A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 35
As muitas cores do mundo


Notas iniciais do capítulo

"Eu devia ter ficado feliz, mas tinha a sensação de que havia espíritos malignos presentes e tive medo de que acontecesse alguma coisa que o impedisse de voltar."
in O Historiador, Kostova, E., Gótica, 2005



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A flor era vermelha, com cinco pétalas carnudas sarapintadas nas partes interiores por manchas brancas. No centro, onde se unia a corola, saía um tufo de filamentos, também brancos, que se agitavam como se farejassem o ar. Espetava-se numa longa folha que flutuava no rio, a alguma distância da margem, e fazia parte de uma pequena flotilha de folhas que se deslocavam pela correnteza, carregando cada uma, nos estranhos conveses verdes, uma flor vermelha.

Logo que me deparei com aquele espetáculo corri para o rio a vê-lo. Era a primeira vez que via flores e cores vibrantes, como aquele encarnado sangue que se destacava na paisagem amarelada da lua desabitada. Passavam mansamente descendo o curso de água, muitas flores, cada uma com a sua folha a servir-lhe de flutuador. Nem conseguia imaginar que fenómeno natural estaria por detrás daquela viagem rumo, possivelmente, a um mar revolto que as engoliria para sempre, sepultando em tumba marinha aquela beleza viva. Ajoelhei-me entre os arbustos esféricos e estiquei o braço para alcançar uma das folhas, puxá-la e ficar com um exemplar daquela magnífica flor.

Apesar dos meus esforços, os meus dedos nem chegavam a roçar os limites arrebitados da folha. Também não estava a apetecer-me molhar, pois para além de ter descoberto, naquela manhã, que a água do rio era mortalmente gelada, a sua profundidade era considerável, pois atirara uma das pedras com que desenvolvia os meus exercícios e esta imergira sem que me tivesse apercebido de que tocara o fundo. Experimentara com outras pedras e todas elas se perderam no abismo fluvial. E nem sabia se não existiriam animais a nadar por ali que atacariam à mais mínima perturbação do seu reino aquático. Por isso, teria mesmo de alcançar a flor com a mão.

Quando a flor que marcara inicialmente passou, volvi a minha atenção para a que vinha imediatamente a seguir. A montante do rio ainda vinham muitas e tinha por onde escolher se falhasse a captura da segunda flor. A procissão vermelha parecia não ter fim. Ajoelhava-me na margem, tentando não me molhar, de braço esticado. Os meus dedos tocaram na folha que abanou ligeiramente, mas não o suficiente para desviar a sua rota para a margem. Ao invés, ainda se afastou mais.

Terceira flor. Rangi os dentes. Haveria de apanhar uma, nem que esquecesse as minhas cautelas iniciais e me atirasse ao rio, mesmo com a água fria, a fundura inquietante e os animais desconhecidos.

Um raio de sol, quente e dourado, bateu-me no rosto. O dia findava, o quarto dia de treinos. Como os anteriores, fora ocupado com o mesmo exercício de levitação de pedras. Luke considerava que eu ainda não dominava satisfatoriamente a técnica, que eu precisava de concentrar-me mais e de identificar a Força na paisagem que me rodeava sem hesitação ou receio. Obrigava-me a repetir o exercício até que eu o fizesse não por instinto, mas por habilidade. No início ficara frustrada com a escassez de progressos, tanto meus, como das lições do meu mestre que me pareciam tão fúteis e simplórias. Como poderia eu enfrentar-me a Kram, utilizar um sabre de luz, se passava horas a brincar com pedrinhas?

Num ato de rebeldia, quando Luke se afastava, limitava-me a jogar com as pedras, fazendo-as rebolar e chocar umas com as outras, atirando-as ao rio. Depois, como via que isso não o atraía até mim, que não o fazia indignar ao ponto de se zangar com a minha indolência, praticava o exercício.

Naquele quarto dia não aconteceram grandes descobertas, mas a repetição exaustiva do ato de identificar a pedra e erguê-la no ar até pousá-la na palma da minha mão ajudara a consolidar a minha aprendizagem. A minha propensão involuntária para manobrar a Força dava lugar, paulatinamente, como a passagem mansa e segura das flores vermelhas pelo rio, ao conhecimento efetivo de que sabia utilizar a Força.

