Morte aos Lobos escrita por Beatriz Rozeno


Capítulo 2
Capítulo 1 - Fim dos tempos




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Ao acordar, tento levantar e percebo que mais uma vez dormi de mau jeito, porque meu pescoço dói muito. Massageio levemente no local onde está doendo e me sinto melhor. Estou suada por conta do calor causticante dentro do carro; a pequena abertura que deixei na janela é o suficiente para me deixar viva e aquecida durante a noite, mas de dia a temperatura elevada me faz sentir como se estivesse dentro de uma lata selada. Antes de sair do carro, confiro a estrada: nada vivo à vista.

O carro onde passei a noite é um modelo pequeno e simples, onde acabei encontrando um lençol e uma blusa em ótimo estado. O lençol está rasgado em alguns pontos, mas pode servir de travesseiro. Apoio minha mochila — que é totalmente preta por causa da necessidade que tenho de me camuflar — em cima do capô. Guardo todos os meus pertences com cuidado e, do bolso da frente, retiro um pouco de cereal. É difícil come-lo sem um pouco de leite, mas é melhor do que morrer de fome. Tenho vontade de comer até a última migalha, mas devo economizar. Ainda estou seguindo por uma rodovia, em busca de uma cidade para repor meus suprimentos. Infelizmente, ainda estou cercada por uma densa floresta, que parece não ter fim. Eu emagreci muito depois de tudo o que aconteceu, porque estou sempre em movimento e poupando ao máximo meu pequeno estoque de comida. Porém, fiquei mais ágil. Consigo correr longas distâncias sem muito esforço, e isso me ajuda a continuar viva.

Gostaria muito de ter um lugar específico para ir, talvez um refúgio ou comunidade, mas acho que isso já não existe. Apenas vago por aí, e nunca fico no mesmo lugar por muito tempo. Eles estão à solta, caçando tudo o que é vivo, sentindo seu cheiro, escutando seus mais ínfimos barulhos. Cada detalhe, cada movimento, cada suspiro, define se você irá viver ou morrer. Eu escolhi sobreviver a tudo e a todos, e luto por isso todos os dias. Perdi as contas de quantos deles já matei, em quantos corpos minha faca deixou sua marca.

Nunca consigo evitar olhar para eles depois de abater algum, e tudo neles me revira o estômago. O vazio onde antes eram seus olhos, suas garras e dentes monstruosos, a falta de pelos, os ossos expostos em meio às suas peles pálidas, sujas e grudentas. E o insuportável fedor de carne podre, que os identifica antes mesmo que eles cheguem perto. Alguns possuem tumores tão grandes que o corpo tomba para o lado onde está o enorme cisto. E não para por aí, a coletânea de horror continua com os que não tem quase nenhuma pele, ou então os que tossem tanto que cospem seus órgãos internos. Toda vez me pergunto: “Como chegamos a esse ponto?”. E a resposta sempre machuca.

Somos tão idiotas. Nós, seres humanos. O topo da cadeia alimentar agora precisa fugir dos predadores que eles mesmos criaram. Perdemos tudo para nossa própria arrogância, nossa falta de caráter, bondade, amor...

Sinto pena desses seres que vagam pelo mundo, buscando uma paz que só existirá quando uma faca ou uma arma acabar com seu sofrimento. Sinto uma verdadeira tristeza porque eles não são a causa do fim do mundo, mas uma consequência dele. Nós já estávamos destruídos quando eles surgiram.

Inundações, terremotos, falta de água potável, poluição, elevações na temperatura, doenças misteriosas, e vários outros desastres naturais que traziam uma mensagem muito clara da natureza: “Nos deixem em paz”. Os países pobres foram extintos depois desses “recados”. E logo depois, os governantes de países ricos e emergentes esfolaram-se uns aos outros em guerras intermináveis, querendo conquistar o que ainda restava. O resultado? Mais destruição, mais mortes. De uma só vez, países em desenvolvimento, e alguns dos ricos recentes, foram riscados do mapa. Bombas nucleares tornaram esses lugares inabitáveis. Os poucos sobreviventes foram realocados para os continentes europeu, africano e asiático, que ainda estavam de pé. Foi então que o presidente da Rússia decidiu fazer uma reunião, querendo achar um modo de elevar o moral do povo.

