Morte aos Lobos escrita por Beatriz Rozeno


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Apenas uma breve introdução sobre o que está por vir. Precisava desse prólogo antes de qualquer coisa, ajudará vcs a entender a história.



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Acordei sobressaltada, assustada com os gritos. Meu corpo mexeu-se rapidamente, acostumado a fazer os mesmos movimentos todas as noites. Em menos de dez segundos, estava em seu quarto, tentando não levar um tapa ou algo parecido por conta de sua agitação. Com cuidado, imobilizei seus pulsos, enquanto falava alto para cobrir seus berros e, ao mesmo tempo sendo cuidadosa com as palavras.

— Está tudo bem, papai. Foi só um pesadelo ruim, não precisa se preocupar.

Ele parou de se contorcer um pouco, escutando com atenção a minha voz. Abriu os olhos bem devagar, não sabendo o que era real ou o que ainda era extensão de seu pesadelo. Suas íris verdes brilharam ao me ver, uma felicidade que logo sumiria.

— Naomi? – perguntou.

— Não, papai. Sou eu, a Amy. Sua filha.

Como eu previra, essas palavras lhe causaram uma profunda dor, que machucavam inclusive a mim. Ele começou a chorar silenciosamente. Sentei ao seu lado e o apoiei em mim. Enquanto fazia carícias em seus cabelos cor de mel, tentava segurar minhas lágrimas. Meu pai tem esquizofrenia, e não quero que ele piore ao me ver triste. Preciso parecer forte para ele.

— Foi tão horrível, querida...

— Eu sei, pai. Mas já passou, eu estou aqui e ninguém vai lhe fazer mal. Eu prometo.

— Julie queria me matar. Ela dizia o quanto eu fui ruim para ela, como eu a deixei para trás. Eu sou o pior pai do mundo.

Julie era minha irmã gêmea. E, apesar de todas as circunstâncias, ela não foi abandonada. Longe disso. Meus pais sempre se amaram muito, desde muito jovens, mas a tutora de minha mãe, a tia Yolanda, sua irmã mais velha, fazia de tudo para impedir o romance. Elas eram órfãs e todas as responsabilidades caíam nos ombros de minha tia. Depois de muitos anos, mamãe convenceu tia Yolanda. Ela e papai se casaram e, dois anos depois, veio a notícia da gravidez. Minha tia ainda não era nada legal com meu pai, mas também não se envolvia nas decisões do casal. Eles sempre souberam dos riscos que minha mãe corria, mas ainda assim seguiram em frente. Mas ao nascermos, veio a bomba. A forte e decidida Naomi não suportara às dores, e morrera de hemorragia interna. Com o choque, meu pai desmaiou. Ele não era controlado desde aquela época. E, ao acordar, percebeu a falta de uma das crianças. E no berçário de Julie, um bilhete: “Não consegui salvar minha irmã de você, mas pelo menos uma dessas meninas merece essa chance. Você tem sorte por eu não ter condições de ficar com as duas, Albert. Não procure por mim, muito menos por Julie. Você nunca verá essa criança.”

Dito e feito. Dezessete anos de procura, revirando o mundo em busca de minha irmã. Meu pai não perdeu um dia sequer, estava sempre à sua procura e eu estava ao seu lado. Os ataques de esquizofrenia só apareceram quando eu tinha 13 anos e, desde então, cuido dele. Meu pai sabe o que tem, mas não lembra do que diz. Eles sempre vêm à noite, nunca pela manhã e, depois de um bom sono, tudo lhe foge da cabeça. Nos primeiros meses, eu perguntava sobre as coisas que ele falava. Mas era inútil, ele não tinha como responder às minhas dúvidas. No outro dia, eu também fingia que nada havia acontecido.

— Você não é um mau pai. Não diga algo assim.

— Eu sou sim, Amy... Pelo menos Yolanda teve a decência de levar consigo o presente que Naomi deixou para a criança.

Isso era verdade. Minha mãe havia deixado para nós dois colares que juntos formavam o diagrama do Supremo Fundamental Chinês. O que simboliza o equilíbrio entre o bem e o mal, as luzes e as trevas. Eu havia ficado com o lado Yang (o lado branco), e Julie com o oposto. Às vezes, quando parecia que nada ia dar certo, eu apertava o cordão contra meu peito e pedia para que minha mãe me ajudasse. Eu conseguia sentir o quanto ela nos amava.

