A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 5
De olhos abertos


Notas iniciais do capítulo

"É tão estranho, não é, como os sonhos podem parecer tão reais num momento, mas desaparecerem com tanta rapidez? Deve ser o meu subconsciente a querer dizer-me qualquer coisa."
in Os Três, Lotz, S., Saída de Emergência, 2014



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De repente, os meus pulmões encheram-se de ar e sentei-me aflita no leito talhado num paralelepípedo rochoso. Levei uma mão ao peito, cravei as unhas na pele que o decote em fiapos destapava. O aroma a incenso persistia o que queria dizer que não sonhara, que estava realmente com Luke Skywalker algures na galáxia, num planeta qualquer, numa casa de paredes de rocha castanha.

Levantei-me e estranhei a minha repentina energia. Apesar de uma ligeira pontada nas têmporas e de uma evidente fraqueza por falta de uma alimentação substancial, conseguia aguentar-me de pé sem vacilar ou ter uma tontura que me empurraria de novo para a cama. Verifiquei que envergava um vestido branco comprido, de corte direito, com um decote arredondado e bordado com desenhos geométricos que se repetiam nos pulsos das mangas largas. Uma vestimenta velha, ligeiramente esfarrapada no decote e na bainha, apropriada para a convalescença de alguém.

Aproximei-me com cautela do móvel onde estava o aparelho das luzes vermelhas e azuis. Testava a minha capacidade para andar e mais uma vez fiquei surpreendida com os meus passos firmes, a resolução das minhas pernas. Estaria curada, possivelmente… De que doença padecera, não sabia dizer.

Fixei o aparelho. Não o identifiquei, nunca tinha visto nada igual. Mesmo que tivesse algumas lembranças e sensações às quais podia recorrer para não considerar que tinha o cérebro inteiramente vazio, aquela coisa não fazia parte delas. Esqueci o aparelho e rodei o pescoço para a direita. Descobri uma janela exígua junto ao teto abobadado. Inundou-me uma certa alegria. Ver para além daquela casa poderia dar-me outra pista do que me tinha acontecido, onde é que eu estava, por que razão estava ali e o mais importante, saber quem era eu, para além de um nome que me soava a descolado da minha personalidade. Enfim, sair daquela amnésia seletiva.

Subi para um pequeno banco metálico. Apoiei os cotovelos no parapeito cheio de pó e estiquei o pescoço. O que vi deixou-me sem alento. Um imenso deserto de areia vermelha estendia-se até ao horizonte. Sobre este terreno árido, um céu azul elétrico que acentuava a luminosidade cegante da paisagem. Devia fazer um calor sufocante no exterior, mas dentro da casa estava fresco e agradável. A janela, reparei depois, situava-se junto ao solo, o que indicava que a habitação estaria enterrada, possivelmente para regular a temperatura interior e possibilitar um refúgio adequado ao clima.

— O que fazes aí em cima?

Desequilibrei-me e por pouco não caía de costas. O banco metálico tombou a meus pés. Endireitei-me e percebi que apertei os lábios. Encarar Luke Skywalker deixava-me nervosa.

— Levantaste-te. Significa que te sentes melhor…

Não foi uma pergunta, mas uma constatação. Contudo, acenei afirmativamente em jeito de resposta, sem descolar os lábios que tinha resolutamente apertados.

— Estiveste muito doente. Sabes isso, não sabes?

Notei o franzimento subtil da sobrancelha esquerda dele. Queria que eu falasse.

— Sim, sei – respondi.

Uma sensação de horror sacudiu-me. Não me reconheci, não parecia que era eu que estava a pronunciar aquelas parcas palavras. Aclarei a garganta ruidosamente. Por vezes a doença prolongada afetava a voz que é algo que devemos sempre usar, pois sem treino perdemos a capacidade de falar como sempre falámos. Abanei a cabeça e encostei-me à parede áspera.

— Encontrei-te no desfiladeiro de Vitra. Estavas claramente perdida… Foste atacada? Ou já estavas doente antes e abandonaram-te por não conseguirem cuidar de ti?

— Não sei. – Com a garganta mais desimpedida, aos poucos, começava a reconhecer o meu próprio som. Mas não tinha a certeza.

— Não sabes?

— Não me lembro. O problema é esse… Não me consigo lembrar do que aconteceu antes de aparecer aqui.

