A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 48
As escolhas do destino


Notas iniciais do capítulo

"Não sinto amargura, apenas fadiga. Porém a fadiga vai-se dissolvendo, como eu próprio me dissolvo lentamente no ar puro e luminoso do santuário (...)"
in A Voz dos Deuses, Aguiar, J., Edições Asa, 2004



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Sufoquei e abri os olhos. Sentei-me a tossir sem parar, com a impressão de que me tinha afogado e que me tinham enchido os pulmões de oxigénio para substituir a água que aí se teria alojado. Passei uma mão pela testa que estava molhada, mas ao verificar a ponta dos dedos notei que era suor.

Levantei-me a cambalear, apoiada numa das colunas metálicas rendilhadas. Regularizava o fôlego, reordenava as ideias, recuperava as minhas faculdades psíquicas e físicas, relembrava que o confronto com O’Sen Kram continuava. Recuperei a minha arma, fazendo-a flutuar até à minha mão desde as frias profundezas da sala.

O zumbido singular que dois sabres de luz provocavam ao chocarem entre si chamou-me a atenção. Procurei inquieta por Luke Skywalker, habituando a visão à penumbra encarnada. Descobri-o junto ao reator avariado, envolvido num feroz recontro com o fantasma azul do lorde negro.

Uma lembrança fugaz fez-me tremer. Luke Skywalker contra Darth Vader. Já se tinham enfrentado, no passado. Vi pedaços dos seus combates anteriores na minha mente, em imagens distorcidas, esforçadas, desfocadas. Tinham sido experiências dolorosas para o cavaleiro Jedi… Tal como eu o sabia, Kram também devia sabê-lo e jogava com isso. Fixei o combate que era uma reedição atroz do confronto que opusera pai e filho na segunda Estrela da Morte, sob o olhar atento do Imperador Palpatine. Recordá-lo entristeceu-me.

— Não gostas de ver?

Olhei para a direita. Kram era uma silhueta atarracada dentro do manto escuro.

— É um espetáculo magnífico, não concordas?

O espírito de Vader girou o sabre de maneira a apanhar Luke de lado, mas este usou a Força e saltou para trás num registo acrobático. A espada vermelha cortou parte do reator que rangeu ao ser atingido.

— O Jedi Skywalker não vai sobreviver.

A declaração atingiu-me com a mesma pujança da afirmação de que eu era uma traidora. Mas para refutar aquela constatação não me munira de qualquer argumento que pudesse dar-me a supremacia nessa discussão.

— Tu sabes disso.

Sim, talvez soubesse, mas não queria acreditar.

— E tu julgaste que o podias ajudar…

Devia seguir o conselho do meu mestre Jedi que lutava contra um espetro incorpóreo. Não escutar, não responder. Kram queria baralhar-me, atirar-me para um local isolado de onde não sairia sozinha. Até o tom da sua voz já não era tão esganiçado, era subtil e macio, semelhante a um animal perigoso que acariciava e envenenava antes de morder.

— Sem mim, o teu poder é insignificante. Sei que te lembras de como eras antes de seres conspurcada pelas memórias da guerra nas estrelas. Não tremias ante nenhuma adversidade, eras capaz de matar sem vacilar a mão. Mas, nesta sala, duvidaste de ti própria quando lutaste contra Kenobi, contra Vader. Como vês, os ensinamentos do Jedi Skywalker não foram suficientes para recuperar o teu antigo eu. Não és mais poderosa do que antes. Nem sequer és tão poderosa quanto antes!

Eu fervia em incertezas. Larguei a coluna metálica rendilhada.

Havia medo e ódio em mim, a pedrinha negra soluçava, mas eu sabia que esse não era o meu caminho, nem o caminho de Luke Skywalker e dos seus amigos, da galáxia e do Universo. Precisava de luz, não precisava de mais trevas. Sempre existira tanta escuridão em mim…

— Não tenho falta desse poder que nasce da tua ambição, Kram. Porque insistes em recuperar-me se vais destruir-me a seguir?

O senhor do trono negro estremeceu. Avisou-me irado:

— Não me encurrales, criatura. Ainda não despoletei todo o meu incomensurável poder sobre o Jedi Skywalker. Julgas que isto é tudo o que posso e consigo fazer? Como estás enganada! Como aquele infeliz, que luta contra uma migalha do meu poder, está enganado!

Desafiei-o com um esgar de desprezo. Não acreditava que teria mais truques. A sua única primazia era que aniquilava a Força, mais nada. O resto era uma dissimulação muito bem elaborada. Servia-se de hologramas para lutar e para se exibir.