Com os recursos humanos praticamente extintos, eles recorreram a quem já estava de saco cheio de cooperar. A mãe natureza. Seus filhos mais sofisticados, os animais, foram escolhidos para ajudar o novo projeto. Muitas espécies estavam extintas, somente as mais adaptáveis às mudanças climáticas sobreviveram. Procuraram neles alguma luz, uma esperança. Analisaram seu organismo, seu sangue, sua saliva e o que mais tivesse para olhar.

Foi quando uma alcatéia de lobos, de uma região específica da Rússia, mostrou resultados surpreendentes. Eram jovens, fortes e foram submetidos a diversos testes. Na saliva desses lobos, havia uma substância, já presente em lobos considerados comuns, que era antibiótica e antisséptica. Essa substância foi misturada com medicamentos usados para tratar doenças como HIV, diabetes, lepra, cânceres e tuberculose. O que eles não sabiam, era que essa substância agia de forma diferente nesses lobos por causa de uma doença que havia se instalado nessa mesma alcatéia. Por isso ela era mais poderosa e agia de forma rápida, porque queria tentar curar seu próprio organismo.

A fase inicial utilizou-se de pacientes gravemente doentes, muitos dos quais à beira da morte, para comprovar o efeito milagroso da vacina. Dito e feito. A vacina KS-18 foi liberada e o povo passou a amar suas nações novamente. Até mesmo pessoas com doenças leves tomaram os novos medicamentos, querendo abster-se completamente de qualquer vírus existente.

Acontece que essas doenças nunca foram eliminadas de fato, elas eram retardadas e sumiam quase que por completo. Quase. Com o tempo, voltaram mais fortes e arrasadoras. As pesquisas foram retomadas, agora com a pretensão de encontrar uma vacina mais forte. Foi mais complicado do que imaginavam. Não tinha mais nada nos lobos que pudessem ajudá-los, o erro quanto à doença lupa não foi divulgado. Então, foi a vez da África do Sul sugerir uma grande ideia. Por que não coletar as células dos jovens adolescentes? Essas mesmas células que derrubavam os vírus no instante que entravam em contato com elas? Naquela época, estávamos tão desesperados, nos agarrando a qualquer esperança, que não percebemos o quanto tudo aquilo era péssimo.

Uma campanha iniciou-se. Os presidentes e seus companheiros pediram à nação que seus jovens entre 14 e 23 anos se voluntariassem para os experimentos. Mas nenhuma alma viva aceitou a proposta. E, ilegalmente, passaram a oferecer uma boa quantia em dinheiro para as famílias que “doassem” seus filhos. Foram tantas pessoas nos laboratórios depois do anúncio, que eles precisaram fazer etapas de seleção. Mas continuavam com a propaganda de que tudo era “em nome da nação”. Eles realmente conseguiram fazer uma nova vacina, a NS-300, que prometia o fim de todos os seus problemas.

A tal vacina nem chegou a fazer efeito. Quero dizer, efeitos positivos. Porque os negativos foram muitos. Foi um verdadeiro caos. A maioria dos jovens usados morreram, sem resistir aos pesados experimentos. Todos que tomaram a vacina sofreram horríveis mutações, pois as doenças que já possuíam uniram-se com a doença lupa. Quem dera se apenas as pessoas que já estavam doentes tivessem sofrido com isso. O novo vírus espalhava-se como as doenças já conhecidas: pelo ar, pelo sangue, pelas relações sexuais e até mesmo pelo toque. As crianças morreram, sem chegar a virar uma das pragas. Por um motivo que me é totalmente estranho, algumas pessoas não ficaram doentes. Mesmo que estivessem em contato direto com os moribundos, resistiam à infecção. Eram as criaturas que os matavam, devorando cada pedacinho deles. É por isso que eu e meu pai sobrevivemos à praga, foi algo em nosso organismo que nos manteve vivos. E sei que existem mais pessoas como eu por aí, mas não são muitas.

