A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 37
Pausa


Notas iniciais do capítulo

"Deves movimentar-te em sintonia com a natureza, ganhares consciência da tua respiração, permitir que ela percorra o teu corpo. Não há nada que esteja fora do teu alcance."
in O Império dos Dragões, Manfredi, V. M., Editorial Presença, 2009



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Saí esbaforida do abrigo, esfregando os olhos ramelosos com um punho. Na outra mão tinha a jaqueta que agarrara à pressa. No céu verde o sol ia alto, o que indicava uma hora tardia. Iria ser repreendida pela minha indolência e falta de responsabilidade, mas estava muito cansada e tinha dormido bastante bem na noite anterior. 

Luke voltou-se para mim. Fiz-lhe uma vénia atrapalhada.

— Perdoa-me, mestre. Deixei-me dormir. Não sei… como deixei isso acontecer…

Os treinos começavam no início do dia, ainda o sol despontava no horizonte. Fazia um ligeiro aquecimento, alguns alongamentos e flexões, corria a seguir. Para tonificar os músculos e ganhar resistência física, explicava-me ele preocupado. Um Jedi também devia ter o corpo bem preparado, para além da mente, e nesse departamento eu não me apresentava nas melhores condições. Cansava-me terrivelmente nas primeiras corridas, agora fazia-o sem esforço e sem a supervisão dele. Costumava até a ser a primeira a sair do conforto da cama. Quando ele aparecia, já tinha tomado um banho rápido e aguardava as suas indicações.

Naquele dia descuidara os meus deveres e não tinha uma desculpa decente para apresentar. A verdade era que simplesmente tinha adormecido.

Não me repreendeu. Deixara-me dormir à vontade, portanto. Reparei que ele vestia a sua capa.

— Vamos a algum lado? – perguntei.

Estendeu-me uma capa nova.

— Sim, vamos.

Abri um sorriso imenso.

— Vamos beber cerveja jawa?

— Lamento desapontar-te, mas não nos vamos embebedar. Antes, faremos uma viagem até à primeira lua de Luyta.

Vesti a jaqueta, coloquei a capa sobre os ombros. Atei-a debaixo do queixo.

— Oh… Acabaste mesmo por me desapontar. O que existe de importante na primeira lua de Luyta?

— Luz.

— Aqui também existe luz.

— E água.

— Aqui…

— Não contestes o que te estou a oferecer, minha jovem aprendiza.

— E o que me estás a oferecer?

— Um dia de férias.

— Preciso de um dia de férias?

Inclinou a cabeça para a esquerda e semicerrou os olhos. Fiz-lhe outra vénia atrapalhada.

— Perdoa-me, mestre. Não pretendia ser tão impaciente.

Riu-se com gosto. Gostei de escutar aquele riso despreocupado, que aligeirava tudo o que nos era imposto pelos perigos da galáxia. Ele sabia ser descontraído e divertido quando queria. Não acontecia as vezes suficientes, contudo.

— Mas és impaciente! Vamos, Cleo… façamos uma pausa. Vai fazer bem aos dois. Um pequeno passeio, ver alguma civilização. Uma surpresa… Aceitas que te faça uma surpresa?

— Claro que sim – respondi encantada. – Mas nada de cerveja jawa?

— Não. Chá de fygre vai ter de servir.

— Perfeitamente!

Um rugido chamou-me a atenção e voltei a cabeça para um dos montes que protegia a casa dos ventos noturnos.

— Iko!

O monstro tinha-nos vindo buscar. Aceitei que me abraçasse, mas cerrei bem a boca para não a encher de pelos. Sorri-lhe e disse-lhe que já sentia saudades. Ficou sensibilizado. Rosnou qualquer coisa positiva, pois acenou a cabeça nesse sentido e Luke informou-me que ele dizia que eu estava diferente. Os meus treinos começavam a notar-se e fiquei orgulhosa por os meus progressos se refletirem em mim de uma forma tão evidente. O meu mestre advertiu-me para os excessos da vaidade, ao que repliquei entusiasmada:

— Hoje estou de férias!