Estávamos os dois a inventar uma máscara para esconder as nossas fragilidades. Embora ele sempre tivesse conhecido as minhas, eu acabava de desvendar as dele. 

— O que me está a refrear… és tu!

Detestei a insinuação que atirava a responsabilidade para os meus ombros.

— O que queres? – indaguei desnorteada. – Se não me vais aceitar porque sou uma traidora… o que queres?

Deslizou na minha direção e parou a centímetros de mim. Senti-lhe um cheiro pútrido, um hálito desagradável, gelo e aflição. O corpo moldado em energia morta, a Força quente aprisionada naquele invólucro amaldiçoado.

— Quero que te ajoelhes e me reconheças como o teu mestre!

Liguei o meu sabre de luz, recuando, negando com a cabeça.

— Nunca!

— Quero que te voltes para o lado negro. Quero ver-te… a matá-lo!

Apontou para Luke Skywalker. Vader acabava de atingir novamente o reator e as faíscas vermelhas choviam sobre os dois oponentes. Luke baixava a cabeça num reflexo para se proteger. A lâmina verde estava levantada e atacou, de seguida, aproveitando a falha na postura do fantasma azul.

— Não vou matá-lo. Enlouqueceste? Ele é o meu mestre… Devo-lhe a minha lealdade.

— Hum… Curiosa afirmação para quem não sabe muito bem o que significa ser-se leal.

— Não. Fiz… uma escolha.

— E que te adianta? O teu fim será sempre a destruição.

Olhei para Luke que agitava o sabre em movimentos precisos e mortíferos que o fantasma azul travava como se não fizesse qualquer esforço. Estava suficientemente longe e demasiado empenhado na luta para escutar o que Kram conversava comigo.

— Foste criada para matá-lo. Cumpre o teu destino, criatura.

— Não!

A manga do senhor do trono negro moveu-se num espasmo e, ao fundo, Luke Skywalker caiu com um grito. A Força deixara-o. Afligi-me. Apertei o punho prateado da minha espada crepitante. Tinha de ir socorrê-lo, mas Kram estava demasiado próximo de mim e temia que me agarrasse para me impedir o salvamento.

— Quando eu quiser… deixamos de brincar. E eu próprio mato o teu precioso mestre!

Arquejei indignada com a chantagem. Se ele não queria que o encurralassem, certamente que se deliciava a fazer isso nos outros. Se porventura eu tivesse alguma dúvida, na realidade não me sentia inclinada a aceitar o que me oferecia e não tinha qualquer dúvida, com aquela demonstração de tirania tinha solidificado as minhas certezas.

— Não resistas… Entrega-te ao lado negro. Sabes que sempre pertenceste às trevas. Tu não és como ele! Tu não és feita de luz. Se não me foste leal… para quê seres leal ao cavaleiro Jedi? Essa fidelidade abnegada destruiu-te e corrompeu-te.

O cavaleiro Jedi contorcia-se no chão. O fantasma azul caminhava pacientemente para rematá-lo. Na minha alma ainda existia uma réstia de lucidez e de perseverança. Ainda conseguia sentir a Força na pedrinha negra cujo bater era tão débil que eu mal o percebia. Ainda havia a Força e eu acreditava nela, agora com mais fervor do que nunca.

— Não vais ganhar, Kram.

Corri e lancei o meu sabre de luz no momento em que Darth Vader se preparava para decepar o braço direito de Luke. Apanhei com o forte e inesperado embate, fui com um joelho ao chão. O espírito insistiu no mesmo movimento e a minha segunda defesa foi mais atabalhoada. Vi a minha lâmina verde vergar-se ante a lâmina vermelha. Mas ao estar dobrada e numa posição pouco ortodoxa para combater, quase como se estivesse curvada a implorar, fiquei menos longe de Luke. Descurei a minha segurança e estendi-lhe uma mão. Faltava pouco para tocá-lo. Escutei o sabre de luz vermelho a crepitar junto ao meu ouvido esquerdo. Abaixei-me, evitei a lâmina que iria ferir-me. 

Continuava sem poder tocar em Luke. Fechei os olhos e enviei-lhe a minha energia mentalmente. Resultou, pois o cavaleiro Jedi, animado, frenético, deu um salto e rechaçou o espírito de Darth Vader com o seu sabre de luz. Voltou por mim, levantou-me puxando-me pela gola da túnica. Apertei o estômago com um braço, uma náusea toldou-me o raciocínio.

— Não o voltes a fazer, Cleo! Estás demasiado fraca e perdes energia sempre que me dás a tua Força.

— Mas se não o fizer, mestre, ele vai matar-te!

— Não te preocupes comigo. Se for o meu destino…

— Disparates! Estamos aqui para eliminarmos O’Sen Kram e devemos utilizar todas as armas possíveis. Os Jedi não usam apenas o sabre de luz, têm uma aliada formidável na Força.