As pessoas infectadas tinham características humanas e lupas, e também das doenças que antes possuíam ou dos moribundos que as haviam infectado. A aparência era humana, o corpo ereto. Mas sua sanidade é desconhecida, eles apenas caçam. As garras e os dentes foram herdadas dos lobos, logicamente, assim como a audição e o olfato apurados. No período de transformação, seus olhos coçavam tanto que suas garras acabaram arrancando-os. Por conta disso, não enxergam. As deformações de seu corpo correspondem à sua antiga doença. E aí que entram os tumores, a coceira que deixa os ossos expostos, a tosse que elimina os órgãos.

Todas essas lembranças me fazem estremecer de ódio, por termos sido tão hipócritas e, ao mesmo tempo, ingênuos.

Bato a porta do carro com força, já com a mochila na costa, pronta para ir embora e tirar da minha mente todas essas desgraças. Não me preocupo com o barulho que fiz, estou com tanta raiva que se um bando aparecesse agora, eu não fugiria. Eu ficaria, e mataria a todos. Um por um.

No momento em que olho na direção do barulho, escuto seu grito abafado. E logo ele surge das árvores, abrindo a boca ferozmente, querendo moer toda a minha carne com seus dentes. Rapidamente, minha mão direita encontra uma de minhas facas no cinto, e corto seu pescoço tão facilmente que a situação chega a ser patética. Seria cômico se não fosse trágico.

Sigo caminho, lembrando do corpo que deixei para trás. Poderia ser eu, jogada em uma estrada, com o corpo deformado e a garganta cortada. Algum andarilho passaria e olharia para meu corpo sem vida, teria pena de mim, mas seguiria em frente, como eu estou fazendo. E por que não eu? Por que ele? Por que eu mereci viver e ele não? Ele deveria ter uma vida antes disso, e olha como está agora. Sinto vontade de chorar, quero gritar e espernear. Pedir colo do meu pai. Mas não posso, porque tudo o que eu amava foi tirado de mim. Meu pai, que morreu para me salvar; minha mãe, que eu perdi ao nascer; e uma irmã que nem mesmo cheguei a conhecer.

Meu colar pesa em meu pescoço. Minha mãe deixou para mim e, nesses tempos difíceis, é meu único consolo. É o que resta de minha família. A vontade de chorar já não existe mais, um sorriso aparece no meu rosto. Meu pai me fez prometer que lutaria, até o último segundo de minha vida.

Um barulho de motor afasta meus pensamentos para longe, e meu instinto de sobrevivência faz com que eu me esconda rapidamente na floresta, atrás do caule de uma grande árvore. Ouço o veículo se aproximando, e ele para perto de mim. Meu coração acelera; se eu correr agora, terei uma margem de vantagem sobre a pessoa (ou pessoas) que estão no veículo. Mas o que me garante? É muito arriscado.

— Eu vi você – é uma mulher, aparentemente jovem. — Juro que quero ajudar. Meu nome é Helena, e estou buscando pessoas para recrutá-las ao nosso acampamento.

— Não sou soldado para ser recrutada.

— É só um modo de falar. Vi o que você fez lá atrás com aquela coisa. Você é boa nisso.

— Pode não ter sido eu – respondo.

— Não estou vendo outra pessoa por aqui – ela para um instante. — Por favor, dê-me uma chance. No acampamento temos comida e água. Além de medicamentos e algumas roupas.

Isso é realmente tentador. Meus suprimentos estão escassos e, por um momento, parece uma boa ideia. Penso em meu pai. Em algum lugar, ele está pensando: “Vamos, Amy, não é nenhum sacrifício. Tenha um pouco de fé. Vá”.

Saio detrás da árvore e vou até Helena. Ela abre um sorriso ao me ver. Quando sento no banco do passageiro da caminhonete, ela pergunta:

— Qual o seu nome?

— Amy. Amy Maxwell.

— Bem, Amy, é um prazer conhecê-la. Sinto-me honrada por ter conquistado ao menos o mínimo da sua confiança.

Sorrio para ela enquanto ela dá a partida, mas devo admitir que não me sinto muito segura ao seu lado. Mas tudo bem. Qualquer passo em falso de Helena, e eu a mato. Só espero que ela não esteja pensando no mesmo.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo.
Abraços, Beatriz ♥



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