A terceira flor passou pelos meus dedos que conseguiram roçar uma das suas pétalas. Estiquei o braço com mais ânsia, a sentir a irritação a crescer dentro de mim. Identifiquei o alvo seguinte, uma planta que descrevia uma curva suave na superfície da água e que iria, de certeza, passar mais próximo da minha mão. Pura ilusão. Outra que se me escapou. Mas quanto mais parecia impossível, mais eu queria uma flor daquelas para mim.

Quinta tentativa.

— O que estás a fazer?

Sobressaltei-me.

Luke sentava-se numa rocha atrás de mim, a observar-me interessado. Preparei-me para escutar uma reprimenda por ter interrompido o exercício, mas ele limitava-se a olhar-me com uma expressão interrogativa.

Pois, fizera-me uma pergunta.

— Estou a tentar apanhar uma flor.

— Para quê?

Crispei a testa. Soava-me a um teste. Devia ter cuidado com o que lhe respondia, podia implicar ficar para sempre de castigo, condenada a repetir o mesmo exercício de levitar pedras até que me redimisse. E entretanto, Kram conquistava a galáxia…

— Acho que é bonita. Nunca tinha visto uma flor…

— Não?

— Estive em Tatooine e em Luyta, dois planetas especialmente monótonos – expliquei enfadada. – Um deles era um deserto sem fim, o outro cobria-se com uma floresta noturna. Onde querias tu que tivesse visto flores?

— No teu planeta natal.

— Não me lembro.

— E contudo, sabes o que é uma flor.

— Sei o que são muitas coisas, sem as ter visto antes.

— Tens razão. Estou a ser demasiado exigente.

Sentei-me em cima das pernas, voltando-me para o rio.

— Estou aqui para aprender os caminhos da Força e tornar-me num Jedi. Não para recuperar as minhas memórias. – Acabei de o dizer e mordi a língua. Fora insolente.

Luke não deu mostras de ter ficado zangado. Aliás, escudava-se numa serenidade que, se eu estivesse na disposição de explorar, perceberia como artificial e tentaria desmascará-lo. Mas não devia ser duas vezes insolente com o meu mestre, no mesmo dia.

— As flores estão demasiado longe. Podes tentar, mas nunca as vais alcançar dessa maneira.

— Não vou desistir. Quero uma flor! – insisti.

— Se as arrancares, elas morrem.

— Se as arrancar da folha onde flutuam?

— Correto. As flores e a folha fazem parte da mesma planta que recebe os seus nutrientes da água do rio. Se as separares, cortas o fio vital que as une e que as mantém vivas. Morrerão, a flor e a folha.

Espreitei-o com um sorriso travesso.

— Isso é para que eu desista de apanhar a flor?

— Não, padawan. É para que penses no que estás a querer fazer.

Digeri aquelas palavras, tentando absorver-lhes o significado que ia muito mais além do que um aviso inofensivo. Desisti de encontrar sozinha a solução. Voltei-me para ele, cruzei os braços.

— O que queres dizer? – indaguei confusa. – Só quero apanhar uma flor. Uma, de entre todas aquelas dezenas que descem o rio. Irei prejudicar o equilíbrio ecológico da lua, ou coisa parecida?

Respirou fundo e começou a explicar:

— As plantas são seres vivos que emitem energia, que se unem a todas as criaturas do Universo, incluindo tu e eu, através da Força.

— Se eu arrancar uma flor… causo uma perturbação na Força?

— Correto.

— E isso vai afetar-nos? Então, todas as mortes afetam um Jedi? Mas tu matas…

— Creio que já compreendeste que não gosto de matar.

— Fazes para te defenderes… Para me defender. Matas por causa de mim?

— Cabe-me a mim fazer os julgamentos dos meus próprios atos e aceitar as razões que os justificam. Não preciso que tomes as minhas penas. Regressemos ao nosso presente. Queres uma flor. Para isso vais ter de a separar da vida. Sabes que ao arrancá-la, para teu prazer, vais privá-la da beleza que tanto te encantou?

— Queres dizer que vai murchar? Mas até isso acontecer, será minha.

— O egoísmo e a vaidade não são qualidades louváveis num Jedi.

— Oh, isto é uma lição! – exclamei com ironia.

— Estás aqui para aprender comigo.

— Só quero uma flor…

— Vais fazer uma escolha, a partir do momento em que te elucidei sobre as consequências do teu desejo.

— E esperas que eu faça… a escolha acertada.

— Sempre.

Olhei para o rio.