Sorriu-me, os seus olhos azuis eram um calmante naquelas sombras avermelhadas onde existia demasiada dor, maldade, fúria e cansaço.

— Estás a portar-te muito bem, padawan. Estás a usar o que aprendeste com sabedoria e ainda te serves dos teus próprios truques. Mas concordo contigo quando afirmas que és inexperiente. Por isso, não quero que arrisques demasiado.

— Dar-te-ei a minha Força sempre que precisares dela.

— Cuidado. Não sei o que estás a fazer desta vez, mas essa dádiva está a esgotar a tua alma.

— O que queres dizer, mestre?

— Estás a ficar permeável às tentações. Sinto o lado negro em ti.

— Kram está a tentar confundir-me. Não quero escutá-lo, mas é difícil…

— Confia nos teus instintos. O teu coração é bom.

Os músculos dos meus braços ficaram tensos. Não era verdade… O meu coração bom fora esculpido por ele e por aquilo que eu sentia por ele. Estava num labirinto, completamente perdida, sem saber o caminho para casa, sem ter sequer uma casa. Podia acreditar que era luz, mas também sabia que era trevas. O equilíbrio era precário e se afirmava que conhecia as minhas escolhas, interiormente não era tão simples fazer a destrinça entre o que eu era e o que eu queria ser.

O ar vibrou de uma maneira esquisita, ficando mais denso e irrespirável. Havia sombras que se moviam entre as carcaças da maquinaria desconjuntada que pejava a sala. Algures existia um vazio e era onde se postava O’Sen Kram, mudo e vingativo.

Luke observou apreensivo:

— Ele envia um adversário só para ti, Cleo.

Existiam agora dois fantasmas azuis. Ao lado de Darth Vader apareceu uma figura também vestido de escuro, pernas afastadas, com um braço estendido a exibir na mão fechada um punho maior do que o normal de um sabre de luz, com duas saídas. Era um zabrak do planeta Dathomir e, tal como todos os da sua espécie, tinha o rosto vermelho e negro, os olhos alaranjados e pequenos chifres a ornar-lhe a calva e as têmporas.

— Quem é ele? – indagou Luke.

Engoli em seco. Quando ligou o punho da sua arma saíram duas lâminas vermelhas opostas que ficaram a zunir horizontalmente, numa linha mortífera entre nós.

— Acho que é um senhor dos Sith. Darth… Darth Maul, creio que se chamava. Um dos primeiros aprendizes de Palpatine, outro seduzido para os trilhos obscuros da Força. Ele foi derrotado… por Obi-Wan Kenobi.

— Como é que sabes disso tudo?

— Mostrei-te como, mestre… Não me queres perguntar mais tarde?

Liguei o sabre de luz e aceitei o desafio. Era apenas uma imagem, uma ficção, medo visível. O fantasma azul de Darth Maul deu uma pirueta e girou o seu sabre de luz, como uma hélice. Defendi-me no limite do impossível. Senti as pernas tremer com aquele arremesso inicial. Não iria ser fácil.

— Cleo, concentra-te! – berrou-me Luke, mas teve de me deixar à minha sorte, pois o fantasma azul de Darth Vader atacou-o a seguir.

Nunca julguei que seria tão rápida como demonstrei sê-lo na primeira sucessão de golpes e de contragolpes que troquei com Darth Maul. Ele tinha vantagem ao atacar com um sabre de luz de lâmina dupla, era como se empunhasse duas espadas e eu tinha de multiplicar a minha defesa, cortando os ataques que vinham de lados opostos. Cima, baixo. Esquerda, direita.

Só podia defender e recuar, focando os meus sentidos nas investidas furiosas daquele espírito que tinha menos técnica e resiliência do que Darth Vader mas que era igualmente assustador e letal. Entre assaltos, Darth Maul parava e caminhava num amplo círculo, rodeando-me, delimitando a nossa arena imaginária, a medir-me e a testar-me. Procurava pela falha que me faria perder aquele duelo. Eu mantinha o meu sabre de luz levantado, a lâmina verde a faiscar-me entre os olhos, a recuperar o fôlego, a tentar também medi-lo e testá-lo, mas não conseguia imitar aquele olhar incisivo que tolhia qualquer capricho de lhe ser superior.

