A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 16
Uma possibilidade


Notas iniciais do capítulo

"Desta vez, não se sentiu aterrada. Sabia que acabaria por conseguir, mas teria de proceder ao seu ritmo. Tinha de ser forte e inabalável."
in A Porta dos Infernos, Gaudé, L., Porto Editora, 2009



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Dormi um pouco na prateleira desconfortável. Era apenas imaginação mas podia asseverar que conseguia sentir naquela superfície assética o odor corporal de Luke Skywalker. Sentei-me a esfregar os olhos. O que estaria O’Sen Kram a fazer-lhe?

O senhor do trono negro era um controlador e, como todos os da sua laia, era um exibicionista. Apreciava a intimidação e a opressão dos adversários através da demonstração dos seus poderes absolutos que, dependendo da magnitude da montra, se mostrariam mais ou menos avassaladores e imbatíveis. Quanto mais forte o adversário, maior seria o exemplo. Para me impressionar, escolhera a obliteração de corpos cósmicos nas profundezas do Universo transmitidos na tela de um monitor mudo. Para impressionar um cavaleiro Jedi teria seguramente métodos mais refinados. Estaria a torturá-lo, a vergá-lo, a drená-lo. Não o iria matar de imediato. Não era coerente desfazer-se do Jedi quando fizera-me curá-lo e quando tinha a capacidade de o eliminar rapidamente manipulando a Força.

O meu estômago embrulhou-se com a possibilidade de Luke Skywalker estar a sofrer naquele momento. De algum modo sentia-me responsável. Não estaríamos nas mãos de O’Sen Kram se eu não estivesse com ele.

Ou talvez a mentira fizesse parte do jogo. O’Sen Kram conhecia-me na generalidade, como conhecia todas as criaturas que observava do cimo daquele palco inatingível do seu salão particular. Não me dispensava mais atenção do que à que dava a um asteroide que fazia colidir com um planeta ao agitar a larga manga do seu manto. Eu era apenas um instrumento para chegar ao Jedi… Mas que possível ligação teria eu com Luke Skywalker? Para começar, aparecera em Tatooine, o planeta natal de Luke… Para finalizar, não havia mais história.

Era tudo demasiado intricado e desisti do raciocínio. As respostas haveriam de se apresentar, simples e límpidas, no momento certo. Tinha a certeza. Pelo menos já tinha uma das peças do enigma – O’Sen Kram. Era ele o obreiro de toda aquela situação.

Cheguei o nariz à prateleira e inspirei fundo. Concentrei-me naquele odor e procurei por Luke Skywalker com a minha mente como instrumento de busca. Fui envolvida por uma espessa nuvem sufocante, densa e gelada, escura como uma caverna. O instinto dizia-me para abrir os olhos, mas resisti a desistir daquele mergulho no desconhecido. A nuvem foi-se dissipando e surgiu uma construção metálica de vigas cruzadas. A forma luminosa de um corpo estava no centro desse espaço enleado em metal. Um pano vermelho encharcado cobriu-me a boca e caí para trás, sem fôlego. Tossi, esfregando a garganta, a pestanejar furiosamente. Não percebi o que tinha encontrado. Podia ser Luke Skywalker, mas podia não ser nada. Resolvi não me encher de vaidade, esperança, eu não era capaz daquele tipo de proeza.

A porta da cela abriu-se e entrou o capitão Revan depois do par de soldados armados que guardaram a entrada aberta.

— Chegou a tua vez – anunciou, sorrindo-me. – Acompanha-me.

Levantei-me e aconcheguei a capa nos ombros.

— Onde está o cavaleiro Jedi?

A minha pergunta irritou-o. Disse-me, embebendo as palavras do cinismo que carregava no sorriso:

— Recordo-te de que não estás em posição de exigires nada. Pareces-me uma mulher inteligente, pelo que já deves ter deduzido, sabiamente, que existe alguém nesta nave suprema que dá as ordens e que existem outros que obedecem, sem margem para discussões, divagações ou dúvidas. Tu és, digamos, a convidada especial do mestre e o cavaleiro Jedi é o seu brinquedo favorito. Compreendido?

— Não me interessa quem dá ordens a quem e o que sou para vocês. Quanto mais longe forem na vossa loucura, maior será a vossa punição. Julgo que também serás um homem inteligente, capitão Revan, e que compreendes este esquema das coisas.