Fomos até ao entreposto comercial num speeder conduzido por Iko, um velho veículo modelo X-34 que conseguira em troca de poucos créditos e que tinha vindo a arranjar com peças que ganhava à custa do jogo. Uma maneira de se distrair, contou. Tudo devidamente traduzido por Luke pois eu não entendia nada dos seus rugidos.

As coisas estavam mais calmas, acrescentou Iko quando Luke lhe perguntou por um ponto de situação. Julgava que se comunicavam regularmente, mas percebi que não o faziam há um certo tempo. O meu mestre estivera absorvido comigo, compreendi, e sem tempo para outras coisas. Já não existiam naves inimigas em Luyta, revelou o monstro. Kram, ao que parecia, tinha desistido de nos encontrar naquele sistema. Por um lado, deixava-nos mais aliviados sem uma ameaça permanente a pender sobre nós. Por outro, ficávamos sem perceber o que andava a tramar, ao colocar-se longe do nosso alcance.

Iko não nos acompanhou na nave. Despediu-se no hangar e regressou às reparações no speeder. Apenas pediu que lhe trouxéssemos khortshiga, uma iguaria composta por carne condimentada, que pagaria as viagens de e para o abrigo. Não seria necessário qualquer pagamento, obviamente, mas Luke assegurou-lhe de que não se esqueceria do presente.

A viagem não foi demorada e cedo alcançámos um espaçoporto buliçoso na primeira lua de Luyta. Eu estava maravilhada, nunca tinha visto tanta gente, tantas criaturas e tantos androides juntos, com um aspeto menos sujo, duvidoso, maltrapilho e truculento do que vira em Mos Eisley, onde encontrara uma azáfama similar. Tinha tudo um aspeto educado, asseado, próspero, harmonioso. Cheio de cor.

Entrámos num veículo coletivo que se deslocava sobre carris magnéticos, com uma cúpula transparente que permitia apreciar a viagem que se fazia a grande velocidade entre as diversas paragens, onde apanhava e deixava passageiros. Tinha um total de vinte lugares que estavam todos ocupados. Sentávamo-nos em bancos confortáveis e eu colava o nariz ao vidro.

A cidade era imponente. Grandes edifícios de uma alvura rutilante, janelas imensas, estradas desniveladas, painéis luminosos com informações e anúncios, música vibrando, naves cruzando os céus azul-turquesa. Movimento e vida como nunca tinha presenciado. Estava extasiada com aquela surpresa.

Perguntei-lhe:

— Esta distração não vai prejudicar os meus treinos, mestre?

— Não, Cleo. Estou muito agradado com os teus progressos.

Era curioso porque me começara a tratar novamente pelo nome. Ali seríamos amigos e não teríamos a distância peculiar que existia entre um professor e uma aluna, que se sobrepunha a qualquer outra ligação mais estreita.

O que nos podia denunciar seria as nossas capas castanhas, mas as vestimentas dos restantes passageiros eram tão ecléticas que passávamos, convenientemente, despercebidos. Não atraímos mais atenções do que a mulher que ostentava um toucado enfeitado de pérolas e rendas que seguia nos assentos da frente.

Luke acrescentou:

— O treino de um Jedi, na Antiga República, costumava ser moroso e muito detalhado. Durava anos. O meu treino junto ao mestre Yoda não demorou assim tanto e não creio que precise de te ensinar durante muito tempo.

— Mas completaste o teu treino… de uma maneira invulgar.

— Sim, ao enfrentar Darth Vader na Cidade das Nuvens. – Acariciou a mão direita enluvada. – Infelizmente, seguirás o mesmo caminho que eu.

— Vou completar o meu treino ao enfrentar-me a Kram.

O rosto de Luke contraiu-se.

