A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 47
O duelo


Notas iniciais do capítulo

"Nenhum destes pensamentos o fazia voltar-se contra ela. Mas alteravam o ambiente em torno da sua memória, como se um halo dourado tivesse – não, não desaparecido, mas ficado mais escuro."
in A Questão Finkler, Jacobson, H., Porto Editora, 2011



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A sala era negra e fria. Entre as trevas lobrigavam-se formas inertes de arestas aguçadas e rebordos ameaçadores, destroços retorcidos de um cataclismo de fogo ocorrido muitas eras antes. Havia colunas metálicas rendilhadas que sustinham vigas idênticas que cortavam o teto, fabricadas em titânio. Ao fundo, uma plataforma enferrujada, turboelevadores com as portas escancaradas indicando a falta de uso, bastidores, consolas de comunicação e computadores desligados. Geradores abandonados, um reator gigantesco com os painéis desconjuntados a revelar o interior carcomido pelo tempo. A luminosidade difusa, em tons de vermelho, mal conseguia vencer a escuridão medonha que habitava naquele amplo salão.

Agarrei no meu sabre de luz. A pedrinha negra ao meu pescoço batia.

Um vulto jazia no chão. Confundia-se com o negrume da sala pois vestia-se igualmente de negro, mas era possível identificá-lo graças a uma farta cabeleira loira e a um objeto prateado que estava tombado perto de um dos braços. Aproximei-me lentamente, de olhos fixos na penumbra misteriosa, vigiando qualquer movimento suspeito. Para além de mim, do vulto e de todos os obstáculos identificados, havia mais alguém ali, que se acoitava numa expetativa assassina.

Agachei-me junto ao vulto tentando controlar as minhas emoções. Afastei uma madeixa de cabelo para lhe ver as pálpebras fechadas, observei-lhe as pulsações na veia do pescoço. Estava gelado, mas continuava vivo. A respiração era fraca, tinha um corte na têmpora cujo sangue já secara, parecia completamente esgotado.

— Luke!…

Ao escutar-me, despertou.

— Cleo, não… – gemeu.

Sussurrei-lhe com mais coragem do que aquela que sentia:

— Nunca te iria abandonar, mestre.

Concentrei-me. Pousei uma mão nas costas de Luke Skywalker e comecei a dar-lhe a minha energia. Se não o fizesse, corria o risco de ele não resistir aos ferimentos e à falta da Força, que eu percebia ausente naquela sala negra e fria. Se eu conseguia manter a pedrinha negra a saltitar era devido à minha Força, que eu resguardava desde que tinha sido atacada por Kram, durante a minha entrada na Cidade das Nuvens.

Uma gargalhada sinistra soou. Interrompi a transferência calorífera para o cavaleiro Jedi. Levantei-me amedrontada com o que iria enfrentar. Estava preparada, mas havia demasiados imponderáveis que podiam significar uma derrota irreparável. Só tinha visto O’Sen Kram uma única vez, iria revê-lo agora sob uma premissa totalmente diferente, em que o meu conhecimento sobre ele e sobre mim podia significar um constrangimento à minha atuação. Preferia a ignorância, ter-me-ia tornado mais temerária, mais isenta.

Cortei a respiração e liguei o meu sabre de luz. A luz verde da lâmina iluminou-me o rosto. A meus pés, Luke estremeceu, tentou soerguer-se mas o esforço drenou-o e perdeu novamente os sentidos com um gemido.

Não conseguia ver o meu adversário. O som da risada já se tinha diluído e ficara sem um ponto de referência para identificar o seu esconderijo. Por que motivo teimava no dramatismo daquele encontro? Já não havia mistérios quando tinha chegado o dia daquele duelo com o cavaleiro Jedi. O jogo fora completamente revelado, o último lance era aquele e a galáxia iria, por fim, conhecer o seu destino.

Apertei o punho do sabre de luz como se este fosse a minha única salvação, como se fosse a única fronteira que me separava daquele ser hediondo que me criara. Como se o que me mantinha afastada da sua influência maligna era aquele brilho fluorescente.

— És uma traidora!

A acusação foi como um murro no estômago.

Recompus-me.

