A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 33
O mestre


Notas iniciais do capítulo

"Nele, a coragem não era um sentimento mas simplesmente um instrumento útil e sempre à mão para ocasiões de perigo mortal."
in Moby Dick, Melville, H., Publicações Europa-América, 2002



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Rever a clareira iluminada causou-me uma emoção maior do que aquela que estava à espera, ou que consideraria aceitável. O alívio foi tão grande que estremeci e temi que cedesse aos meus joelhos que ainda não tinham recuperado a firmeza depois do infeliz recontro com o orgulhoso oficial do Império e os seus cinco soldados. Ao aproximar-me da pequena casa radiante atrás do cavaleiro Jedi, olhei para todos os lados. Iko não estava lá.

Junto à porta entreaberta, Luke disse-me:

— Irei falar com o mestre Eilin primeiro. Espera aqui por mim.

— Compreendo. Ele chamou por ti, afinal.

— Descansa, por favor. Não estás com bom aspeto.

Entrou na casa.

Sentei-me e encostei-me às paredes rugosas que, surpreendentemente, não eram ásperas, mas macias como borracha. Esfreguei a coluna nas irregularidades numa espécie de massagem e senti-me bastante melhor, menos tensa, mais relaxada, malgrado a sede que me secava a boca e a garganta. Acariciei o pescoço, apalpei a cara junto ao olho esquerdo e ao lábio. Estavam doridos e palpitantes. Estaria seguramente com um aspeto péssimo. Não que me importava de perder a minha beleza banal, mas incomodava-me que estivesse sempre com um ar tão desamparado junto a Luke Skywalker, até tornar numa obrigação que ele cuidasse de mim e me protegesse. Outro dos sortilégios derivados da intervenção do feiticeiro de Ekatha.

Repensei o momento com os soldados. Estivera à mercê daquele capitão enraivecido, frustrado com algum detalhe relacionado com a inevitável comparação entre o Império e a organização de Kram, aborrecido porque estaria cheio de frio e desconfortável. Teoricamente seria mais poderosa do que Luke Skywalker, mas não conseguia perceber como todo esse poder se revelaria para vir em meu auxílio em situações extremas, como aquela vivida na floresta. Ao viajar em sonhos pelas minhas memórias iniciais, percebera o medo e o respeito de Frint, a par da sua abnegada veneração, mas não conseguira experimentar, na primeira pessoa, a força avassaladora que possuía de molde a saber como usar-me dela com a confiança necessária para me fazer superior em qualquer aperto. Olhei para as minhas mãos e achei-as insignificantes.

Naquele dia em que contemplei o crepúsculo em Tatooine ao lado do bêbado Frint seria perfeitamente capaz de enfrentar-me a Luke Skywalker. Não tinha dúvidas, nem receios, nem outros imponderáveis que me tolhessem a investida e que me fizessem descrente na vitória. Tinha até considerado que seria demasiado fácil. Bastaria um gesto e o Jedi cairia a meus pés.

Julgava que tinha recuperado todas as memórias no meu momento de ausência, enquanto dormia na enfermaria, a bordo da Millenium Falcon, mas houvera uma que não conseguira recuperar. A lembrança do meu poder. Talvez não fosse somente uma lembrança, mas um estado de espírito que o feiticeiro de Ekatha me tivesse arrancado quando me queimara a testa com a sua pedra negra mágica.

Saquei da pistola laser DH-17 e apontei-a às árvores, segurando-a com as duas mãos. Se era um estado de espírito, uma habilidade interina, um conhecimento intrínseco poderia treinar-me para readquiri-lo, como fizera com as memórias. Não me importava se fosse penoso e desesperante, estava disposta ao sacrifício, a empenhar o corpo e a pagar qualquer preço para deixar de ser tão indefesa ante os meus inimigos. Fazê-los tremer quando me vissem, que não fosse ao contrário. Eliminá-los sem precisar de clamar por ajuda, ser independente.

Ser a arma mortífera que tinha nascido para ser.