— No mesmo sítio? Na Cidade das Nuvens?

— As imagens do futuro são incertas – esclareceu-me, constrangido.

— Vês-me a lutar contra Kram na Cidade das Nuvens – afirmei, esforçando-me por não dar à frase a entoação de uma interrogação, que não teria uma resposta inequívoca.

— Não tenho a certeza. O lado negro, manipulado por Kram, perturba as minhas visões. – Apontou para o vidro. – Olha, seguimos para as montanhas.

Estava de férias, resolvi não insistir naquela questão. Era também evidente que ele não queria aprofundar os seus pressentimentos para não me alarmar ou condicionar o meu treino, dali por diante. Não me importei de saber que possivelmente completaria os meus ensinamentos lutando contra Kram. De qualquer modo, desejava-o. Para mostrar ao meu criador o quanto se enganara comigo.

O transportador levou-nos para uma zona menos urbanizada, dominada por uma serra verdejante. Descemos numa paragem que dava acesso ao portão de um parque, onde entrámos. Eu estava maravilhada com o espetáculo natural que se abria diante de mim, dos meus olhos brilhantes, dos meus passos ansiosos que percorriam a vereda calcetada. Um verdadeiro jardim, plantado por alguém habilidoso nas artes ornamentais com plantas e flores, enfeitava as encostas luxuriantes dos montes que se erguiam atapetados do verde mais esplendoroso que alguma vez tinha visto. Nos cumes cortados saíam colunas de fumo branco e Luke explicou-me que eram vulcões. No vale existia um sistema de lagoas de águas cristalinas, igualmente verdes, bordejadas por canteiros floridos de cores intensas, vermelhos, brancos e amarelos.

Luke comprou um lanche numa das barracas situadas à entrada do parque e dirigimo-nos para o vale. Eu não conseguia fechar a boca, espantada com o que via, saltitando, correndo, detendo-me para apreciar a beleza de uma paisagem que eu consideraria irreal, se ma apresentassem numa visão no lago do mestre Eilin. Pisquei os olhos várias vezes para me certificar de que não estava a sonhar. Nada se comparava à plácida disposição de todos os elementos que compunham o parque. As montanhas imponentes, os vulcões fumegantes, as árvores e as plantas exóticas, as flores deslumbrantes, as lagoas transparentes.

Escolhemos um lugar, uma nesga de terreno relvado delimitado por árvores frondosas, junto a uma das lagoas, onde estendemos as nossas capas à laia de cobertor. O sol derramava os seus raios dourados sobre o parque, fazendo os seus contornos brilhar em fulgores brancos. Coloquei a mão em pala sobre a testa, circunvagando o olhar mais uma vez por toda aquela perfeição inimitável. Descobri famílias a brincar na água, pais a chapinhar com os filhos. Casais a namorar em recantos ensombrados, trocando carinhos. Passeantes que conversavam e riam-se. Estava calor e despi a jaqueta. Os meus braços despidos receberam o beijo daquele sol benfazejo.

— Pode-se mergulhar na lagoa?

— Sim, é permitido. Não temas pela qualidade da água, é bastante quente, por causa dos vulcões em atividade que rodeiam o vale.

— Estás a falar a sério?

Luke tinha arregaçado as mangas da sua túnica e assentava os punhos na cintura. Disse-me que sim com a cabeça. Eu tirei as botas, enrolei as calças.

— Sabes nadar? – perguntou-me.

— Não sei.

Mergulhei. Milhões de bolhas envolveram-me, fazendo-me cócegas. Sorri debaixo da água esverdeada, soltando mais bolhas. A temperatura era deliciosa, quente sem ser escaldante. Parecia um abraço molhado e muito confortável. O gás subia das fissuras que existiam no fundo rochoso e despido. Nadei até lá, brincando com as bolhas, dividindo-as, espremendo-as, rindo-me mais.