— Você deveria tentar dormir, papai. Ele fechou os olhos receosos, e não demorou muito a dormir novamente. Endireitei seus lençóis para que ele ficasse confortável e voltei para o meu quarto. Deitei querendo adormecer logo, mas o peso de todas as preocupações que venho trazendo durante a vida caiu sobre mim com uma intensidade arrebatadora. Meus olhos pairaram sobre uma bela moça, de origem chinesa, que tem um sorriso maravilhoso e um olhar encantador. A foto de minha mãe na escrivaninha sempre me fazia sorrir. Meu pai diz que eu pareço com ela, mas não consigo aceitar o fato de ter alguém nesse mundo que chegue aos pés de minha mãe. Sua beleza é inalcançável. Nada e nem ninguém se compara a ela. Concentrei-me para que eu entrasse na foto, mais necessariamente no momento em que ela foi tirada. Imaginava minha mãe toda feliz, com meu pai, fazendo um piquenique no parque. Eu a via andando pela ponte, sorrindo, girando o belo vestido vermelho que usava. A sombrinha lembrava seus ancestrais chineses. Por quê? Por que minha mãe e minha irmã foram tiradas de nossas vidas assim? Por que o destino foi tão cruel com todos nós? Deve haver um motivo. Será que há? Pelo menos eu tenho meu pai. Ele pode ser um pouco louco, mas ainda é o meu pai. E eu ainda sou sua filha. E ele é minha única família. A felicidade por ter pensando em mamãe finalmente me fez dormir.

**

Estávamos correndo a toda velocidade. Eles estavam atrás de nós, mas meu pai estava ferido gravemente na perna direita. A cada passo, ele gritava de dor, atraindo mais deles que estavam nas redondezas. Abruptamente, ele negou meu apoio, tirando o braço de meus ombros, largando-se no chão. Nesse momento, percebi que deixamos uma trilha de sangue por todo o caminho. Sem contar o suor que caía constantemente de nossos corpos, deixando o cheiro de carne fresca totalmente reconhecível. Precisávamos ir mais rápido.

— Vamos, pai! O senhor consegue!

Preparei as mãos para levá-lo comigo, mas ele me impediu.

— Corra, Amy! Eu não consigo mais, querida. Você precisa se salvar – disse ofegante.

— O quê? Ficou maluco? Não se deixa a família para trás, esqueceu? – tentei pegá-lo novamente, mas era impossível fazê-lo mudar de ideia. Ele finalmente disse com o rosto sério:

— Eu mandei você ir embora, Amy. Obedeça.

Podia ouvir os gritos das pragas se aproximando, seus passos rápidos estavam nos alcançando. Precisávamos ir embora, tínhamos que ir embora. Comecei a chorar.

— Eu não posso te deixar, papai.

Eu o abracei com força, querendo que ele sentisse o quanto eu o amava. Queria que ele soubesse que, mesmo em situações insuperáveis, eu não o deixaria. Nunca.

— Escute, querida — ele segurou meu rosto com suas mãos — Você foi a única coisa que me fez feliz nos últimos vinte e dois anos. Obrigado por isso, minha filha. Eu te amo tanto, e dói ter que te deixar assim.

— Não fale assim...

— Você me ama, Amy?

Olhei bem no fundo daqueles olhos verdes, eles estavam brilhantes por conta das lágrimas.

— É claro que eu te amo, papai.

— Então me prometa uma coisa. Lute. Mesmo que tudo esteja ruindo, mesmo que pareça não haver esperanças de um futuro melhor, lute. E quando você pensar em desistir, lembre da minha vida, que estou doando para que você tenha uma chance. Jure para mim que, enquanto seu coração estiver batendo, você não irá desistir. Me prometa.

O modo como ele falou, eu podia sentir o apelo em sua voz. Ele precisava daquilo para ir em paz. Reuni todas as minhas forças e disse:

— Eu prometo.

Um pequeno sorriso formou-se em seus lábios. Eu podia ver as pragas, talvez trinta delas, correndo em nossa direção. Meu pai olhou para elas e depois para mim. E, por fim, do fundo de seu coração, disse:

— Não olhe para trás, querida.

Eu corri como nunca havia corrido antes. Em nenhum momento olhei para o que acontecia atrás de mim. Mas seus gritos acabaram chegando, e esses eu não conseguiria esquecer.


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Notas finais do capítulo

Não vou ficar cobrando comentários, mas adoraria saber a opinião de quem leu. Espero que tenham gostado.
Abraços, Beatriz.



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