Não estava à espera daquele começo que me cortava todas as possibilidades, não me deixando margem de manobra. Sabia perfeitamente as minhas limitações e tinha ido até à sala negra e fria do meu pesadelo sem ilusões.

Esperava poder negociar, alegando que a sua frota estava a ser esmagada no sistema Hosniano, que Lando Calrissian recuperara o controlo de Bespin, que Coruscant não se aguentaria muito tempo sobre o seu jugo.

Esperava conseguir lutar e completar o meu treino Jedi, mas teria de passar o testemunho a Luke Skywalker, numa qualquer fase crítica do combate, para que ele se enfrentasse outra vez a Kram, assegurando-me de que sairia vitorioso com o meu auxílio.

No entanto, o mestre Eilin tinha-me prevenido para aquela eventualidade e não foi totalmente inesperado ter sido chamada de traidora. Recompus-me, portanto.

Sozinha não conseguiria derrotar Kram, mas não estava sozinha. Tinha, ao meu lado, o apoio incondicional e verdadeiro, ainda que nem sempre físico e real, do pequeno ser divino e do meu mestre.

Enchi-me de inspiração. Confiei no meu engenho, no meu sabre de luz faiscante, na Força. 

Continuava sem ver o meu adversário. Falei, portanto, para as trevas.

— Fomos os dois traídos… Pelo feiticeiro de Ekatha.

Uma vibração mínima informou-me que Kram não antevera aquela réplica.

— Não pedi para estar aqui, nesta posição. Tenho sido um brinquedo nas mãos de todos. Manobrada, ludibriada, amaciada, treinada… Sou o produto dos acontecimentos extraordinários que rodeiam a minha curta existência. Tiram-me e dão-me memórias, criam-me emoções e roubam-me sentimentos.

O silêncio prolongou-se.

Humedeci os lábios. A pedrinha negra continuava a bater.

Descendo de uma plataforma junto ao reator surgiu O’Sen Kram arrastando pelos degraus o seu pesado manto escuro. Continuava a ser uma figura velada que não descobria a sua verdadeira natureza. Não havia ali um rosto, nem mãos, nem um corpo palpável que se pudesse ferir ou matar. Revê-lo atiçou em mim raiva e medo. Deixei de sentir o palpitar do pendente. Fechei os olhos. Se me deixasse conduzir para o lado negro, seria o fim…

O senhor do trono negro declarou:

— Não és igual a eles. Não pertences à luz! E este Universo está cheio de luz.

Pestanejei. Entre mim e O’Sen Kram estava Luke Skywalker desmaiado.

— Oh, sei o que estás a pensar… És uma criação da luz, assim afirma o conjuro que te gerou. Meras palavras destinadas a reunir as condições necessárias e invulgares para dar vida ao que não existe. O que distingue esse feitiço de uma frase eloquente dita pelo teu mestre Jedi sobre a Força? Nada… Meras palavras… Embora me custe admiti-lo, disseste a verdade e dou-te razão. Foste um brinquedo nas mãos de todos. A começar por mim! És minha e sempre foste minha.

Observou-me, perscrutou-me.

— Minha pobre criatura! Pensavas que podias escapar do que te foi imposto pela minha vontade… Julgavas que te tornarias mais forte se aceitasses o treino de um mestre Jedi… Sempre estiveste tão sozinha.

— Não…

— Eu não quis que ficasses sozinha, sabia que te faria mal. Precisavas de interagir com outras criaturas. Precisavas de acender o teu coração, porque alma nunca tiveste. Por isso deixei que te saciasses no sangue dos infelizes que se cruzavam no teu caminho. Por isso forcei aquele enamoramento com o soldado.

— Com… Frint? – estranhei enojada. – Tu fizeste com que Frint…?

— Mas tu fugiste de todas as minhas dádivas.

— Fui subtraída de todas as tuas… supostas dádivas!