Quando precisei de respirar, subi à tona. Espirrei um repuxo de água pela boca, acenei a Luke Skywalker que observava as minhas explorações aquáticas com alguma apreensão, mas assim que compreendeu que eu sabia nadar, aligeirou a tensão e sentou-se sobre a sua capa. Ficou a ver-me daí, braço sobre um joelho fletido, sorrindo brandamente. Pelos vistos, não queria molhar-se.

Nadei na lagoa até me cansar. De costas, de bruços, rodopiando sobre mim mesma. Tornei a mergulhar para brincar com as bolhas, espirrava mais água pela boca quando subia à superfície. Nunca me tinha sentido tão feliz.

Estendi-me na minha capa para me secar.

Luke preparou duas malgas de chá de fygre e estendeu-me uma. Sentei-me, aceitei a malga, murmurei um agradecimento, bebi um gole e estremeci com a bebida gelada. Voltei o rosto para o sol, onde centenas de pequenas gotas quentes escorriam pela minha pele. Aceitei um pequeno bolo recheado. Numa caixa havia pedaços redondos de vegetais torrados que complementariam o lanche. Apesar de não ter muita fome, tornei a agradecer e meti um dos pedaços na boca que estalou ruidosamente quando o trinquei.

— Não vais experimentar a água? – perguntei, a mastigar o bolo.

— A lagoa é toda tua.

— E tu… sabes nadar?

— Sei, claro que sei – respondeu-me, divertido com a minha pergunta.

— Como sabias que na primeira lua de Luyta existia este paraíso?

— Tenho viajado pela galáxia e já tinha ouvido falar do sistema de Luyta como um lugar interessante, que nunca se envolveu demasiado no conflito entre o Império e a Rebelião por ter adotado uma atitude neutral quando os diferendos políticos estavam no auge e a guerra civil alastrava. Obedeceu sempre ao seu senhor, quer este tivesse sido o Senado da Antiga República ou o Imperador Palpatine.

— Indecisão ou cobardia?

— Inteligência, diria. Alguma sensatez entre um pouco de indecisão, mais um tanto de cobardia. Luyta teve os seus rebeldes, os seus oficiais imperiais obedientes e, nos entretantos, continuou a desenvolver o seu modo de vida próspero e pacífico. Não os podemos censurar por desejarem preservar os seus tesouros.

— Este jardim é realmente um tesouro – concordei admirando o cenário idílico que me rodeava e que me deixava tão descontraída, longe de qualquer preocupação, mentira ou amargura.

Calou-se, imitando-me na atitude contemplativa.

— As tuas viagens já terminaram?

— Por enquanto, sim. Estou contigo… Treino-te e é o que devo fazer, neste momento, ante a ameaça que pende sobre a galáxia. Depois, retomo as minhas buscas, a coleção de sabedoria que terei de fazer para ressuscitar a Ordem dos Jedi. Existe uma Nova República, é lógico que voltem a existir os seus mais fiéis guardiães.

— Então, as tuas viagens nunca vão terminar.

— Espero que não! – exclamou sorrindo. – Adoro viajar. Adoro pilotar, acima de tudo.

— A tua nave Tydirium ficou com Kram – recordei-me com pena.

— Conto recuperá-la quando tudo terminar. Mas também tenho um X-Wing, que me foi atribuído no fim da guerra. Não permite o transporte de passageiros, sou só eu e Artoo. As minhas viagens têm acontecido, na maioria das vezes, no meu X-Wing. Torna a experiência… mais pessoal.