Luke Skywalker também experimentava as suas dificuldades. O espírito de Darth Vader mostrava-se mais impaciente e menos perdulário. Vi o meu mestre a cair com um safanão repentino. Levantou-se a cambalear e tive de mexer-me depressa, pois o sabre de luz do espírito de Darth Maul rasgava o ar na direção da minha cabeça. Defesa alta, defesa baixa. Outra vez. E mais outra. Dei um salto, espada em riste. Fagulhas e quando me passou o ímpeto suicida tinha o sabre de luz espetado num bastidor que cobria a parede. Um zunido e saltei num mortal invertido. Escapei da espada vermelha. Darth Maul olhou-me impaciente.

Uma risada.

O fantasma azul do meu oponente adotou uma posição defensiva. Aguardava pela minha iniciativa. Limpei o suor da testa, pelo menos era uma pausa para que eu refrescasse os pulmões. Não pensava atacar, ele que o fizesse.

A voz de Kram ecoou-me nos ouvidos, suave e enganadora:

— Não és suficientemente forte. Não estás à altura… Vais perder, mais cedo ou mais tarde. Cometes um erro e descobres que podias ter mudado esse desfecho, se ao menos me tivesses escutado. Queres que termine? Queres que a luta acabe? Volta o teu engenho contra o cavaleiro Jedi. Mata-o, cumpre a tua função. Ajoelha-te perante mim, beija-me o manto e assim, garanto-te, verás um fim desta aflição.

— Nunca – tartamudeei desesperada. – Nunca…

— O que tens de fazer é muito simples. Mata o cavaleiro Jedi.

— E depois?

— Se não o matares, morres igualmente.

— Prefiro morrer na luz… do que morrer na tua escuridão. Creio que já tinha sido bastante clara nessa afirmação.

Eu fraquejava. Ajeitei os dedos em redor do punho do meu sabre de luz.

Eram apenas fantasmas. Darth Maul não existia. Darth Vader também não… Imagens sem nexo. Mortos. Uns para sempre renegados, outros resgatados. Vader fora Anakin Skywalker que se entregara ao lado negro. Mas quando morrera na segunda Estrela da Morte arrependera-se. Pedira perdão… Darth Vader passara outra vez a ser Anakin Skywalker, reunira-se na Força a Obi-Wan e a Yoda.

Sacudi a cabeça. Kram concluiu:

— Assim seja, criatura.

Reuniram-se todos na Força…

O fantasma azul de Darth Maul moveu-se.

Agitei um braço e lancei uma caixa contra o meu adversário. Atravessou-o. Lancei um tubo, um destroço do reator, uma placa pesada. Atravessaram-no. Corri para fugir do seu alcance, saltei, agarrei-me a uma plataforma, icei-me. Olhei-o que ficara mais abaixo. Darth Maul dobrou o pescoço para encarar-me. Eu não iria mais lutar contra quem não conseguiria derrotar, ferir ou eliminar. Era um combate inglório. O meu inimigo era O’Sen Kram.

A Força era luz.

E tal como o meu criador, eu controlava a Força de uma maneira especial.

Se Kram conseguia criar espetros lutadores a partir desse controlo desviante da energia cósmica, conjurados de velhos senhores Sith desaparecidos feitos em cinzas, parte do Mal ou do Bem não importava, eu também seria capaz de os desfazer, utilizando o mesmo poder estranho que escapava à compreensão de qualquer cavaleiro Jedi.

Eu possuía esse maravilhoso talento que era conjurar a Força a partir dos ensinamentos contrários dos meus dois mestres – um que me ensinara a potência avassaladora do lado negro com a minha criação, outro que me mostrara a abençoada invencibilidade do lado luminoso na minha ressurreição.

A plataforma tremeu quando Darth Maul aterrou nesta. Voltei-me aflita. Precisava de me distanciar daquele adversário insistente para fazer o que tinha imaginado. Nunca o fizera e não tinha a certeza se o faria bem na primeira tentativa. Por outro lado, ao fazê-lo acabaria com o problema daquele espírito. Talvez ele adivinhasse as minhas intenções e quisesse impedir-me.

Defendi-me mal. A lâmina escaldante que cortou o corrimão da plataforma e a placa metálica que constituía o chão fendeu-me a coxa e uivei com a dor. Agarrei-me à perna queimada, onde o sangue coagulara, agitei o meu sabre num desatino. O segundo golpe raspou-me o braço direito e destruiu a plataforma. Caí desamparada e evitei o desmaio por um triz.

Rastejei para fugir de Darth Maul. Escondi-me atrás de um computador tombado. Rasguei um pedaço de tecido da túnica e atei-o sobre o ferimento do braço, apertando a ligadura improvisada para mitigar as pontadas dolorosas. Escutei um berro desesperado de Luke Skywalker. Kram voltara toda a sua perfídia para o cavaleiro Jedi e atingia-o para me fazer vergar à sua vontade e desistir da minha insanidade.