Pousei a pistola no regaço. Não havia nada que me pudesse ameaçar vindo da floresta, nem previa que tivesse que me defender debaixo do véu azulado, santuário cedido pelo deus que conversava com o cavaleiro Jedi. Como Luke dissera à irmã, ali estaríamos em segurança. Verdade. Contemplei o firmamento estrelado. Imaginei que a Millenium Falcon tivera mais dificuldades do que nós. A Belirium permanecia no sistema, estava em alerta máximo, caças foram certamente despachados para danificar a nave intrusa que permitisse uma captura fácil, crendo que tanto eu como o Jedi também seguíamos a bordo. Naquele exercício hipotético, acreditava que a Falcon tivesse escapado. Han era um piloto experiente e cheio de recursos, a nave era veloz. Fizera a corrida de Kessel em menos de doze parsecs, convinha não esquecer. E conseguira despistar um imperial star destroyer entre um campo de asteroides… Eu lembrava-me, sorrindo.

Olhei para todos os lados, Iko continuava sem aparecer. Provavelmente fora dispensado pelo mestre Eilin, já que a sua protegida não quisera os seus serviços e fora-se embora. Senti-me incomodada com a minha própria ingratidão.

Luke Skywalker saiu. Levantei-me, sacudi a terra das calças esfarrapadas, guardei a pistola na parte de trás do cinto.

Vinha mais crispado, mais pensativo. Se fora em busca de respostas, obtivera mais perguntas, apesar de ter a certeza de que o futuro era-nos comum e isso era uma base de onde daria início à sua contenda particular contra O’Sen Kram, que me incluía. Arrepiei-me ao compreender que seria o Jedi que faria de mim, novamente, uma assassina.

— O mestre Eilin quer falar contigo, agora.

Perguntei-lhe após uma ligeira hesitação:

— Ele contou-te?

— Sim, contou-me sobre O’Sen Kram. O senhor do trono negro odeia os Jedi e tem um poder espantoso sobre a Força.

— E…?

Forçou um sorriso.

— E o mestre Eilin deseja falar-te. – Cobriu-se com o capuz e afastou-se.

Encostei a porta da pequena casa.

Fui inundada pelo verde que impregnava cada canto daquela divisão, pela paz transmitida pelo cenário bucólico e irreal que a preenchia, depois de ter conseguido habituar os olhos à claridade intensa do seu interior. Descobri o mestre Eilin na mesma posição em que o tinha visto na primeira vez que nos tínhamos encontrado, sentado atrás do lago quieto, envergando uma túnica vermelha semeada de pérolas, usando brincos prateados, a segurar uma esfera.

Havia mais um adereço, contudo. Um bule e uma malga com uma bebida rubra e fumegante, junto ao lago.

— Saudações – cumprimentou-me.

— Saudações, mestre Eilin – disse, sentando-me entre as plantas viçosas que atapetavam o soalho.

— Chá de fygre. Bebe. O nobre Jedi disse-me que gostas bastante.

Levei a malga à boca e bebi-a com sofreguidão, derramando o líquido fresco pelo queixo. Servi-me de mais, usando o bule e bebi outras três malgas cheias. Suspirei satisfeita, limpando a boca com uma mão.

— Obrigada – gaguejei. – Obrigada, mestre Eilin. Estava com tanta sede!

— O nobre Jedi também mo disse. Aliás, antes de se preocupar com a galáxia, preocupa-se contigo.

— O que queres dizer com isso? – estranhei.

Calou-se.

Arrumei a malga junto ao bule. A minha postura segura estilhaçou-se quando olhei para o mestre Eilin e apercebi-me do seu olhar crítico, da sua irritação latente que disfarçava atrás de uma expressão falsamente impassível. A esfera como que batia, aumentando e diminuindo o volume, colorindo-se e ficando imutável. Ele haveria de negar se eu o acusasse de estar zangado comigo, se eu apontasse as oscilações da esfera. Meras ilusões.

Eu tinha desobedecido às ordens de um deus e senti-me ainda mais incomodada. Essa desconsideração era imperdoável, irreparável. Inclinei a cabeça, não suportava encará-lo.