— Pensaste que podias escolher. Esse foi o teu maior erro. Não podes escolher… E quando julgaste, erradamente, que podias decidir, o que fizeste? Decidiste ser como os miseráveis que esperas salvar hoje com o teu sacrifício. Deslumbrada pelas memórias da guerra nas estrelas, renegaste a tua verdadeira natureza, aquilo que reside nesse núcleo negro e frio como esta sala. Conheço-te, minha querida… Conheço-te melhor do que tu julgas. Embora abjures as trevas, tu pertences-lhes. O que te adianta usar essa coisa ao pescoço? A pedra vai morrer daqui a pouco, quando aceitares finalmente quem tu és… Mas nessa altura, vai ser tarde demais, pois eu não irei receber-te.

— Cala-te…

— És uma escrava. Primeiro, pertenceste-me, agora pertences a Luke Skywalker. Vais voltar a pertencer-me e depois… tudo termina.

— Estão tão enganado…

— Estarei? Tu queres lutar, deixo-te lutar… Luke Skywalker lutou e olha onde ele está agora. Olha para ele! – berrou desvairado. Assustei-me. – Está desfeito e derrotado, um Jedi miserável que ousou enfrentar-se a mim. Porque a sua grandeza reside na Força e eu comando a Força. E assim, comando o Universo luminoso!

Fez uma pausa em que pareceu-me que rosnava.

— Skywalker é patético ao julgar que pode superar-me com a sua insignificante técnica e mais patético se torna ao julgar que tu, minha querida, o poderás fazer com técnica semelhante. Não existe mais ninguém tão poderoso quanto eu… Sou o teu verdadeiro mestre! Só eu te posso redimir ou condenar! Antes de te destruir, aprenderás comigo a lição mais importante da tua miserável vida, que superará todos os ensinamentos inúteis do Jedi Skywalker… Saberás então qual é o caminho certo. Vais beijar maravilhada e arrependida a fímbria do meu manto.

— Odeias os cavaleiros Jedi. Eu admiro-os! É o que nos distingue… Kram.

Ele gargalhou loucamente.

— Por que é que os admiras? Quando te criei, o meu ódio era o teu ódio!

— Porque… prefiro a luz, Kram. Quando pude escolher… escolhi a luz! Sim, quero ser como eles e morrerei a defendê-los. Não quero o teu perdão, nem as tuas lições. Consideras-me uma traidora. Pois bem… Sou uma traidora! Fizeste-me negra e fria, vou provar-te, hoje, que é possível reverter os pecados que foram incutidos na minha criação maldita!

Mantive o sabre de luz bem levantado.

— Tens medo? – perguntou-me, a rir-se.

Nem ousei imaginar uma resposta.

— Deves ter medo. Se eu estivesse no teu lugar, estaria apavorado. Vais sentir dor, vais duvidar, vais perder… Não és invencível, apesar de sentir em ti essa presunção de superioridade. Oh, deves esconder esse teu orgulho, jovem padawan. Espera-se modéstia de uma aprendiza a Jedi…

Desceu o último degrau.

— A partir de agora, começa… Vais aprender que estás enganada. E eu vou ensinar-te o que está certo.

Ergueu os dois braços, ou o que quer que simulava esses membros superiores naquele corpo inventado. Era um clone, lembrei-me… Uma coisa criada por alguém, como eu. De certeza que também tinha destruído o seu criador. Sabia o significado da amargura de se saber atraiçoado pelo próprio sangue, da excitação que acompanhava esse momento trágico de emancipação. Era e seria sempre, naquele confronto, a minha maior vantagem. Conhecer a fragilidade secreta de O’Sen Kram.

— Não és um Jedi. E o teu treino não se completa nesta sala, na Cidade das Nuvens… No fim de tudo, suplicarás pela minha compaixão. Mas quando te tiveres arrojado perante mim, serei impiedoso.

O chão da sala tremeu ligeiramente.

Não deixes que te manipule. Mantém-te afastada dos seus truques mentais, que disfarça em compreensão e empatia pelo que estás a sentir. Só pretende distrair-te. Lembra-te que a Força é poderosa em ti, única, extraordinária. Tu controlas a Força! Deixa-o dar o primeiro passo.

A voz de Luke Skywalker soou límpida na minha cabeça. Espreitei-o. Permanecia deitado, quieto, aparentemente sem sentidos. Mas falara-me. Estaria em contacto comigo num plano espiritual, vigiando o que me acontecia, percebendo as minhas vacilações. Não teria escutado o que Kram dissera ao pormenor, que revelava o meu enorme segredo, ou tê-lo-ia mencionado.