Cerrei os dentes, os olhos. Crispei os punhos.

— Não…

Escutei o restolhar do fantasma azul rondando, aproximando-se.

— Não!

Acalmei-me. A pedrinha negra batia levemente. A Força amparou-me.

Não sabia como dar início àquilo. Talvez não fosse muito difícil, talvez bastasse absorver a Força que conseguia sentir e puxá-la para mim, guardá-la, escondê-la. Como eu fizera com a minha aura sempre que não queria intrusões do cavaleiro Jedi na minha mente, só que em vez de usar o campo energético que me pertencia teria de ser a uma escala muito maior. O meu alvo inicial seria o espírito que me farejava, caminhando num silêncio aterrador. Outros alvos viriam a seguir. Um por um iria esmagá-los, até alcançar o senhor do trono negro e aplicar-lhe o mesmo ataque.

Iria tentar…

Não!

Os nevoeiros de Dagobah envolveram-me. Estava no pântano dos supremos mistérios. O mestre Yoda, alcandorado num rochedo, coberto pelos farrapos da sua antiga capa dos Jedi, apoiava-se no bastão e fixava em mim um olhar eivado de censura, de expetativa e de desapontamento.

Fazer ou não fazer. Não existem tentativas…

Darth Maul descobria-me. Saí do meu esconderijo, encarei-o. O meu sabre de luz estava desligado, ele ligou o seu. Duas lâminas vermelhas, faiscantes, perigosas, na mesma linha horizontal que significava a separação do nosso espaço. O dele e o meu. A vida dele e a minha. O seu poder destruidor e a minha inexperiência embaraçosa.

Eu estava preparada. Mais calma, mais segura. Até porque não tinha alternativa. Esperava-me outra ronda a lutar contra aquele fantasma azul que não se cansava ou hesitava. Luke Skywalker caíra outra vez vergado por um golpe traiçoeiro de Darth Vader. O’Sen Kram ria-se enlouquecido dos seus triunfos.

Estiquei um braço, mão de dedos abertos e retesados. Vagarosamente, semicerrei as pálpebras, deixei-me absorver pela tranquilidade da minha alma domesticada. Concentrei-me. A pedrinha negra bateu com mais vigor, quente, fervente, insuportavelmente escaldante. Todos os desenhos de energia que habitavam aquele espaço surgiram na minha mente límpida. Só tinha de me apoderar deles. Era demasiado fácil se não pensasse na abstração daquele ato radical.

Fazer ou não fazer.

Kram pressentiu o que estava prestes a acontecer. Voltou-se inquieto, rugindo, murmurando. Antecipou a alteração no jogo, a sua influência a diminuir, a perda do comando.

O fantasma azul de Darth Maul investiu, munido do seu sabre de luz assassino que volteou na minha direção. A luz vermelha atravessava as minhas pálpebras e feria-me a retina.

Nesse preciso momento aniquilei a Força. Fi-la sair daquela sala negra e fria, aprisionei-a em mim. Um forte safanão derrubou-me, bati com a cabeça no chão. Num primeiro pensamento julguei que Darth Maul me tinha atingido com a sua espada e procurei aflita pelo ferimento que me teria separado em duas, pela humidade do sangue. Mas estava inteira e perfeitamente sã, se não contasse com os golpes anteriores na coxa e no braço.

Procurei pelo espírito e percebi que o tinha desintegrado, como esperava que sucedesse com a aniquilação da Força. Não restava nada, nem a mínima sombra rubra daquele magnífico sabre de luz de lâmina dupla.

Um rugido reverberou na obscuridade.

— Maldita!

O vulto de O’Sen Kram dobrava-se numa convulsão, parecendo mais mirrado e menos imponente. Perdera a sua forma humana, derretera, encolhera, e era uma coisa torcida e inconsistente, metal que acabava de ser exposto a uma temperatura demasiado elevada. Ainda tinha a imitação de um torso, membros inferiores dobrados num ângulo estranho, membros superiores de tamanho díspar, uma cabeça que se alongara como se prensada.

O fantasma azul de Darth Vader paralisara no meio de um ataque e Luke Skywalker, a seus pés, tentava levantar-se, arfando dolorosamente.

Eu conseguira. Eliminara o espírito de Darth Maul, afetara O’Sen Kram. E os resultados tinham sido maravilhosamente coerentes com o que eu planeara. Fazer ou não fazer. Não existem tentativas. Sorri furiosamente.

Obrigada, mestre Yoda!

A imitar os movimentos desajeitados do cavaleiro Jedi, também me levantei. Cuspi uma massa escura que se alojara na minha garganta e que me sufocava. Não quis identificá-la, mas tinha a certeza de que não era sangue.