— Vais castigar-me?

— Não.

— Mereço um castigo… Não fui humilde perante as tuas indicações, mestre Eilin, mas não conseguia suportar o facto de saber o cavaleiro Jedi nas mãos de Kram.

— Porquê? Afinal, tu deverás matá-lo.

Pestanejei, intrigada com a dúbia referência. Eu deveria matar qualquer um deles, o cavaleiro Jedi e Kram. A qual se referia o ser minúsculo? Saboreava a tortura de não ser totalmente esclarecedor, percebi-lhe o deleite no lampejo que perpassou pelo espelho do lago.

— Não fui imprevisível.

— Não, minha querida. Certamente que não o foste.

— O perigo continua. E eu que sou tão fraca.

— Chamei pelo Jedi e ele veio. Existe agora uma esperança. E sabes por que razão não te vou castigar? Não será necessário… Aguardam-te duras provas, uma senda de sofrimento e de redenção. Tu vives nas trevas, serás resgatada para a luz. Mas apenas se o quiseres.

— E então serei imprevisível?

— Só te peço que sejas como… escolheres.

— Afinal, tenho uma escolha! – exclamei provocadora, endireitando o pescoço. Queria mesmo enganar os deuses da galáxia, a começar por aquele que dizia que o destino não podia ser alterado.

— Sempre tiveste escolhas e escolheste, em Tatooine, seguir o feiticeiro de Ekatha.

— Que podia eu fazer? – contestei, assumindo que ele sabia que eu já estava na posse de todas as minhas memórias, sem me importar como teria aquele deus ficado a saber. – Fui capturada inconsciente após uma cilada. Nem mesmo Frint conseguiu impedir o que aconteceu.

— Mas tu podias ter impedido.

— Como?

— Falta-te esse pedaço… Como lhe chamaste? Um estado de espírito, uma habilidade interina, um conhecimento intrínseco. Está tudo aí, embrulhado na negrura de O’Sen Kram. Apenas precisas de te desembaraçar do invólucro selado e expões toda essa maravilha à luz.

— Escutas o que penso – censurei.

— Não preciso. Sei o que pensas. Sei, sobretudo, o que és.

— Uma coisa feia e incompleta, que procura redimir-se do seu pecado original. Não sou uma criação da luz, longe disso. Estás a dizer-me que pertenço às trevas e eu acredito. Julgava que já estava purificada depois de o feiticeiro ter atuado, mas continuo… impura! – Olhei para as minhas mãos, suspirei aborrecida. – Luke sabe que sou a criatura de Kram?

— Nunca o poderá saber. Julgo que fui perentório nessa afirmação. Não revelei esse pormenor ao nobre Jedi. Tu também não o poderás, e não o deverás, fazer. Sob pretexto algum.

— É mais do que um pormenor!

— Tornará tudo mais difícil para ti, para ele. Mas não acabei de te dizer que terás uma senda de sofrimento e de redenção?

— Para que eu amadureça um pouco mais…

— Para que te enfrentes a O’Sen Kram e o destruas.

— E onde entra aí a minha imprevisibilidade?

Não me respondeu. A esfera estava sossegada e o mestre Eilin, mais calmo.

Sinceramente, não me importei com a falta de resposta. Fazia parte do meu livre arbítrio, ser ou não o que quisesse ser, conforme as variáveis que me fossem apresentadas, optar por seguir a viagem mais atribulada ou a existência menos estranha. Preferir as trevas ou a luz. Isso já constituía uma escolha. Afinal, podia muito bem já ter obtido uma vitória sobre a minha sina imutável.

— Pronto, já nos tens juntos, eu e o cavaleiro Jedi, que me deverá ensinar os caminhos da Força – observei. – E o que acha ele desse disparate?