Cerrei os dentes, senti os músculos dos braços enrijecerem com a tensão.

Era imperioso que ordenasse as ideias e descomplicasse a situação. Resolvi acatar os conselhos de Luke, afinal devia-lhe isso pois era o meu mestre e se eu estava ali para ajudá-lo, ele não me iria negar qualquer espécie de ajuda da sua parte. Não podia cair na teia de emoções dúbias que Kram fiava em meu redor para me confundir e enganar. Haveria de me conduzir ao lado negro.

Fechei os olhos por um instante, acalmei-me.

A pedrinha negra continuava a bater.

O’Sen Kram volteou os braços. No fim das mangas, onde supostamente estariam as suas mãos, surgiu uma mancha azul luminosa. Era feita de energia pura e foi crescendo e contorcendo-se até tomar a forma de um fantasma dessa cor, com o tamanho de um homem adulto.

A Força morava naquele espetro transparente, moldado a partir da essência vital que Kram conseguia controlar segundo algum critério diabólico. Não sabia se faria parte das suas capacidades inatas, se fora outra revelação do feiticeiro de Ekatha. Não importava… Era um inimigo, pois nascia da vontade do senhor do trono negro.

Estava pronta, segurando no meu sabre de luz. A figura fantasmagórica ganhou um rosto, feições, contornos de um corpo, volume. Moveu-se, levantou a cabeça coberta por um capuz para encarar-me. Fiquei sem alento, o meu coração disparou.

Reconheci o espírito que Kram criara.

— Kenobi?

Luke entreabriu as pálpebras. Balbuciou:

— B-Ben…?

Recuei. Apertei o punho da espada.

Tinha diante de mim o mestre Obi-Wan Kenobi. Não era o verdadeiro, mas a recriação de Kram estava perfeita e teria emulado naquele espírito trémulo todas as características poderosas desse cavaleiro Jedi lendário e respeitado general da Antiga República.

O espírito retirou do cinto o seu sabre de luz e ligou-o. Surgiu uma lâmina igualmente azul que se fundia com a coloração daquele que a empunhava. Eu era uma confusão de emoções e mal conseguia perceber se a pedrinha negra batia.

Kram disse:

— Luta contra mim, minha querida. Este… é o meu poder!

— Mas… Ben? Não… – tornou Luke delirante.

Aquele não era o verdadeiro Obi-Wan Kenobi, não fazia mal nenhum empenhar-me para destruí-lo. Olhei de relance para Luke Skywalker. Não o iria magoar ou desiludir se tentasse cortar ao meio o seu antigo mentor. Embora julgasse que isso seria virtualmente impossível, pois não havia nada físico para cortar. Como se aniquilava um espírito? Pedi-lhe outro conselho, desesperada, mas a voz de Luke não me voltou a falar.

Uma faixa azul zuniu à minha frente. Só tive tempo de erguer o sabre de luz e aparar o golpe. O espírito de Kenobi tomara a iniciativa e atacava-me. Quando o fez, Kram soltou uma gargalhada arrepiante.

E, apesar de não o desejar totalmente, eu iria lutar.

Limpei a mente de receios, desalentos e de outros sentimentos negros.

Concentrei-me.

Os dois sabres de luz entrechocaram-se, faíscas inundaram o espaço que se abria entre mim e o espírito. Combatia o melhor que podia. Não sabia o que fazer ao certo e reagia por instinto, já que nunca tinha usado um sabre de luz em combate. A ideia principal era não ser atingida e brandia a espada a intercetar cada investida. Os impactos eram intensos e eu tentava afastar-me para aliviar os braços, mas o espírito não me concedia qualquer trégua. Era encarniçado, intenso, voraz, maligno, diferente do verdadeiro Kenobi e percebê-lo incentivou-me a combatê-lo de modo a cortá-lo mesmo ao meio.

Entretanto, Luke tinha perdido novamente os sentidos.

— Luke?!