Olhei para Darth Vader e estiquei o braço, mão de dedos abertos e retesados.

— Maldita… Vais pagar por esta afronta!

Luke apoiava-se numa coluna metálica rendilhada e ainda não recuperara da súbita falta de energia, respirando com muita dificuldade. Com a mão enluvada agarrava frouxamente o sabre de luz aceso.

Cleo, não o faças. Sei que pensas que é a melhor solução… Mas não o faças. Peço-te. Está a levar-te para o lado negro!

— Mestre, é a nossa única solução!

Os meus olhos estavam opacos. Sabia-o. Nas veias corria o meu poder de outrora, de quando tinha sido criada, longe da humanidade que depois me impregnaram para me transformar numa criatura inquieta, domesticável, insegura e fraca. Alguém que precisava de dormir, de se alimentar e de amar.

Reparei que Kram recuperava do golpe que recebera. Já não estava tão encolhido e a sua forma crescia, convertendo-se num gigante de proporções harmoniosas, um homem atlético, um deus guerreiro. O seu manto ondulava.

Então, aniquilei a Força. Recebi nova onda de choque que me atirou contra uma das colunas, partindo-a ao meio apesar de esta ser feita de titânio. Parte do teto desabou, protegi a cara dos destroços que caíam sobre mim, tapando-a com os braços moles. O espectro de Darth Vader desapareceu, mas Luke Skywalker tinha colapsado numa posição pouco natural, um androide desconjuntado. Sofria e lamentou-se alto. Chamou por mim.

Padawan! Cleo… por favor…

Emergi das ruínas. Caí de gatas, privada de todas as minhas forças, atacada por uma febre súbita que me fazia suar e tremer, calor e frio em doses colossais a disputar aquele corpo enfermo. Segurava no punho do meu sabre de luz e não sentia os contornos do metal. Apesar de ter absorvido a Força, não a conseguia manter em mim e, sem energia, aquela sala era como um vácuo desprovido de vida. Todos estavam a ser afetados. Eu que atacava, o cavaleiro Jedi que era inocente, o terrível senhor que eu pretendia eliminar.

Fixei Kram que estava encolhido outra vez, sacudindo-se para recuperar o controlo das funções da sua forma humanoide. Grunhia, bufava, praguejava.

— Maldita! Maldita!

Comecei a rastejar para me aproximar dele. Aos poucos, lentamente, arrastava o meu peso como um castigo. Ergui-me num impulso, andei. Fixava o alvo do meu rancor, relembrando o que ele me tinha dito antes, o combustível que me obrigava a continuar, que me impelia a vencer a distância com passos mancos e desajeitados que me separava daquela coisa que se contorcia e borbulhava.

Eu era uma traidora… Iria beijar-lhe o manto… Não era luz… Iria matar-me depois de me mostrar como estava enganada… Não estava à altura…

Passei por Luke que despertava. Tentou agarrar-me, escapei-lhe.

Continuei, obstinada. Ninguém me podia travar, nem nenhuma palavra ou ideia me deteria. Tinha chegado a hora de terminar com o pesadelo. A minha missão findava com aquele desfecho. Enfrentar e derrotar o senhor do trono negro, completar o meu treino na Cidade das Nuvens, vitória.

Interrompi a marcha para limpar a garganta de outra massa viscosa. Tossi durante algum tempo. Arranquei o pendente que se cravava na pele como uma unha e que me magoava. O pequeno carvão tinha-se convertido num luzidio diamante. A repetição do fenómeno que ocorria com o lago do mestre Eilin, que era límpido quando o Mal vencia no Universo, que se turvava com a divulgação do Bem. Sorri. A pedrinha negra era agora uma joia cristalina. Tilintou no chão quando a deixei cair. O lado negro era, de facto, poderoso. Mas iria descartar-me dele quando decepasse a maldade daquela sala.

Segurei no punho prateado com as duas mãos.

Kram estava diante de mim, contraído e em sofrimento, amolgado numa pasta informe coberta por um pedaço de tecido grosso que lhe acentuava a deformidade. Grasnava, assobiava, estalava, rugia, ruídos de algo a fender-se e a desligar-se. Liguei o sabre de luz. A lâmina fluorescente lançou uma luz verde sobre o manto, penetrando nas fibras, revelando uma massa opalina borbulhante que se agitava devido à fusão do núcleo.

— Não te atrevas! – ameaçou-me Kram, ríspido.