Como se tivesse nascido após esse evento. Como se ele tivesse tropeçado numa carcaça vazia no desfiladeiro de Vitra e só quando me trouxera para a sua casa, dispensando-me os seus cuidados, me insuflara o corpo de alma. Apostava que ele tinha andado a fazer perguntas e ninguém sabia nada sobre uma mulher doente deixada para trás num desfiladeiro.

— Não te consegues lembrar…

— Não. – Notei um ligeiro ceticismo na frase, a acompanhar o franzimento mais acentuado da sobrancelha. – Não me lembro. E tu, cavaleiro Jedi, não conseguirás descobri-lo com os teus poderes?

Vi-o ficar desorientado e depois retesou-se ofendido. Fechei a boca e apartei o olhar. Fora indelicada e nem sabia explicar por que razão falara naquele tom abrupto. Ele retirou o sabre de luz do cinto e pousou-o numa mesa.

— Não consigo fazê-lo. Perdoa-me… Os meus poderes não vão conseguir ajudar-te, sem que tu me ajudes a mim.

Não entendi nada.

— Por outras palavras…

Sentia-o a olhar fixamente para mim, mas eu não despegava a atenção dos meus pés descalços.

— Tu é que deves dizer-me onde moras para eu te levar lá, ou não o conseguirei fazer sozinho – completou ligeiramente ressentido.

— Não sei onde fica a minha casa. Já te disse, não me lembro de nada.

O silêncio foi esquisito. Perguntei de chofre para acabar com os possíveis mal-entendidos:

— Estive muito doente?

— Sim, muito – concordou ele. – Pelo menos comigo, estiveste inconsciente durante três dias. Não sei se estavas nessa condição crítica antes de eu te ter encontrado, pelo que não te posso afiançar se a tua enfermidade foi prolongada, para além desses dias. Padeceste de febres altas, deliravas e murmuravas.

— Dizia alguma coisa? – indaguei ansiosa, encarando-o repentinamente. Ele mantinha a expressão ligeiramente contraída, impregnada de uma ternura desarmante. – Alguma coisa que me possa ajudar a lembrar?

— Não me apercebi de nada de relevante. Falavas de alma e de sonho, fugias da escuridão e chamavas pela luz. No fim, dizias que tinhas estado entre as estrelas, na guerra.

— Oh…

— Lembras-te de como te chamas?

— Sim, isso lembro-me.

Ele esperou que eu avançasse com a apresentação, mas perante a minha hesitação foi ele que tomou a iniciativa. Fez um ligeiro aceno com a cabeça, sorriu com brandura e disse:

— Chamo-me Luke Skywalker e, tal como já referiste, mercê dos teus excelentes dotes de observação, sou um cavaleiro Jedi. Estás na minha casa, no planeta Tatooine.

— Tatooine… – soprei.

— És a minha ilustre convidada, de quem nada sei, que salvei no desfiladeiro de Vitra e que se chama…

— Cleo.

O sorriso dele abriu-se, mostrando os dentes brancos.

— Cleo, é um prazer conhecer-te. Acordada, quero dizer.

Devolvi-lhe o sorriso, envergonhada.

— Deves estar com fome. Nada comeste nestes últimos dias, apenas te consegui dar líquidos.

Curiosamente não me sentia esfomeada. Passei uma mão pelo estômago que estaria vazio, à espera que este reagisse, mas nada. Sentia-me bem, descontando o facto do aroma a incenso continuar a inebriar-me e a dar-me a sensação de que eu pairava por ali, sem ligação ao chão. Mas para não ser indelicada acenei que sim. Ele rodou sobre os calcanhares, encaminhando-se para uma área da casa onde se via um pequeno armário por cima de uma bancada e cestas penduradas na parede.

Abri os braços e olhei novamente para o meu vestido branco.

— Foste tu que me vestiste isto?

— Não – respondeu-me de costas voltadas para mim, enquanto preparava uma refeição. – Quando te encontrei já o usavas. Também não te lembras?

— Nenhuma ideia.

— O que significa que também não sabes se pertences a Tatooine, ou não.

— O que queres dizer?

Uma porta abriu-se e entrou um homem alto, de andar confiante.

— Olá miúdo!