A espada luminosa do espírito de Kenobi descreveu um arco na direção do meu pescoço. Não tinha qualquer dúvida de que mesmo sendo um holograma deceparia com a mesma precisão de uma espada verdadeira. Num movimento rápido, ergui o meu sabre e defendi o golpe. Ao fazê-lo, perdi o equilíbrio e caí, abrindo a mão e largando a arma, que rolou para longe do meu alcance. Olhei para cima e vi o fantasma azul a saltar sobre mim, de espada em riste. Demasiado perto. Sentia-lhe o calor, os estalidos secos. Gritei.

O fim, pensei. Tão rápido…

Não… Naquela posição ingrata não conseguia arrojar-me aos pés de O’Sen Kram e beijar-lhe a fímbria do manto. Por isso, não seria o fim.

Animei-me, rebolei, a lâmina do espírito passou-me de raspão. Estiquei um braço, usei a Força, o punho prateado aterrou-me na mão. Liguei-o, agitei-o, evitei a investida do fantasma azul de Kenobi. Levantei-me. Tentei rasteirá-lo para criar uma distância confortável que me permitisse combatê-lo. Espantada, vi a minha perna atravessá-lo.

Kram riu-se. Olhei para o rosto transparente de Kenobi, também se ria. Mas não era o sorriso bondoso que conhecia nele. Era outro, irritante e assustador. A expressão trocista do fantasma era a expressão de Kram.

Tudo não passava de uma ilusão.

Endireitei as costas, o meu sabre de luz. O ataque pertenceu-me. Trocámos alguns golpes rápidos. O meu adversário conseguia antecipar todos os meus movimentos e não se mostrava impressionado com as minhas habilidades. De resto, não se mostraria coisa nenhuma, pois o seu rosto fantasmagórico era imutável, apenas alterando-se para imitar o riso do seu senhor.

Lancei a espada, Kenobi desviou-a com uma pancada que me fez doer os pulsos. Estava à mercê do meu oponente e não sabia o que fazer para superá-lo. Fixei-lhe um olhar cansado.

Foge, Cleo. Não o vais conseguir derrotar. Ele move-se com o lado negro.

Não questionei a ordem e fugi. Kram riu-se mais uma vez, chamando-me para a luta, dizendo que estávamos no princípio. Corri para uma plataforma que se situava perto de um monte de máquinas avariadas. Como os degraus estavam destruídos, dei um salto e aterrei no chão metálico com um baque.

— Mas não posso fugir para sempre, mestre! – remoí.

Também conseguimos vencer se soubermos escolher os momentos certos para uma retirada.

Olhei por cima do ombro. Falava-me com a mesma clareza como se estivéssemos frente a frente na terceira lua de Luyta, naquela paisagem amena onde quase não havia vento que lhe pudesse cortar o discurso, ensinamentos preciosos, momentos mais preciosos ainda. Não sabia como o fazia, pois continuava inconsciente.

Deixei-me abater pela emoção e confessei:

— Preciso de ti, Luke…

E eu de ti, minha querida padawan. Aguenta um pouco mais. Entrarei na luta quando conseguires chegar perto de mim outra vez. Estás a portar-te muito bem.

Corria mas tive de parar ao ver que à minha frente estava o espírito de Kenobi. Não fazia a mais mínima ideia de como se me adiantara, quando parecera-me que o único acesso àquela plataforma se fazia por meio dos degraus destruídos.

Liguei o sabre de luz. Estava a ser difícil conciliar tudo naquele combate. Rever o que me tinha sido ensinado, manejar a espada com destreza, concentrar-me na Força, acalmar a minha ansiedade, nivelar o meu ritmo biológico acelerado, estar atenta às movimentações pérfidas de Kram, não esquecer-me do meu mestre que precisava da minha ajuda para despertar.

O espírito atacou-me. As lâminas cruzaram-se repetidas vezes. Zuniam, cortavam o ar e tudo o que encontravam. Tubos e fios, metal e plástico. O corrimão da plataforma, carcaças das máquinas. As chispas saltavam, iluminando o meu rosto abatido. Precisava de uma pausa. O meu adversário, pelo contrário, era incansável. Movia-se com a facilidade de quem não era feito de matéria. Leve e solto, dançava naquela luta que nos opunha.