A minha petulância estalou a máscara de superioridade do oficial. Fez um gesto brusco na direção da porta.

— Vem comigo! Se abrires mais a boca, vais arrepender-te.

— Não ousarás tocar na convidada especial do teu mestre.

— Existem maneiras…

Não era tão corajosa como aparentava. Escondia as mãos que tremiam nas dobras da capa, sentia o suor empapar-me a camisa que usava debaixo da túnica, tentava aguentar-me sobre as pernas moles. Contudo, era vital manter essa aparência de domínio, um ensaio para ser tão controladora quanto o senhor do trono negro. Um ensaio estupidamente tímido.

Saí da cela atrás do capitão Revan, resolvida a não prolongar o confronto ou seria desmascarada quando me faltasse a energia para alimentar aquela desgraçada arma fingida. Ele que pensasse o que quisesse, que ficasse curioso se eu estaria, ou não, a ser sincera. Iria manter o logro como meio de sobrevivência. Algemaram-me as mãos e fui, atrás do capitão Revan, com os dois soldados na retaguarda, pelo corredor estreito da área de detenção até um átrio amplo onde se podia aceder aos elevadores.

A nave de Kram mergulhava numa atividade desconcertante, de cariz marcadamente belicista com soldados marchando pelas galerias dos diversos níveis do gigantesco veículo espacial, com homens correndo com despachos urgentes para os comandantes, com ordens emitidas pelos altifalantes do sistema sonoro, que destoava da paz que permeava a galáxia. A amostra que vi no átrio, enquanto esperávamos pelo elevador, era suficiente para extrapolar a azáfama que aconteceria em qualquer canto daquele quartel-general voador, atestando as ideias agressoras do senhor do trono negro. Não era só uma questão de sobrevivência pessoal e do resgate urgente de Luke Skywalker. A ambição de Kram devia ser frustrada sob pena de se lançar sobre os sistemas, que se habituavam à prosperidade de um mundo livre, outro período de trevas.

Um elevador chegou. O capitão Revan deixou algumas indicações e depois abandonou-me à companhia do par sisudo de soldados. Entrámos os três no exíguo compartimento tubular, um dos homens carregou no botão e iniciámos a descida. Adivinhava-lhes a seriedade pelas bocas firmemente fechadas, já que uma enorme viseira opaca lhes tapava os olhos, parte do capacete negro que exibia riscas vermelhas, a combinar com o uniforme composto nessas duas cores.

A descida terminou e a porta do elevador abriu-se. Um dos soldados saiu, o outro, nas minhas costas, vigiava os meus passos para que não tentasse escapar. Nem iria tentar, num espaço tão acanhado.

Um urro horrendo trovejou no exterior do elevador e escutou-se um baque seco, seguido de um silêncio que indicava que o primeiro soldado tinha sido afastado e neutralizado. Como reflexo, recolhi-me e encostei-me na parte do elevador mais afastada da porta. O segundo soldado ficou petrificado ao meu lado. Depois do urro e do baque, surgiu na cabina do elevador um monstro peludo, de pelo acinzentado, olhos amarelos esbugalhados e presas ameaçadoras na bocarra salivante, exibindo garras descomunais nas patas dianteiras. Caminharia ereto ou atacava assente nas patas traseiras. O que quer que fosse tornava-o gigantesco naquela posição.

Gritei aterrada e espalmei as costas na parede arredondada. Olhei para o soldado que estava armado, à espera que me protegesse, mas o homem não conseguiu reagir a tempo. Ao apontar a espingarda, o dedo no gatilho não foi suficientemente lesto. O monstro lançou-lhe as patas ao capacete e puxou-o. Escutou-se um grito de aflição, um disparo laser, o som de ossos esmagados e novamente aquele silêncio.

Olhei para o painel do elevador em pânico. Se carregasse num botão a porta iria fechar-se e o elevador iria mover-se, afastando-me do monstro. As mãos estavam algemadas à frente, pelo que estiquei os dedos…

Nisto, um homem entrou no elevador, de arma em punho. Tropecei nas minhas pernas para evitar chocar contra o intruso.

— Vem comigo!

Vestia-se como um contrabandista, com um colete negro e uma camisa branca, calças escuras e botas de cano alto, era bem constituído, rosto atraente sem ser inteiramente bonito, cabelo preto e encaracolado. Uma cópia mais jovem e menos refinada de Han Solo. Agitou, impaciente, um braço e repetiu:

— Vamos, vem comigo!