— Fazias uma dessas viagens, antes de me teres encontrado…

— Correto. – Pausou por um instante, antes de retomar o discurso. Seria outra das suas experiências pessoais e apressei-me a engolir o bolo que tinha na boca para escutá-lo com toda a minha atenção. – Resolvi visitar o sítio onde os meus pais tinham nascido e crescido. Primeiro, estive em Naboo, onde a minha mãe Padmé Amidala foi rainha e depois escolhida como senadora para representar esse sistema. Foi irónico descobrir que Palpatine também era oriundo de Naboo… A sensibilidade, a caridade e a compaixão que fazem parte da minha personalidade vêm dela. Têm boas recordações da senadora em Naboo, fiquei contente por ainda saberem quem foi, passados todos estes anos… Nunca me identifiquei como seu descendente, por isso nunca influenciei o que me contaram. É tentador bajular-se os nossos ouvintes com maravilhas sobre o que desejam escutar! Agora, a intrepidez, a insensatez e a ambição devo-as ao meu pai, Anakin Skywalker, que nasceu em Tatooine. Depois de Naboo segui para o planeta deserto onde cresci e passei grande parte da minha vida. Ao contrário do que sucedia com a minha mãe, ninguém se recordava do meu pai que, ao que consegui apurar, era um escravo e gostava de corridas.

— Ficaste desiludido?

— Não. A história do meu pai é obscura, Ben Kenobi nunca me quis adiantar muito sobre esta, pelos vistos o meu tio, com quem cresci, também nunca quis que eu soubesse a verdade completa. A desilusão só acontece quando ambicionamos demasiado. Encontrei o que precisava de encontrar e o que me estava destinado a descobrir.

— Em Tatooine… estava eu – ousei dizer.

Olhou-me com intensidade.

— Fazes parte do mesmo desígnio que me compeliu a realizar essa viagem de descobertas pelo passado. Quando fui para Tatooine, não estava predestinado descobrir mais sobre o meu pai. Sempre soube que me aguardava um encontro… especial.

— As tuas visões do futuro. O que vias, concretamente? O meu corpo inanimado no desfiladeiro de Vitra?

— Não. Um combate de sabres de luz.

Desviei o olhar, apertei as mãos. Reparei na malga de chá de fygre e bebi-o para refrescar a garganta que tinha secado, serenar o estômago que se contraíra.

— Isso… fez sentido para ti? – indaguei, fingindo mera curiosidade.

— O combate? Não… De certo modo queria descobrir o que se escondia por detrás dessa visão e apressei-me a chegar a Tatooine. Então, encontrei-te, cheguei a Kram e, agora, esse presságio já me parece plausível.

— Uma antevisão do teu confronto com Kram.

— Julgo que sim. – Levou a sua malga aos lábios.

— Sim, será isso…

Estendi-me na capa. Adorava aquela tepidez na pele, a calma envolvente, os perfumes e as cores intensas, profundamente vivas, daquele recanto do parque que tínhamos feito nosso, à beira da lagoa. Embora a conversa com Luke Skywalker tivesse trazido as nossas inquietações para aquela tarde prazenteira, empurrei-as resoluta para desfrutar do que restava daquele meu dia de férias. De pronto esqueci tudo e entrei num transe delicioso, em que nada mais existia a não ser eu sem nada dentro. Uma criatura vazia que se limitava a sentir, sem pensar, congeminar, recordar ou importar-se de ser mais do que alguém deitado na relva.

Luke debruçou-se sobre mim.

A proximidade revelou as suas pequenas imperfeições. As rugas junto aos olhos e em redor da boca, as sardas e outros sinais nas faces coradas, os pelos curtos da barba, os fios brancos no cabelo aloirado. Não as tinha notado quando nos beijámos, porque nessa altura tinha cerrado os olhos, entontecida com o que me estava a acontecer.

Estendeu a mão enluvada sobre o meu rosto.

Oh, queria ler a minha mente! Não a simples leitura que ocasionalmente realizava, mas uma prospeção mais profunda, em busca dos meus segredos. Não… Não era isso. Não devia ser tão cínica em relação às suas atitudes para comigo. Ele não me queria mal, pelo contrário. Queria genuinamente ajudar-me, mas eu confundia-o, distraí-o, obrigava-o a extremos inéditos. Com a sua mão direita sobre o meu rosto queria repescar-me as memórias que julgava perdidas.