— Não o considera um disparate, pelo contrário – replicou o mestre Eilin. – Desde que te encontrou no desfiladeiro que sabe que tu vais ser guiada por ele. Um pressentimento que se tem solidificado com os últimos acontecimentos. Ficou ligeiramente perturbado quando Han Solo, em Tatooine, apontou-te como a sua futura aprendiza, pois correspondia à verdade. Está muito preocupado também. Tem medo de falhar, de não ser capaz de enfrentar o teu imenso poder. Mas concordou comigo, percebeu como és preciosa no combate contra Kram e vai ensinar-te.

— O cavaleiro Jedi quer treinar-me – constatei, amedrontada. Se Luke Skywalker estava preocupado porque tinha medo de falhar, eu estava bastante mais, pois o temor de não corresponder às suas elevadas expetativas era esmagador. Arrepanhei as calças nos punhos fechados.

— E com ele vais começar a treinar – assegurou-me.

— Não fales como o mestre Yoda.

— Por que não?

— Não sei… É estranho. Faz-me recordar e eu não gosto de recordar.

— É importante que nunca te esqueças. É o que te vai impedir de matares Luke Skywalker.

Ia rir-me daquela observação, mas refreei-me. O mestre Eilin nunca fora irónico ou um enganador, falara sempre a verdade, apresentando-a crua e sem os artifícios que atenuassem a iniquidade das situações.

— Convenceste-o de que conseguirei servir-me da Força – apontei, alisando o tecido das calças com os dedos.

— Também o convenceste, quando o curaste a bordo da Belirium. Isto não é um jogo, Cleo. – Chamara-me pelo nome pela primeira vez e soou-me mal, como se estivesse a cuspir um veneno. – Vais aceitar o nobre Jedi como mestre e respeitá-lo, mesmo que isso te pareça abominável. Vais aceitar tudo o que ele te ordenar sem contestar, vais aceitar que ele sabe o que está a fazer, mesmo que te pareça monstruoso. O que vais aprender, principalmente, é a transformar-te e vais empenhar-te nessa metamorfose final.

— Caso contrário, Kram vence. E tu… perdes.

— Perderemos todos.

Sorri, percebendo a outra face da moeda.

— Mas eu também poderei ganhar, se voltar a unir-me a Kram.

— Perderemos todos – insistiu o mestre Eilin. – Ou julgas que ele te perdoará?

Estreitei o olhar. Testava-me.

— Não tens a certeza disso.

— Continuas a querer enfrentar-te a Luke Skywalker?

Respondi, baixando o olhar:

— Claro que não…

— Foi para isso que foste criada, lembra-te. E se esse desejo morrer em ti, através dos ensinamentos do nobre Jedi, a criatura que O’Sen Kram gerou desaparece para dar lugar a uma outra, bastante diferente, purificada das imperfeições e do pecado original que mencionaste. E que sentes dentro de ti, como um tumor, um mal físico que condiciona as tuas escolhas que desesperadamente queres fazer. Uma criatura transformada deverá enfrentar-se a Kram a ombrear o nobre Jedi! – Sublinhou com intensidade: – Transformada! E Kram não vai reconhecer-te. Portanto, não vai estar interessado em recuperar a tua lealdade.

— Mas disso, já tens a certeza.

O mestre Eilin confirmou com um ligeiro aceno de cabeça.

— Embora o lago não te tenha mostrado esse desfecho.

— Continuo a precisar da tua imprevisibilidade.

— A minha imprevisibilidade vai fazer com que aceite, incondicionalmente, os ensinamentos de Luke Skywalker?

— Vais descobrir por ti mesma quando tomares a decisão.

— Que decisão? – estranhei.

— A decisão de aceitares, incondicionalmente, os ensinamentos de Luke Skywalker.

— Saberei quando isso acontecer?

— Vais tomá-la quando saíres daqui.

Calou-se por uns instantes que me pareceram infinitos. Senti um peso na cabeça, uma tontura, a doçura de um sono morno. Despertou-me com as palavras:

— O teu tempo na minha casa terminou. Muito obrigado por me escutares.

Foi como se tivesse caído e adormecido, depois acordado com um empurrão, estremunhada e desorientada. Pestanejei para afugentar os restos de dormência.