Aproximou-se e abraçou Luke cordialmente, um sorriso ufano afivelado no rosto moreno.

— Uma visita surpresa!

— Sim e que surpresa! Não esperava ver-te tão cedo.

— Não venho sozinho, miúdo!

— Claro que não…

Estaquei ao reconhecê-lo. O contrabandista intrépido tornado homem de honra e general afamado, o dono da mítica nave espacial Millenium Falcon, nativo do sistema Corellia, Han Solo. Imagens estáticas embrulhadas em lampejos de luz encheram-me o cérebro com uma tal violência que cambaleei. Memórias minuciosas que eu não desejava inteiramente. Queria-as de outro tipo, mais pessoais, mais esclarecedoras…

— Que tal vão as coisas neste buraco?

A seguir entrou uma mulher de estatura baixa a usar um elaborado penteado trançado que lhe apanhava a comprida cabeleira em redor da cabeça e uma criatura gigante, coberta de pelo castanho encaracolado. Também os reconheci e a minha garganta secou. A princesa Leia Organa e o copiloto inseparável de Han Solo, o wookie Chewbacca.

O olhar rapace de Han captou a minha presença. Sem que me tivesse apercebido, tinha-me escondido nas sombras de uma das colunas.

— Hum… Estás acompanhado? Não nos tinhas dito nada, miúdo.

— Han, por favor… – queixou-se Luke.

— Pensava que os cavaleiros Jedi não podiam…

— O que estás a insinuar? – interrompi perplexa. – Estive doente e ele tem estado a cuidar de mim. Acabei de despertar… Encontrou-me inconsciente no desfiladeiro de Mitra.

— Vitra – corrigiu Luke.

— Vitra, claro.

A testa de Han franziu-se.

— Vitra? O que fazias num lugar como esse?

Corei de repente. A minha ignorância começava a ser demasiado embaraçosa.

— Porquê?

— Não é um sítio onde vamos dar um passeio, pois não miúda?

— Não sei… Alguém me deve ter levado para lá. Como disse, ele encontrou-me inconsciente e não me lembro de nada.

— E antes?

— Antes do quê?

— Antes de teres ficado inconsciente?

— Isto é algum interrogatório?

— Han, deixa-a em paz – disse Leia conciliadora. – Se é convidada do Luke, devemos tratá-la com toda a nossa cordialidade. Estás a ofender o anfitrião.

— Oh… Já me habituei às maneiras polidas de Han! – exclamou Luke num tom irónico.

Riram-se. Leia estendeu-me a mão que eu apertei.

— Muito prazer. Sou Leia Organa Solo e peço-te que perdoes… as maneiras polidas do meu companheiro, Han Solo.

— Muito prazer. Chamo-me… Cleo. Não fiquei ofendida.

O corelliano também me apertou a mão, sorrindo-me de viés. Seria à laia de desculpa ou nem se apercebera da sua indelicadeza e aquele era o seu jeito de ser, encantador e arrogante ao mesmo tempo.

Chewbacca rosnou atrás da princesa e eu soltei a mão de Han, olhando para a enorme criatura peluda. Era uma espécie de cumprimento e fiz um esgar quando tentei sorrir ao wookie. Pareceu-me sensato manter a distância daquela besta temperamental.

De seguida, Leia abraçou Luke.

São irmãos, pensei confusa. Pois claro… eles são irmãos.

Sentámo-nos à mesa onde Luke dispusera um pequeno lanche, composto por uma bebida azul servida em copos brancos e uma espécie de biscoitos. Mirava-me de vez em quando, perguntando-me silenciosamente se estava tudo bem comigo. Respondia-lhe no mesmo silêncio que sim, que estava tudo bem comigo e fiz um esforço para comer alguma coisa para que ele parasse de se importar com o meu estado. Incomodava-me.

Mas era estranho ter recuperado tão depressa. Aliás, era tudo estranho…

A conversa prosseguiu entre os quatro velhos amigos. Luke perguntou por Threepio e Artoo e Han confiou-lhe que haviam ficado em Coruscant, ao que o Jedi confessou que sentia saudades do pequeno Artoo. Tinham passado por muito, juntos. Han adiantou que Artoo desempenhava tarefas nos hangares, recuperando a frota danificada da Aliança que iria servir a Nova República e que Threepio andava excitado com as suas novas atribuições como intérprete no recentemente empossado Senado.