Uma investida mais forte e não aguentei. Estava nos limites da plataforma onde suportava os ataques sucessivos e com aquela espadeirada, que me apanhou entre duas inspirações profundas para oxigenar os pulmões e o cérebro, resvalei e caí de costas no chão duro.

Quis gritar que desistia, que abandonava. Era mais fácil deixar-me capturar pelas garras malditas de O’Sen Kram que me haveriam de acariciar e depois desfazer por todas as minhas deslealdades. Queria descansar…

Coloquei-me de gatas. Não… Não podia soçobrar e entregar-me quando sentia o ferrão do desapontamento. Não podia ser ingloriamente derrotada, a primeira aprendiza de Luke Skywalker. Vi-o entre o suor que escorria da minha testa e que passava pelas minhas pestanas. Ele dependia de mim e aguardava a minha ajuda que o relançaria naquela luta. Era nisso que me devia concentrar. Aproximar-me do meu mestre e dar-lhe a minha Força, num único toque, mesmo que eu desconfiasse que isso esgotasse a minha energia nessa entrega.

A Força transformou-se. Percebi as suas mutações tão claramente que jurava sentir na pele as diferenças, as novas proporções, os espaços rasgados. Kram orquestrava aquelas mudanças, afundando o cavaleiro Jedi na inconsciência, transtornando a minha concentração. O espírito de Obi-Wan Kenobi e as suas vibrações de algum modo benignas, reconhecia-lhe a limpidez na aura embora tivesse sido um aguerrido adversário conjurado pela maldade de Kram, tinha sido substituído por outro que emanava uma sensação mais poderosa e sombria.

Um sopro cavado e profundo arrastou-se nos meus ouvidos. O som repetiu-se, num compasso sempre igual. A respiração de alguém, mecanizada e artificial. Eu conhecia aquele ritmo monótono, aquela cadência matemática. Conhecia-o… e estremeci.

Atordoada com a fadiga, ergui a cabeça.

Nesse instante compreendi que nunca tinha conhecido o verdadeiro medo. Estava a experimentá-lo agora. Um terror tão absoluto, visceral e paralisante que me reduziu a uma insignificância. A pedrinha negra parou de bater.

Fixei alucinada a plataforma onde brilhava outro fantasma azul. Já não era a figura do mestre Obi-Wan Kenobi. Era a silhueta de um guerreiro que outrora tinha pertencido à estirpe magnífica dos cavaleiros Jedi, mas que trocara a sua nobreza pelo lado negro da Força, que eu sabia ter-se arrependido dessa escolha, que, no fim, redimira a sua alma e fora resgatado para a luz. Mas ali apresentava-se no auge da sua decadência moral, impregnado de maldade, despiedade e orgulho.

Fora, em tempos, o homem mais poderoso e mais temido da galáxia. Comandara enormes exércitos que tremiam com as suas palavras. Os seus desejos eram ordens, as suas fúrias eram sentenças de morte. Uma capa escura envolvia aquele terrível lorde negro, junto à perna brilhava a lâmina vermelha do seu sabre de luz.

Darth Vader.

Olhava-me atrás da sua máscara inexpressiva e aguardava. Não sabia exatamente o quê, pois a supremacia pertencia-lhe. Aproveitei para me colocar de pé, sobre as pernas trémulas. Segurei no punho do meu sabre com ambas as mãos. Hesitei. Não sabia se devia ou não ligá-lo. Se o fizesse, significava que aceitava combatê-lo. Se não o fizesse, arriscava-me a não ripostar convenientemente um ataque súbito.

Kram disse:

— Gostas da minha nova criação? Resolvi presentear-te com um desafio mais digno de uma aprendiza a Jedi. O senhor dos Sith, lorde Vader! Eis o poder negro, o poder verdadeiro. Luta, minha querida. Luta!… Para depois te renderes a mim.

A cólera assaltou-me. Odiava O’Sen Kram e todos aqueles esquemas mesquinhos. Ele que lutasse diretamente contra mim, que não se escudasse atrás de espetros, de gente morta e de palavras malignas!

Cerrei os dentes e liguei o sabre de luz.