— Eu queria… escutar-te.

A resposta fora a mesma do nosso primeiro encontro. Pronunciei-a desconfiada de que me fora imposta, a réplica educada que se devia a um deus que dispensava o seu tempo a uma simples mortal. Fiz-lhe uma vénia, dobrando o pescoço, e levantei-me.

Luke postava-se na clareira. Encostei a porta com cuidado, não a fechei. Não sabia se o devia fazer, nunca a tinha visto totalmente fechada. Significaria que o mestre Eilin recebia toda a gente ou não tinha significado algum transcendente.

Passei uma mão pelo rosto. Doeu-me o inchaço junto ao olho esquerdo, o lábio fendido. Devia estar horrível, mas pelo menos já não tinha sede. Era estranho como o mestre Eilin tinha um bule com chá de fygre, mas não me devia ocupar com essas minudências que não me diziam respeito. Tinha os meus próprios problemas e uma importante decisão a tomar.

Considerava, no entanto, que não podia fazer uma verdadeira escolha. Estava condicionada pelas circunstâncias, espalmada contra um muro imaginário e obrigada a decidir com uma arma encostada ao coração, sabendo que não podia voltar ao ponto de partida. As minhas possibilidades, ao encontrar-me encalhada no lado sombrio de Luyta, sem outros amigos que não se ligassem ao cavaleiro Jedi, sem um meio de transporte, eram tristemente escassas.

— Luke…

Voltou-se para mim, puxou o capuz para trás.

— O que o mestre Eilin te disse pertence-te e fica contigo. O nosso caminho, juntos ou separados, desenha-se a partir das suas confidências que foram diferentes para ti e para mim. Contou-me segredos que não te posso revelar e o mesmo aconteceu contigo.

— Muito bem…

Seria um excelente princípio, concordei. A clareira iluminada como etapa inicial desse percurso misterioso que dependia da minha decisão.

— Começamos aqui?

— Sim, é o que me parece – replicou Luke.

— Ele disse-te, então, que eu posso… não te acompanhar?

— Disse-me. Mas acredito que vais aceitar o que tenho para te oferecer.

Entreolhámo-nos longamente.

— A Força é muito forte na minha família – começou ele, solene –, mas em ti, como tu sabes pois tenho-te dito ao longo do tempo que temos passado juntos, a Força tem um poder muito especial. E tu tens um poder ainda mais especial sobre a Força, o mesmo que o nosso inimigo. Consegues servir-te dela, aniquilá-la, estender trevas onde existe luz, trazer a morte onde prevalece a vida. Gostaria muito que me aceitasses como o teu mestre para que treines essas tuas aptidões únicas e que, com esses ensinamentos, te tornes num Jedi.

— Num… num Jedi?! – arquejei.

— Sim, num Jedi.

— Não posso… tornar-me num Jedi – refutei. – É um absurdo! É impossível!

— Por que razão dizes que é impossível? – indagou ofendido.

— Simplesmente, porque não posso.

Seria demasiado contrário à minha natureza, àquela essência singular que jazia adormecida na minha alma. Sempre julguei que aceitá-lo como meu tutor seria para me transformar numa criatura domesticada, não para converter-me numa outra criatura. Recordei-me do mestre Eilin a exigir-me uma metamorfose, uma transformação radical.

Neguei enfaticamente e reforcei:

— Não posso ser um Jedi!

Luke agarrou-me nos ombros, mas não foi agressivo quando me disse:

— Escuta-me. Não te faria esta proposta se não acreditasse, com toda a minha vontade, que é possível. O mestre Eilin acredita e tu também deverás acreditar. Tem fé, peço-te. Não em mim, isso virá depois com os dias intensos de exercícios e de ensinamentos, mas em ti própria para começar. Eu sei, é uma viagem demasiado assombrosa, até para mim o foi. Sabia muito menos do que tu sabes hoje quando iniciei as minhas descobertas com Ben Kenobi. Tu és fantástica! Possuis um enorme potencial que eu gostaria muito de explorar, de moldar, de engrandecer.