Não queria que pensasse que me tinha apanhado de surpresa. Eu já sabia tudo o que precisava de saber sobre mim e que ele não podia descobrir. Tinha de lhe dar qualquer coisa, todavia. E sabia o que lhe queria oferecer, como se precisasse de pagar-lhe aquele dia maravilhoso.

Então, deixei-o ver as minhas memórias da guerra nas estrelas.

As imagens passaram em sucessão rápida. Rostos para começar. Dele, de Leia, de Han, de Chewbacca, de Darth Vader, androides, criaturas, amigos, família, aliados, inimigos. Lugares a seguir. Planetas e luas, areia, gelo, floresta, salas escuras, carlingas iluminadas. Sensações. Disparos laser, fugas, ferimentos, gritos, paixão, arrebatamento, desespero, felicidade. Por fim, cenas curtas. Em Mos Eisley, ele e Kenobi negociavam com Han Solo e Chewbacca. Todos metidos numa conduta de lixo. O assalto à Estrela da Morte. A condecoração em Yavin. Na caverna do wampa. Os nevoeiros de Dagobah. A fuga da Millenium Falcon entre asteroides. A Cidade das Nuvens e a terrível verdade. A corte de Jabba, o Hutt. A missão em Endor. A ira do Imperador. O triunfo dos rebeldes… O triunfo da Força.

O triunfo dele! A magia… O deslumbramento.

Sentia na minha testa a mesma pressão, a queimadura, da pedra negra do feiticeiro de Ekatha. Doía-me, mas eu gostava dessa dor.

Ele retirou a mão, recuou.

No início, a estupefação. A seguir, a repulsa e a incredulidade. Percebeu que eu não seria tão inocente, tresmalhada e pura como julgara. Que eu sempre fora uma distorção, uma anomalia, como Leia apontara quando nos conhecemos. Que eu tinha um passado ao qual ele nunca chegaria, mesmo que tentasse com toda a sua bonomia e paciência. Que falharia sempre que se predispusesse a recuperar-me as ditas memórias perdidas. Não podia insistir nesse caminho de duvidoso fim.

— Como sabes… de tudo isso?

— Deram-me estas memórias.

— Com que objetivo?

— Para ajudar-te.

Pela primeira vez, não mentira sobre mim. Curiosamente, sentia-me mais fingida do que quando o enganara com as minhas pequenas falsidades.

Luke aceitou a minha resposta e recolheu-se em meditação.

Levantei-me e dei outro mergulho na lagoa. Mantive-me submersa, entre as bolhas, refugiada naquele reino silencioso onde não me era exigido ser verdadeira ou poderosa, onde não era fundamental que superasse os meus limites e dificuldades, onde tudo era mais fácil, límpido, direto. Onde não tinha de fazer escolhas.

Quando voltei a estender-me na capa, conseguia sorrir.

Antes de sairmos do parque, Luke comprou um pacote com khortshiga para Iko. Teci um comentário enjoado sobre o cheiro forte da carne, ele riu-se e concordou comigo.

Tive pena de deixar a primeira lua de Luyta, mas sabia perfeitamente que não podia viver para sempre naquela fantasia colorida e quente, onde, a longo prazo, haveria de me deprimir por não encontrar propósito numa vida de futilidades e de mergulhos em lagoas cheias de bolhas.

Fora feliz e tinha sido muito bom descobrir que podia sê-lo.

Quando a nossa nave descolava, deixei um beijo na face do meu mestre.

— Obrigada.


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Notas finais do capítulo

Muitas dádivas neste capítulo. Luke Skywalker ofereceu um dia de férias, a Cleo ofereceu as suas memórias extraordinárias da guerra nas estrelas. No global foi um dia bom, que serviu para descontrair, conversar e ser feliz. Os Jedi também precisam de serem eles próprios de vez em quando, debaixo das capas pesadas das suas responsabilidades.

Próximo capítulo:
Os instintos básicos.