Não era um inimigo, um tirano ambicioso que precisava de ser travado e sentenciado. Não era uma criatura munida de maus instintos, nascida boa mas criada ruim por influências de algum professor enlouquecido. Não era um ambicioso sem escrúpulos, nem um megalómano doentio, nem um demente desgovernado. O’Sen Kram era o Mal puro, energia maligna, as trevas sólidas. O clone da maldade de alguém que extirpara esse fantasma da sua alma atormentada, guardando-o numa entidade separada que pudesse manipular. E eu sempre o tinha sabido…

Luke disse com a voz rouca:

— Cleo… Afasta-te dele…

E eu disse:

— Adeus, O’Sen Kram!

O senhor do trono negro soltou um grito hediondo. Num movimento súbito, deslizei a lâmina do sabre de luz. Atingi-o algures no manto, no sítio onde haveria uma espécie de pescoço, entre os ombros e a cabeça. Se fosse possível afirmá-lo, tinha-o decapitado. Os dois pedaços separaram-se com um estrondo semelhante a um trovão, seguido de uma nuvem de faíscas brancas.

Olhei atarantada para o fenómeno. Kram desfazia-se em luz, a ironia suprema. A forma que tinha sido o seu corpo que nunca revelara sacudia-se, espremia-se enquanto se envolvia numa capa ofuscante, branca como uma supernova.

A Força encheu a sala com a pujança de uma explosão. Vacilei, olhei para o reator que teve um arranque, acendendo milhentas luzes e depois se aquietou com um rangido. O chão começou a tremer.

— Cleo, afasta-te!

Olhei para Luke. Os seus olhos azuis brilhavam por causa da cintilação do perecimento de O’Sen Kram. Ignorei a urgência do seu aviso ao encantar-me naquela cor profunda, hipnotizante, linda como os oceanos de planetas distantes que eu nunca visitaria.

Porque era tarde demais…

Um feixe esbranquiçado desprendeu-se do corpo ondulante de O’Sen Kram e atingiu-me, atravessando-me. Fui empurrada para trás e tombei, soltando o meu sabre de luz que rolou pelo chão até se perder entre as sombras vermelhas.

O meu criador, o meu assassino, desapareceu pouco depois numa implosão silenciosa. Restaram novelos de fumo, um odor forte e químico. Fora completamente desintegrado. Uma nova prisão de gelo não tinha sido necessária, contê-lo não teria sido solução, pois que haveria de conseguir soltar-se quando outra ocasião propícia se apresentasse e haveria uma terceira vinda, indesejada, provavelmente mais virulenta, daquele Mal. Outro cavaleiro Jedi a sofrer para o derrotar, mais vidas ceifadas, uma guerra. Isso já não iria acontecer, para meu contentamento. A nossa vitória era total e esmagadora.

A sala iluminou-se e aqueceu. Era Kram que a mantinha negra e fria.

Senti-me, de algum modo, feliz.

Um espasmo roubou-me a alegria. Levei as mãos ao ventre. A ferida era profunda, feia, irremediável. A condenação, inevitável. Olhei para a minha mão ensanguentada. Aquele era o preço que pagava por ter sido livre. Não me arrependia.

Luke Skywalker arrojou-se junto a mim. Tinha recuperado as suas energias com o regresso pujante da Força ao lugar. Estava suado, o cabelo em desalinho, rugas de esforço a consternar-lhe a meiguice do rosto. Achei-o mais atraente do que nunca. 

Debruçou-se e segurou-me na mão.

Compreendi pelo seu olhar atormentado que as suas visões do futuro lhe tinham mostrado isto. Eu, ferida fatalmente, delirante, agonizando nos seus braços. Se fizera tudo para me afastar de Bespin e da Cidade das Nuvens, daquela sala e do combate contra Kram, fora para contrariar esse desfecho e salvar-me.

Compreendi também a inexorabilidade da minha morte.

— Cleo, aguenta-te. Por favor, não desistas… Agarra-te à vida.

Recuperei a felicidade que tinha sentido ao ver o fim de O’Sen Kram.

— Vencemos, mestre… Vencemos.

— Sim, minha querida padawan. Kram foi eliminado. Foste… fantástica. Magnífica. Portaste-te mesmo muito bem. Estou tão orgulhoso de ti!

— Mas o lado negro…

— Não existe mais em ti. Estás tranquila, em paz. Quando atingiste Kram com o teu sabre afastaste todo o ódio, a raiva, o medo. Eras uma luz que dominava a escuridão. Apesar de teres agido com imprudência, conseguiste recuperar a lucidez e a tua confiança. No momento decisivo, atuaste apoiada na Força.

— Sim… Acho que sim. Não me lembro bem…

— Cleo, olha para mim e escuta-me. – Vincou as palavras. – Temos de sair daqui, precisas de tratamento. Estás gravemente ferida.