— Eu quero ser forte… só isso.

— E sê-lo-ás, com a Força do teu lado. Ao teres o apoio da Força nas tuas ações, a orientar-te os passos no caminho da luz, serás, naturalmente, um Jedi.

— Se eu não concordar com o que me estás o oferecer… O que vai acontecer?

Largou-me os ombros, endireitou as costas.

— Irei combater O’Sen Kram sozinho.

— Não podes!

— Que alternativas existem, Cleo?

— Ele vai… esmagar-te!

— Muito obrigado pela tua confiança – observou sarcástico e muito zangado. Vi-lhe o rubor nas faces, o lampejo nos olhos azuis.

— Eu…

— Podes ajudar-me, vais dizer isso? – Inclinou-se para mim, esperançoso. – Pois podes. Podes ajudar-me! Vem comigo, serei o teu mestre e juntos seremos capazes de derrotar Kram.

— Mas um Jedi…

— Não temos outra maneira. Neste Universo existe a escuridão e a luz. Kram movimenta-se na escuridão. Para derrotá-lo precisamos de manobrar na luz, manter-nos afastados do lado negro. Cleo, lamento dizer-to, resvalas perigosamente para a obscuridade. O mestre Eilin não me contou isto, mas julgo que quando Kram nos capturou não estava atrás de mim. Estava atrás de ti!

— O quê? – murmurei.

— Ele sente a Força, percebe as suas variações, os equilíbrios. Ele descobriu que tu existias, essa… maravilhosa criatura com todo esse poder em bruto, uma pedra preciosa à espera de ser lapidada por um professor adequado. Ele quis ser esse professor, mas com ele vais perder-te para sempre no lado negro. Tu tens essa inclinação perigosa, alimentada por essa estranha raiva que nutres como uma proteção pessoal. Kram sabe-o! Por outro lado, tendo-me a mim como professor… Podemos vencer a maldade que te quer escravizar e elevar-te à grandeza de uma alma nobre e pura.

— Nunca serei uma alma nobre e pura! – apontei em desespero. – Não sou digna… de ser um Jedi. Tens razão, existe muita raiva em mim. Não tenho culpa que assim seja… – Acrescentei uma mentira, para suavizar a realidade: – Não me consigo lembrar porquê.

— Não faças essa avaliação. Não estás a ser justa com quem tu, verdadeiramente, és. – Tornou a agarrar-me nos ombros. – Repito: acredito em ti, acredito que és intrinsecamente boa, luminosa como esta clareira. Acredito que serás um Jedi. Vem comigo, segue-me.

Não estaria a ser justa com quem eu era?, pensei magoada. Suspirei. Sem alternativas, portanto. O mestre Eilin sabia que a minha decisão seria aquela. Mais uma vez, sem um pingo de imprevisibilidade.

Acenei com a cabeça.

— Aceito. Serás o meu mestre, Luke Skywalker e deverei tornar-me num Jedi para enfrentar-me a O’Sen Kram. Iremos combatê-lo e derrotá-lo juntos.

— Tenho muito orgulho em ti.

Sorriu-me. Quis puxar-me para si e abraçar-me, mas desistiu no mesmo instante em que o pensou. Julgou que a proximidade excessiva poderia prejudicar a nossa nova relação, que era agora de tutor e de pupila. Eu preferia que ele me tivesse abraçado. Precisava de um aconchego, de calor, para que me sentisse menos apreensiva com a decisão que acabava de tomar.

Espreitei a casa brilhante, a luz a derramar-se pelas janelas e a estender-se em redor, irradiando como um sol cujo centro era a moradia divina. Eu estava no intervalo sombrio dos raios luminosos, era-me mais confortável. Receava queimar-me e derreter, temia ser exposta como uma traidora.

Começaria a treinar para ser um Jedi. A criatura negra de Kram aspirava a essa honra, poder afirmar que pertencia à mesma elite de cavaleiros das estrelas que contara nas suas fileiras com Yoda, Obi-Wan Kenobi, Anakin Skywalker. O meu recente mestre confessava-se orgulhoso, eu experimentava vergonha pela ambição que não me cabia ter, que me estava vedada desde a minha criação enjeitada.