— Como poderei fazê-lo? Colher a flor, digo…

— Usa a Força.

Olhei-o espantada. O que me dizia era incongruente com o que me acabava de explicar. Um remoinho de contradições rodopiava no meu cérebro. Hesitei entre a satisfação do meu capricho e considerar o que Luke me ensinara. Se aplacasse o meu impulso, haveria de me arrepender e colher outra flor, mais tarde, em segredo, como uma espécie de vingança pueril porque ele não me tinha deixado fazê-lo quando mais me apetecia. Se desistisse do meu prémio, Luke ficaria aborrecido por achar que eu não estava a ser sincera.

Era um teste, seguramente. Desde o início que me experimentava.

Não devia ter medo de ser testada, todavia. Bastava agir segundo o que julgava o mais correto e sairia tudo bem. Fazer as minhas escolhas e justificá-las com argumentos válidos que explicariam a minha posição era preferível a enveredar por trilhos traçados por escolhas alheias.

Ajoelhei-me na margem e fechei os olhos. Não seria necessário, mas era um expediente que me ajudava à concentração. Estendi a mão e aguardei que a imagem de uma flor vermelha surgisse na minha mente. Aos poucos, fui sentindo a presença das diversas plantas que se moviam sobre o rio, a energia que as separava de mim, que as rodeava. Utilizei essa energia e puxei uma folha verde para terra.

Ao abrir as pálpebras, descobri uma planta encalhada num dos arbustos que ornavam as margens, balançando ao sabor da suave ondulação do rio. Sorri. Fora fácil. Inclinei-me e colhi a flor. Os filamentos centrais ficaram, de repente, estáticos e hirtos. 

— Devias fazê-lo por convicção, não para me afrontares – disse-me Luke.

Levantei-me, sacudi a terra das calças.

— Disse-te que queria uma flor. Não te estou a afrontar, mestre. É apenas… a minha escolha. Não me importo de causar esta perturbação na Força, servirá como exemplo. Assim, no futuro, poderei reconhecer outras perturbações na Força que sejam mais importantes do que a morte desta flor.

Na realidade, não sentira nada de extraordinário ou, melhor dizendo, não sentira absolutamente nada de trágico. A morte da flor não me causara pena, mas sim uma descarga de adrenalina por ter conseguido impor a minha vontade. Prendi o caule atrás da orelha e a flor ficou a espreitar por entre os cabelos. Luke mirava-me com uma expressão estranha, mistura de ansiedade e de admiração. Indaguei, percebendo que me escapara um pormenor:

— Não é venenosa, pois não?

— Não, é perfeitamente inofensiva.

— Tens a certeza?

— Absoluta.

O céu tingia-se de vermelhos e de amarelos intensos à medida que o sol baixava no horizonte, as flores continuavam a bailar no rio, havia um silêncio morno por toda a parte carregado pela brisa delicada do fim do dia. O reflexo do entardecer conferia a Luke Skywalker um resplendor doce e melancólico.

— Estás triste…

— Não te interesses demasiado por mim – pediu num tom tão gelado como a água do rio.

— Porquê? – indignei-me.

— Os nossos destinos não se cruzam.

— Fomos feitos para nos encontrarmos, Luke Sky… – Emendei bruscamente: – mestre!

— Concordo. Mas o futuro é inequívoco.

— O futuro é um tempo que será construído por nós. Faremos deste o que desejarmos, depois de termos eliminado a ameaça de Kram.

Ele negou com a cabeça e disse:

— Agora ainda não está ao teu alcance, mas quando estiveres mais treinada na Força conseguirás ver o futuro. No início, será apenas uma sensação fugidia, imagens dispersas. Depois, quando te tornares num Jedi, conseguirás controlar melhor essas sensações e farás a interpretação das imagens que se apresentarem na tua mente.

— Não acredito em ti – protestei. – Como podes estar tão seguro de que aquilo que vês será o nosso futuro?

— Não existe um futuro… nosso.

— Como podes ter tantas certezas? O mestre Yoda disse-te que sempre em movimento está o futuro. Sempre em movimento!

Fitou-me desorientado. Eu percebi o meu erro e fechei a boca numa linha inquebrável, para impedir que mais dislates se escapassem. Tinha-me enredado numa teia de desejos, a começar na flor vermelha e a terminar… em quê, realmente? Eu não o desejava, não… Havia aqui alguma manipulação que me estava a confundir, a irritá-lo, a pressionar os nossos limites. Um jogo que o mestre Eilin comandava e visionava no lago límpido.