O espírito de Darth Vader pulou da plataforma e aterrou à minha frente. Era enorme! A sua estatura descomunal intimidou-me, a sua respiração elétrica arrepiou-me. Arrastei um pé para trás.

Afastei o ódio que sentia por Kram que se ria em casquinadas dementes, pois a situação naquela sala negra e fria era-lhe favorável. O espírito caminhou lentamente, com o sabre de luz levantado. Ele aproximava-se e eu recuava. Eu tremia e suava, mal sentia o punho prateado nos dedos.

Concentração, concentração! Nada era impossível, nada era inatingível. Desaprender o que já tinha aprendido… As avaliações apenas aconteciam na nossa mente. A Força, essa energia viva que nos unia a todos e a todas as coisas, tornava-nos imbatíveis e especiais. Sim, extraordinários… Eu era extraordinária. Grande aliada, sempiterna, imortal. A Força… E eu, com a Força, tinha uma relação única.

A pedrinha negra teve um soluço.

Eu ia enfrentar Darth Vader. Facto e verdade. Tudo o resto implodia, não havia lições que me valessem, simplesmente não me conseguia recordar destas com nexo e propósito. Ficava um vazio tremendo que o desespero e o medo aumentavam. Eu queria lembrar-me como era diferente, mas, ao mesmo tempo, não acreditava nessa minha condição de criatura maravilhosa unida à Força. Precisava de um estímulo, precisava de Luke.

Aborrecido com a minha aparente cobardia, o espírito levantou a lâmina e baixou-a. Defendi-me desajeitadamente, pois o movimento fora brusco e de certo modo inesperado.

O combate começou. Vader avançava para mim com segurança e punha todo o seu poder em cada ataque. Eu defendia, somente, não ousava ripostar, porque sabia não estar à altura. Lâmina contra lâmina, rasgando o ar, a enchê-lo de minúsculos pedaços de luz que saltavam em cada contacto. Os meus braços estalavam de dor, transpirava, ofegava. Não tinha soluções para contornar a minha inexperiência… Se tomasse a iniciativa de conduzir aquela luta ficaria demasiado exposta e Vader atingia-me fatalmente.

Naquele ponto, Kram não se importaria de me assassinar. Era uma traidora descartável, o cavaleiro Jedi prostrava-se exangue e aparentemente já derrotado. Aquelas lutas que provocava com os espíritos que criava eram um divertimento, uma tortura sabiamente elaborada para nos ver sofrer.

O meu corpo estava dormente, o cansaço vencia-me. Darth Vader era muito mais agressivo e violento do que Obi-Wan Kenobi. Se o meu primeiro adversário não me deixava fugir, aquele não me deixava sequer respirar.

O espírito brandiu o sabre vermelho com uma rapidez impressionante, bloqueei-o com a minha lâmina verde. Olhava, sem fôlego, para a máscara negra de Vader. Os dois sabres de luz, cruzados, crepitavam no seu som característico. O espírito imobilizara-se e tive a impressão de que me analisava.

Eu normalizava a minha respiração, relaxei ligeiramente os músculos contraídos e, nesse processo, baixei uma nesga o meu sabre.

O espírito de Vader pressentiu o meu afastamento mental, a quebra ínfima na minha posição e atirou-se num novo ataque. As espadas entrechocaram-se num punhado de movimentos típicos, tão previsíveis que fui capaz de os aparar quase por instinto. Quando nos afastámos por momentos, o espírito elevou a lâmina luminosa. Atirei a minha espada para defender-me. Era precisamente isso o que Vader procurava. Em vez de continuar o golpe, cruzou o sabre com o meu e empurrou-o para o meu lado direito. A seguir, levou-o para a esquerda, nem embate seco e rápido. O punho prateado afrouxou nas minhas mãos. Bastou um segundo embate, novamente para a direita, e voou-me dos dedos. Ouvi-o a saltitar no fundo da sala.

Desarmada. Nem olhei para onde desaparecera o meu sabre de luz, nem me atrevi a procurá-lo com a Força e trazê-lo até mim. Apavorada por me ver indefesa ante o fantasma azul de Darth Vader, comecei a recuar, marcando-lhe os gestos e a lâmina rubra. O meu temível adversário seguia-me, imperturbável.