Luke percebeu o meu tormento.

— Tudo vai correr bem – sossegou.

— Ainda não consigo ter essa crença tão inabalável em mim. Não sei se algum dia irei sentir a Força e usar-me dela, como um verdadeiro Jedi.

— Tu sentes a Força. Apenas não estás habituada a reconhecê-la.

— Sim, talvez…

— Com os treinos poderás recuperar a memória.

— Oh… – gaguejei, afastando-me. – Sim, claro que sim.

— Não queres regressar a casa?

— Claro que quero…

Poderia fazer de Ekatha o meu lar, pensei, quando tudo tivesse terminado. Se não morresse, entretanto, e tanta coisa podia correr mal que o desfecho podia ser mesmo a minha eliminação física antes de ter a veleidade de afirmar que combatera Kram como um Jedi, ao lado de Luke Skywalker.

O ar suave da noite de Luyta bateu-me na cara e soube-me bem. De olhos fechados, respirei. Simplesmente, respirei. Devagar, enchia os pulmões de ar que a seguir vazava, para os tornar a encher, em longas inspirações e expirações. Por um momento, nada mais existia no mundo do que aquela sensação de poder respirar livremente.

Escutei um rugido.

Luke olhava fixamente para a floresta que rodeava a clareira.

— O que foi? – perguntei.

O vulto enorme de um animal cinzento peludo surgiu da neblina e correu na nossa direção, de mandíbulas escancaradas, exibindo as suas garras, regougando e bufando ameaçadoramente. Saltei com o susto. Recuei para me colocar atrás do cavaleiro Jedi, meu mestre agora, mas entretanto o monstro alcançou-me. Parou diante de mim. Ergueu os dois braços enormes, soltou um bramido prolongado enchendo-me o cabelo de saliva.

— Iko… – reconheci. – És o Iko!

— Conheces? – perguntou Luke admirado.

— Conheço. É o meu protetor.

Levantei uma mão.

— Iko, acalma-te. Por favor…

— Como é que arranjaste uma criatura dos lagos Kendon para te proteger?

— Foi o mestre Eilin.

— Uma escolha acertada. Não podias ter melhor… Ser-te-á leal até ao fim.

— Sim, uma excelente escolha! Até resolver devorar-me! – exclamei em pânico, pois o monstro rugia enquanto fazia curtas investidas na minha direção. Tinha-o visto em ação na Belirium e bastava varrer-me com apenas um dos seus braços para me partir em duas.

— Ele não te vai devorar.

Espantada, olhei para Luke.

— Como é que sabes isso?

— Ele está zangado contigo e creio que isso não basta para te incluir na sua dieta.

— O que queres dizer?! – perguntei com a voz esganiçada. Não me parecia que o cavaleiro Jedi, descontraído como se apresentava, iria partir para o confronto com o monstro e defender-me da sua ira.

— Deves saber por que motivo Iko está zangado contigo.

— Percebes o que está a dizer?

— Não, mas percebo o que está a sentir.

O monstro largou um rugido ainda mais feroz que os anteriores, que me fez estremecer da cabeça aos pés. Agitei o braço e gritei:

— Para, estás a assustar-me! Para com isso imediatamente! É verdade que estás zangado comigo? Porque fugi do abrigo?

Um segundo rugido que abanou as paredes da casa. As suas garras torceram-se por cima da minha cabeça. Cobri os ouvidos com as mãos.

— Desculpa! – gritei. – Desculpa, não podia ter ficado quando Luke Skywalker estava nas mãos de O’Sen Kram. Compreende, por favor! Ele é… é o meu amigo.

Aquelas palavras, com o pedido de desculpas a servir como a introdução perfeita, acalmaram o monstro. Rosnou-me, com a carantonha crispada.