— Até parece que aquela lata tem alguma coisa dentro daquela carcaça dourada, para além dos habituais circuitos – rematou Han trocista.

— Por que é que não vais para Coruscant? – sugeriu Leia. – Aqui não é o teu lugar.

— Tenho um caminho que devo seguir – esclareceu Luke.

— Eu sei. Mas… começa em Tatooine? Este planeta é tão deprimente… Sempre disseste que não guardavas as melhores recordações de Tatooine. Aqui viveste recluso praticamente toda a tua vida e desejavas partir a cada momento, ser um grande piloto, não um lavrador como o teu tio. Não há nada em Tatooine e será um milagre que aconteça alguma coisa de novo por aqui, neste covil de contrabandistas e mercenários.

— Tudo começou aqui, Leia. O meu caminho…

— Que deves seguir – completou ela assertiva. – Percebo, mas não vejo o que mais podes encontrar em Tatooine que seja relevante para esse caminho. És um cavaleiro Jedi, agora… Sei que pretendes tomar para ti a tarefa monumental de ressuscitares a Ordem. Deves fazê-lo no centro da galáxia, onde as coisas estão a acontecer e onde estamos a reerguer as antigas tradições com a Nova República. Vem para Coruscant, viverias próximo de nós. Conhecerias pessoas que te ajudariam. Deixa Tatooine.

— Deixarei, um dia… Não viverei aqui para sempre.

— Na tua última mensagem pareceu-me o contrário. Não te demoraste tanto tempo em Naboo.

— É por isso que vieste, hoje, visitar-me? – Luke fez um sorriso cansado. – Para que não fique enterrado nas areias de Tatooine para a eternidade?

— Leia está preocupada, sim – aquiesceu Han. – Não te quer isolado e longe de nós.

— Não me afastei assim tanto. Tenho comunicado convosco regularmente.

— Verdade! Por outro lado, miúdo, ela também precisa de ti nas galerias do Novo Senado, na linha da frente do combate político que se reacendeu com as novas ideias para a reorganização da galáxia. Já sabes, um cavaleiro Jedi representa a tradição da República…

— Han, como tu colocas o assunto – protestou Leia –, parece que apenas quero o Luke comigo para servir os meus interesses pessoais e egoístas de senadora recentemente eleita! Como um símbolo que legitime a minha autoridade política!

O corelliano encolheu os ombros.

— É uma das razões, não é?

Chewbacca soltou alguns rugidos. A princesa corou, irritada.

— Não sejas injusto! Comigo e com o Luke… Estou a pensar apenas no bem dele. As implicações da vinda do Luke para Coruscant na minha carreira política atual e nos desafios que me proponho enfrentar estão bastante longe do meu pensamento, neste momento que estou a ter esta conversa e quando decidi fazer esta viagem para Tatooine.

— Não discutam por causa de mim – pediu o cavaleiro Jedi. – Não te apoquentes, Leia. Não pretendo ficar neste planeta assim por tanto tempo… Apenas aquele necessário para resolver os meus assuntos. De facto, não me demorei assim tanto em Naboo, mas em Tatooine… É diferente. Tenho de estar cá e perceber o que estou a sentir, o que estou prestes a descobrir. Uma espécie de… pressentimento.

— Obi-Wan? O nosso pai, Anakin?

— Não se liga ao passado, Leia. Mas ao futuro.

— Não tenho sentido nenhuma perturbação na Força. Deveria sentir?

Luke sorriu-lhe, afagou-lhe a mão que Leia pousava na mesa.

— Não te preocupes. Algo que é apenas meu… Mas vais perceber.

Olhou para mim de relance e sustive a respiração. Para aligeirar o tom, perguntou por Lando Calrissian e Han explicou que Lando continuava com o seu negócio na Cidade das Nuvens, em Bespin, e tornara-se num próspero empresário. Com o fim da guerra com o Império Galáctico regressara a esse sistema e continuara a exploração das minas de gás Tibanna. A paz recentemente estabelecida dava lugar a outros desenvolvimentos e interesses. Lando estava na linha da frente dessa nova geração de homens. Como hábil negociante, conseguia obter resultados vantajosos para a sua colónia e, ao mesmo tempo, conciliava as diferentes sensibilidades, servindo-se despudoradamente da sua reputação de excelente general e de ter sido decisivo na vitória da Rebelião, o que cimentava a confiança que as pessoas depositavam nele.