De repente, tropecei e caí. Gemi quando as minhas costas atingiram o chão. Reparei naquilo que me derrubara.

— Luke…

Vader tinha-me empurrado para o sítio onde estava o cavaleiro Jedi. Fora inesperado, mas não iria desperdiçar aquela oportunidade. Significaria uma mudança no curso dos acontecimentos. Kram percebeu o erro.

O espírito de Darth Vader imobilizou-se.

Apertei a mão gelada de Luke Skywalker.

— Mestre, chegou a tua vez!

Uma onda sacudiu o meu interior, a pedrinha negra desatou num palpitar frenético, tão quente que me queimou a pele. Reprimi um grito mordendo os lábios, fechando os olhos, encolhendo-me com o espasmo fervente que me acendeu o sangue e logo o arrefeceu.

— Não! – guinchou Kram, tresloucado.

O fantasma azul ergueu a sua arma. O sabre de luz faiscou perigosamente quando descia célere na minha direção. Cobri a cabeça com os braços e gritei.

Não cheguei a sentir a dor de uma ferida profunda, nem a inquietante impressão de uma incisão que separaria o meu corpo em dois. Ao espreitar entre os braços vi a lâmina verde de Luke Skywalker a travar a lâmina vermelha do espírito de Darth Vader.

Acontecera tudo abençoadamente rápido.

O cavaleiro Jedi despertara, vira perplexo a figura sombria do seu pai a atacar-nos, não se alongou nas recordações, nem no choque, nem nas perguntas. Era uma mentira de Kram. Dos seus reflexos dependia a sua e a minha vida. A vitória do Bem. Levantou o braço, o seu sabre de luz voou-lhe para a mão, ligou-o, aparou o ataque.

As duas espadas sibilavam.

Tomada por uma tontura, apoiei a cabeça no chão. O teto girava, a minha visão nublava-se, mal conseguia respirar com um peso sobre o peito, não sentia os braços. A minha boca moveu-se e murmurei:

— Mestre…

— Portaste-te muito bem. Agora, é a minha vez.

— Lamento… Sou tão inexperiente.

O espírito de Darth Vader afastou a lâmina. Luke pôde levantar-se, com as energias recuperadas. Tomava o meu testemunho, aceitava lutar, empunhava a arma magnífica dos cavaleiros Jedi. Mais determinado e forte do que nunca.

Kram calara-se.

Percebia a sua fúria, o seu descontentamento. Os detalhes que ele tentava controlar e que lhe escapavam por serem demasiado evasivos. O jogo deixava de lhe pertencer… O senhor do trono negro urrava de frustração e de raiva. Fazia-o noutra dimensão, onde eu e ele nos tínhamos transformado em duas explosões que se anulavam mutuamente. Ali, na sala negra e fria, Kram era uma estátua pétrea que não deixava passar emoções.

Arranhei o chão.

Tinha um sabor amargo no fundo da garganta. Abanei a cabeça, a gemer e a impar. Perdia os sentidos.

De repente, senti calor.

Encontrei-me na cabana iluminada, em Luyta. Num gesto rebelde enfiei a mão dentro do lago e este tornou-se imediatamente preto, como se lhe tivesse derramado tinta. Percebi que eram os meus dedos que se tinham dissolvido em cinzas negras que tisnavam as águas. O mestre Eilin mostrou-me um sorriso largo, de puro contentamento, júbilo arrebatador.

Nós estávamos a vencer.


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Notas finais do capítulo

Na sala negra e fria, Kram e Cleo enfrentam-se finalmente. São dois seres iguais, com poderes idênticos, só que ele tem todas as certezas e ela possui todas as dúvidas.
Luke Skywalker, magnífico cavaleiro Jedi, está na mesma sala para decidir se o combate penderá para o lado sombrio ou para o lado luminoso, a sua presença e auxílio são preciosos, mas o verdadeiro confronto acontece entre Kram e Cleo.
O mestre Eilin também intervém, num plano místico e mostrou à Cleo de que estavam a vencer...
O jogo está no seu auge.

Próximo capítulo:
As escolhas do destino.