avisar vocês e olha só no que deu.

Sua expressão muda rapidamente. Vejo a fúria em seu olhar.

— E agora, estamos sem nada! – explode ela. – Todas aquelas coisas, na droga daquele trailer!

Uma praga sai do outro lado da estrada. Julie pega as duas espadas que sempre traz nas costas e parte pra cima da coisa. Ela o destroça com um único golpe, mas continua o cortando sem parar. Sangue e carne podre voam para todos os lados. A cena é repugnante. Terry é o único com coragem suficiente para ir até Julie. Ele coloca a mão em seu ombro e pede que ela se acalme. Julie então finca suas katanas em alguma parte alheia da coisa e se levanta. Terry é duas vezes maior que ela, mas nesse instante, ela parece a pessoa mais forte e poderosa do mundo.

— Calma? Acabamos de perder a porra das nossas armas e todo o resto – grita ela enquanto Terry recua. Mas ela o segue de perto.

— Julie, o que nós sempre conversamos sobre controle? Você precisa se acalmar – tenta ele.

Com as duas mãos, ela agarra a blusa de Terry e o joga no ar, para longe, como se ele fosse um objeto oco. Só consigo formular duas palavras na minha cabeça. Puta merda.


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Notas finais do capítulo

Novidades, novidades, muitas novidades. Espero que dê pra assimilar tudo, pq o capítulo ficou com quase 3 mil palavras.
Até o próximo.
Abraços, Bea ❤



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