— Quem diria? – exclamou Han com uma gargalhada. – Lando Calrissian, o maior batoteiro da galáxia, tornado num respeitável homem de negócios e barão administrador da colónia. Ainda mais próspero do que quando o reencontrei em Bespin, durante a nossa fuga a Vader, por alturas da guerra. Será alguém a levar em consideração quando precisarmos de uma estúpida quantidade de dinheiro. Não me esquecerei dos contactos dele…

— Não vais precisar de uma estúpida quantidade de dinheiro tão cedo – observou Leia levando o copo à boca.

— Nunca saberemos o que o futuro nos reserva!

Chewbacca regougou num sinal de reprovação. Também não aprovaria a cupidez tão descarada de Han Solo. O corelliano mostrou as mãos.

— O quê? Estão todos contra mim? Talvez o Luke precise de uma estúpida quantidade de dinheiro para os seus planos.

— Será o Luke a decidir se precisa de dinheiro ou não, para os seus planos.

— O que pensas disto, miúda?

Não percebi a súbita atenção de Han. Endureci a minha expressão, endireitei as costas, apertei as mãos sobre o tampo da mesa.

— Tu também fazes parte dos planos do Luke, certo? Agora que estás com ele…

— O que queres dizer? – estranhou Luke.

— Bem – Han olhou para o amigo e apontou para mim –, encontraste esta moça perdida, sem qualquer memória. Aparentemente sem um passado interessante ou uma ligação a alguém, um lugar ou a qualquer coisa. Uma órfã, um perfeito primeiro aprendiz para um jovem mestre. Estou errado?

— O que está ele a dizer? – consegui murmurar.

— Isso não foi o que aconteceu, Han – esclareceu Luke negando com a cabeça. – Apenas a conheço há três dias e só hoje a encontro desperta e relativamente saudável para poder usufruir da sua companhia para termos uma conversa decente que me permita compreendê-la e orientá-la. Não sei se a vou ensinar e nem sequer sei se ela deseja receber os meus ensinamentos. Somos… totalmente estranhos. Então, vocês chegaram e…

— Interrompemos alguma coisa que não devíamos? – admirou-se Han.

— Não! Não… Por favor, Han. Vocês serão sempre bem-vindos à minha casa, só que quando chegaram, é verdade, estava a tentar perceber quem é ela, de onde vem… Ela não se lembra de nada. Sabe como se chama e isso já será um princípio… Quero e devo ajudá-la. Desde que a encontrei desmaiada no desfiladeiro de Vitra que me intriga… Preciso de compreender o que está a acontecer, se o que eu senti desde esse dia não estava errado.

— O que foi que sentiste? – perguntou Leia interessada.

— Talvez o mesmo do que tu – respondeu Luke enigmático.

Os dois irmãos entreolharam-se, comunicando por telepatia através de uma linguagem extrassensorial que não era acessível a mais ninguém naquela casa.

— Será que podem falar de maneira a que se perceba? – pediu Han impaciente. – Sabem que nunca entendi essas coisas muito bem, da religião e da Força, os Jedi… Para mim é tudo muito mais simples.

Leia empalideceu.

— Ela não tem… uma aura.

— Eu não tenho o quê?! – exclamei.

A minha alma, a minha preciosa alma, estava comigo. Sentia-a como parte de todas as emoções que experimentava, nutria e exteriorizava. Pousei uma mão no peito, gesto que supunha impediria essa alma de se escapar do invólucro físico que era aquele corpo que eu não sabia muito bem se seria meu. Dobrei o pescoço, mordi o lábio inferior. Ainda não me tinha visto ao espelho. Reconheceria o meu reflexo? Quem era eu, a Cleo do desfiladeiro de Vitra do planeta Tatooine?

— Fora do vulgar – comentou Leia fixando-me com os olhos semicerrados. Humedeceu os lábios, inspirou profundamente. Continuou agreste: – Tens a certeza sobre isto, Luke?

— Claro que tenho. Se tivesse dúvidas podia escolher… deixá-la onde a encontrei. No entanto, também nunca recusaria auxílio a alguém em perigo.