— Eu sei, mestre. Mas não vou fazer o que me estás a dizer… Vou desistir… Mestre, vou partir…

Ficou pálido e protestou:

— Não digas isso. Ainda podemos salvar-te… Aguenta um pouco mais.

— Não…

— És teimosa em tantas coisas… Não sejas teimosa nisto também. Peço-te.

Uma lágrima quente escorreu pela minha face gelada. Estava com frio, mas não lho disse, não o queria afligir mais.

— Tu sabes que terminou, Luke. Agora, olha tu para mim e escuta-me… – Mostrei-lhe um sorriso trémulo. – Quando saíres daqui, vais esquecer-me… Não sou nada, nem nunca fui alguma coisa na tua vida tão importante. Oh, sim, fui a tua primeira aprendiza, mas vais ter outros alunos… Vais reconstruir o templo e a Ordem, vais recuperar a antiga escola, vais ver surgir grandes cavaleiros Jedi guiados pela tua sabedoria. Vais cumprir o teu destino e restaurar os costumes desses nobres guardiães da República… Num dia longínquo, daqui a alguns anos, quando ainda fores jovem e bonito como és hoje, vais encontrar alguém mais especial do que eu. Deixarás de estar tão sozinho… Tinhas razão, não existe um futuro nosso. Nunca existiu… Não sirvo para ti… Sou tão imperfeita… Serias infeliz comigo, Luke Skywalker. Tenho a certeza.

— Não, Cleo. Não sejas tão injusta contigo. Não te acabei de dizer que foste fantástica e magnífica? Completaste o teu treino, padawan. És um Jedi.

— Não me mintas.

— Um Jedi nunca mente.

— Oh… Claro…

Massajava a minha mão entre as suas.

Deixei-me abater por uma tontura. Ele chamou por mim, aflito.

A minha mente ficou presa numa memória quente e suspirei:

— Tatooine…

Os dois sóis punham-se no horizonte e tingiam o céu de requintadas pinceladas carmins, laranjas, vermelhas. Areia dourada ondulando numa paisagem monótona. As estrelas acendiam-se e uns dedos curiosos criavam uma esteira leitosa na noite. A atmosfera doce, que fazia dormir e sonhar. Ele percebeu a minha emoção.

— Foste feliz em Tatooine… Sempre detestei o planeta onde cresci.

— Eu sei… Mas tudo começou em Tatooine. O teu pai, a tua vida… O meu aparecimento. Eu comecei em Tatooine.

— Existe magia no deserto vermelho – declarou e sorriu-me inquieto.

Paulatinamente, eu adormecia. Pelo menos, o ferimento já não me doía e o frio terminara. A minha mente embotava-se e as minhas recordações começaram a fragmentar-se. Entre as imagens nítidas havia espaços pretos, entre as recriações das conversas que tivera havia instantes silenciosos. Deixei de reconhecer os lugares por onde tinha passado, os nomes dos rostos daqueles que se cruzaram comigo. Olvidei a noção das cores e ficou tudo cinzento. Começava a perder a consciência.

Mas não podia abandoná-lo sem lhe contar a verdade.

Estava convicta de que o aviso do mestre Eilin, com o fim de O’Sen Kram, já não fazia qualquer sentido. Não iria provocar nenhum cataclismo irremediável no Universo, nem abriria uma fenda interdimensional que engolisse a galáxia.

Entreabri os lábios secos, tentei falar mas as palavras fugiam-me.

Luke Skywalker aproximou o ouvido da minha boca para me escutar melhor. Eu sussurrava, com o ar a vazar-se dos pulmões. Depois de alguns sopros incoerentes, disse-lhe:

— Kram… Ele é o meu criador. O meu pai. Perdoa-me, não o podias saber…

Pausei e continuei num fio de voz:

— Sem ele, não posso viver… Estava destinado. A morte de Kram era a minha morte. Nada podias fazer. A escolha… No fim de tudo, a escolha foi sempre… minha.

Luke Skywalker meneou ligeiramente a cabeça. Ele compreendia.

A bondade era inerente aos cavaleiros Jedi.

A compaixão, o altruísmo, a nobreza.

E eu não era nada disso… Mas tinha completado o meu treino e desaparecia como um Jedi.

Fechei os olhos devagar.

Deixei de sentir o meu corpo, desligando os circuitos, um por um, até só restar as terminações nervosas da minha mão que ele prendia entre as suas. Entrelacei os dedos nos dele, calor da mão verdadeira, frio da mão mecânica.

Havia ali um curioso equilíbrio…

E fui-me embora.


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Notas finais do capítulo

Depois deste final, só nos resta dizer adeus.
Adeus a Luke Skywalker.
E adeus à Cleo.

Próximo e PENÚLTIMO capítulo:
A pior das despedidas.