— Se eu estivesse em perigo também não hesitarias em ir em meu auxílio – continuei. Assentei um punho no peito, sobre o coração. – Mesmo que tivesses de desobedecer ao mestre Eilin, tu abandonarias tudo, até a tua própria segurança, para me salvares. Aconteceu o mesmo comigo, Iko. Não estava descansada sabendo que o meu amigo precisava de mim.

Iko semicerrou os olhos amarelos. Continuava a rosnar, mas fazia-o cada vez mais baixinho e abandonara a postura ofensiva. Os braços balançavam ao longo do corpanzil pardo.

— Adorei o abrigo que fizeste para mim, adoro que sejas o meu protetor e não quero que deixes de o ser. Fazemos as pazes?

Olhei para o cavaleiro Jedi. Franzi-lhe uma sobrancelha.

— Estás a achar isto divertido.

— Muito! – exclamou a rir-se.

Efetivamente, as pazes estavam feitas. Sem ter tempo para me preparar, fui abafada pelos braços do monstro. Debati-me, mas o aperto era demasiado forte. Pedi-lhe que me soltasse, Luke ria-se. Tinha desejado um abraço e calor, conseguia o que desejara, embora tivesse preferido outros braços que não aqueles, brutos, desajeitados e peludos. Cuspi pelos, tirei outros dos lábios. Quando me soltou, Iko ronronava, observando-me com minúcia, inclinando a cabeça para um e outro lado. Dispensei-lhe mais algumas palavras de agradecimento e de reconhecimento, o monstro ficou apaziguado e pediu-nos que o seguíssemos. Iríamos para o abrigo. Seria excelente. Precisava de um banho, de repousar a cara dorida, de mudar de roupa, de me preparar mentalmente para o que estava para vir. Fiz uma descrição breve do interior do abrigo e Luke acrescentou:

— O quarto continua a ser teu. Fico com Iko na sala comum, durmo no tapete. Não me importo. Preciso que me dês acesso, contudo, à casa de banho.

— Claro. Podes usar o que quiseres daquela casa. É tanto minha, como tua. Um lugar emprestado.

— Estou habituado a lugares emprestados.

— Eu também…

Estendeu-me a mão esquerda que agarrei imediatamente, com mais ânsia do que era suposto e corei atrapalhada. Os dedos dele apertaram os meus e vi-o a sorrir-me, na noite sombria de Luyta.

Desceu sobre mim uma grande tranquilidade. 

— Vais ser uma excelente aprendiza, Cleo. Tens uma coisa que eu não tinha quando comecei os meus treinos junto de Yoda.

— O que é?

E ele respondeu:

— O medo!


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Notas finais do capítulo

A Cleo aceitou Luke Skywalker como mestre e agora ela tornou-se uma aprendiza a Jedi. Segundo o mestre Eilin o caminho que ela vai percorrer não será fácil... Acham que ela vai conseguir completar os treinos, voltar a ser poderosa e enfrentar-se a O'Sen Kram sem dúvidas?
Assistimos também ao regresso de Iko que vai continuar a proteger a Cleo fielmente.

Próximo capítulo:
O primeiro dia.

Agora farei um anúncio e espero que tenham paciência comigo. Vou fazer um intervalo na publicação desta história Star Wars e só retomarei em janeiro de 2017.
Não ficarei ausente, pelo contrário, tenho outros projetos alusivos às festas que se celebram nesta época do ano e que aparecerão em seu devido tempo. Por outro lado também acho que preciso de uma pausa na rotina das publicações de A Criação da Luz, embora esta história tenha já reservado no meu coração de escritor um lugar muito especial devido à excelente receção que tem acontecido. Muito obrigado caras leitoras e caros leitores por estarem a construir esta experiência maravilhosa comigo!
Também acho que a publicação em 2017, já num novo ano, do próximo capítulo desta fanfic vai se encaixar perfeitamente, devido ao seu título (O Primeiro Dia) e porque será o início dos treinos da Cleo para ser um Jedi.
É sempre bom começar qualquer coisa, ainda que com os pressupostos de outras antigas.
Espero que compreendam e Boas Festas!