No meu peito também tinha um coração, vivo, pulsante, que batia agora mais depressa.

— Não tenho medo, Leia – acrescentou Luke sereno. Ou fingiria a calma para não assustar mais os amigos?

— Ela pode não ser tão inocente como julgaste. Porque se esconde dessa maneira? Parece que ela não está… aqui. Como um espetro, um fantasma. A Força não está com ela. E se ela não tem a Força, aquilo que tudo interliga no Universo, ela não pertencerá ao Universo. Uma distorção, uma anomalia… Julgo que estou a falar com alguma lógica e propriedade.

— Talvez seja um desafio.

— Aquilo que procuravas em Tatooine? O teu pressentimento?

— Uma das coisas que procurava em Tatooine. Tudo começou aqui…

— Mas não vai terminar aqui! – Leia envolveu a mão de Luke com as suas, apertando-a. – Mais um motivo para deixares este planeta e regressares connosco para Coruscant. Talvez não hoje ou amanhã, mas o mais breve possível.

— Ei, não estão a levar tudo isto demasiado a sério? – observou Han. – Que problema pode esta moça trazer-nos? Ou ao Luke? Será ela algum agente imperial tresmalhado disfarçado de inocente perdida num desfiladeiro, sem qualquer memória do seu passado? Acho que já não nos devemos preocupar com o Império… Nós vencemos!

Leia fulminou-o com o olhar.

— É muito mais do que isso, Han!

— É muito mais? Então… poderias explicar-me para que eu entenda o que raio se está a passar? – pediu o corelliano irritado, apontando um dedo a si próprio.

Chewbacca rosnou.

Levantei-me bruscamente, derrubei o meu banco que caiu com estrondo.

— Lamento – disse com a voz trémula –, lamento muito, não sabia… que era um perigo.

Eu não sabia nada sobre mim… Descobrir que era uma ameaça como das primeiras definições que caberiam à minha pessoa foi como um soco no estômago. Sentia-me zonza e agoniada. Mantinha a mão sobre o peito. A minha alma, não a iriam levar. Nunca! Ganhara o direito a possuí-la em meio da febre, da desorientação e da dor. Custara-me muito agarrá-la entre o negrume da minha solidão inicial.

— Acalma-te – pediu-me Luke.

— Não quero ser um perigo – confessei.

— Está tudo bem. Tu não és um perigo.

Andei às arrecuas. Luke ia levantar-se para me puxar novamente para aquele círculo restrito, construído com base numa cumplicidade única, extraordinária, forjado na guerra, cimentado por circunstâncias irrepetíveis. A irmã, o melhor amigo, o melhor amigo do melhor amigo. Ia levantar-se mas ainda tinha a mão presa nas de Leia e ela puxou-o determinada, impedindo-o de se afastar da mesa, dela e deles, do círculo que o protegeria sempre. Andei às arrecuas, mão sobre o peito.

— Eu não quero… que me julguem mal, mas acho que não posso ficar aqui. Eu não faço parte dos planos de ninguém… Dos planos dele… Eu não sou ninguém.

Saí pela porta, subindo os degraus de pedra até à luz do exterior. Consegui escutar as últimas palavras de Leia:

— Deixa-a ir. Ela precisa de ficar sozinha. Nós também precisamos, para falarmos melhor sobre este assunto. Foi indelicado, ela ter ouvido o que ouviu.

E as últimas palavras de Han:

— Não podes negar que estava certo. Ela é perfeita para a tua primeira aprendiza, miúdo! Com esse problema da aura… Afinal, bate tudo certo! Estás em Tatooine por causa dela.

O deserto envolveu-me, o cheiro intenso e doce do ar daquele planeta embalou-me os sentidos. Então, larguei o peito e os braços penderam-me ao longo do corpo.


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Notas finais do capítulo

Finalmente um capítulo com muita interação entre os personagens.
Muitas informações, também. O nome da narradora foi revelado: chama-se Cleo. Também foi revelado que existe um mistério que a rodeia, relacionado com a Força... Luke está curioso, Leia está inquieta mas Han Solo acha que é tudo exagero.
Ela saiu da casa onde esteve a ser curada de uma doença misteriosa, temendo o que possa representar. Será mesmo um perigo? O que irá acontecer a seguir?

Próximo capítulo:
No deserto vermelho.



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