Escalei a margem, mas o meu pé resvalou. Agitei os braços para me equilibrar, mas era quase certo o mergulho no rio que tanto evitara. Gritei. Luke saltou da rocha, apanhou-me, puxou-me para terreno mais seguro e menos escorregadio.

As mãos dele agarravam-me firmemente pelas ancas.

Entreolhámo-nos.

— Podes soltar-me – pedi, a tremer.

Em vez disso, puxou-me para si, colando os nossos corpos.

A respiração dele estava perto da minha, roçou a ponta do nariz no meu. Fechou os olhos e imitei-o. Não queria ver mais, só queria sentir. Estava quente e elétrica como se febril, uma doença deliciosa que me deixava excitada e vulnerável.

Pousou os seus lábios nos meus. 

As mãos no meu quadril apertavam com tanta força que parecia que tinha medo que eu fugisse. Mas eu não iria fugir, como podia quando estava a adorar o que ele me estava a fazer? Era a primeira vez que alguém me beijava…

O momento era doloroso e envolvente. Mas também terrivelmente embaraçoso e eu não sabia muito bem o que fazer, por isso deixava-me estar quieta, a receber os beijos meigos, os arquejos aflitos, sem abraçá-lo, pois temia que o meu toque o afastasse e o fizesse parar com aquilo. Queria aquele momento eterno, eu e ele, sem preocupações sobre o passado e o futuro. O que fosse para além desse abandono inebriante seria supérfluo. 

O meu corpo tremia. Gemi quando senti a língua dele enrolar-se na minha. Estava pronta a desligar o interruptor da sensatez quando ele me empurrou, separando-nos daquele inusitado contacto. Soltou-me, por fim, as ancas.

Colocou as mãos atrás das costas. Um fio de suor desceu-lhe pela face, onde uma barba ligeira despontava.

Após o deslumbre, veio a sensação estúpida da rejeição.

— Não me digas que estás arrependido e que me pedes desculpa.

Olhou-me sem qualquer emoção.

— Não estou arrependido – respondeu-me.

Afastou-se, embrenhando-se entre as árvores, tornando-se num vulto longínquo e solitário recortado no bosque. Não fora para o abrigo, fora para outro sítio qualquer. Meditar naquilo que tinha feito, naquilo que insinuara. Pensar nele e em mim, na nossa ligação, na nossa mais que evidente relação que extravasava o que nos obrigava enquanto mestre e aluna.

Eu estava a pensar nas mesmas coisas.

O que raio tinha falhado ali?

Num minuto estava colada a ele, a saborear a paixão em beijos enlouquecidos. No seguinte, ele fugia de mim como se o estivesse a contaminar com uma maldade desconhecida da sua sensibilidade e que o levaria à condenação.

Teria sido culpa minha?

Senti comichão junto à orelha e arranquei a flor. Coloria-se de um violeta doentio, como que asfixiada. Murchara mais rapidamente do que estava à espera. Seria normal ou fora atingida pelos sentimentos proibidos que tinha trocado com o cavaleiro Jedi? Deixei-a cair junto às botas. De uma coisa tinha a certeza. Beijar Luke Skywalker não tinha valido o sacrifício da primeira coisa verdadeiramente bela que encontrara naquela galáxia de planetas monótonos.

Queria muito reagir ao que tinha acontecido. Irritar-me, indignar-me e gritar, encontrar os piores insultos e despejá-los no colo de Luke Skywalker. Mostrar-lhe que eu não era um brinquedo. Aliás, não era o brinquedo de ninguém!

No entanto, não devia exagerar o que era esquecível, para bem da continuação dos meus treinos. Fora um pequeno percalço que não era digno de perturbar o que estávamos a fazer na terceira lua de Luyta. Era nisso que teria de me concentrar. Estava ali para tornar-me num Jedi e derrotar O’Sen Kram. Era essa a minha missão.

Tudo o resto era acessório. Obstáculos que devia superar.

Escolhas que inevitavelmente teria de fazer.

E escolhia ser poderosa.


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Notas finais do capítulo

Todas as lições são importantes num treino Jedi, todos os momentos acrescem à sabedoria do aprendiz e também do mestre. Acontece que algumas situações fogem ao controlo, inesperadamente...

Próximo capítulo:
Concentração.