— O quê? – gaguejei.

— Estou aqui para te tirar desta nave. Depressa! Daqui a nada temos um pelotão de soldados em cima de nós.

Avancei hesitante e, assim que saí do elevador, tornei a gritar ao ver o monstro cinzento. O homem puxou-me pelas algemas para me impedir de regressar à cabina, pois eu recuava transida de medo. A besta tinha matado os dois soldados, cujos cadáveres ali jaziam desconjuntados.

— Não tenhas medo, ele não te fará mal. Chama-se Iko.

A estranheza de poder chamar o monstro por um nome tornou a cena surreal. Guinchei ao vê-lo agarrar-me nos pulsos com as suas patorras e separá-los, destruindo as algemas como se fossem feitas de papel e não de indestrutível metal. Comecei a arfar de tanto medo. Tinha tudo acontecido demasiado depressa.

O contrabandista ergueu a sua pistola laser e disse:

— Pronta? Vamos embora!

Eu não estava pronta mas acenei que sim, sem desfitar o monstro.

— A minha nave espera-nos na plataforma dez. Segue-me e nunca te afastes. Iko, cobre a retaguarda.

Começámos a andar pelo corredor, em passo de corrida, com o monstro atrás de nós que eu espreitava à cautela, não fosse aparecer outro daqueles ataques de fúria assassina que eu tinha presenciado no elevador e que tinha acabado com a vida de dois homens num instante. Era estranho ver a criatura agora empunhando uma espingarda laser que roubara a um dos soldados que matara. Saberia usar aquilo? Teria, portanto, algum senso para além do óbvio instinto destruidor?

— Quem és tu? Como soubeste que estava aqui? – perguntei ao contrabandista, para me distrair da hipótese de acabar esmagada pelo monstro. – Vieste de Coruscant?

— Tantas perguntas, menina.

— Não sou nenhuma menina! E quero respostas, se não for demasiado aborrecido responderes-me.

— É inapropriado. Estamos a fugir! Na minha nave conto-te tudo.

Parei e o monstro parou atrás de mim. Cruzei os braços. O contrabandista voltou-se para mim e protestou:

— Isto é uma missão de salvamento nada fácil. Não tornes as coisas mais difíceis do que já são, menina!

— Para de me chamar menina. Responde-me ou não saio daqui!

Ele revirou os olhos. Após um longo suspiro respondeu de rajada:

— Chamo-me Lyle Bergh e estou a fazer o meu trabalho. Pagaram-me para te vir buscar e é o que estou a fazer… se me deixares! Tenho de te levar viva, mas se te puseres com demasiados entraves, levo-te morta. Entendido?!

O monstro rugiu atrás de mim. Dei um salto, descruzei os braços e reatei a caminhada apressada. Lyle Bergh, correndo para se colocar adiante de mim e assim retomar a ordem da fuga, ele primeiro, depois eu e por fim o monstro, completou:

— E não venho de Coruscant, esse sistema está demasiado longe. Estamos em Luyta!

Dobrámos uma esquina e apresentou-se uma encruzilhada de corredores. Tomámos o da esquerda que, passado um pouco, descia em largos degraus iluminados. Aqueles lugares da nave não eram tão frequentados, o que possibilitava relativa calma àquela empresa.

— Quem te pagou?

— Pensava que conhecias os teus amigos…

Notei a pausa. Ia chamar-me outra vez de menina, mas refreou-se. Evitava tempestades desnecessárias, percebera que eu não seria condescendente a faltas de respeito reincidentes.

— Sabes o meu nome, não sabes? Ou só te deram a minha imagem para me conseguires reconhecer e teres sucesso no meu salvamento?

— Sim, sei o teu nome. Descansa. Quando precisar de berrar por ti, saberei como fazê-lo.

— Não irás berrar por mim! E aquela coisa que vem atrás de nós?

— O que tem?

— É o teu copiloto, companheiro ou coisa semelhante?

Lyle Bergh soltou uma gargalhada.

— Estás a comparar-me a Han Solo!

A comparação seria óbvia, levando em conta a maneira como se me apresentara – um contrabandista, pago para me salvar, acompanhado por uma criatura peluda. Aguardei pelas suas explicações que não tardaram, pois percebi que queria esclarecer, desde logo, o tipo de relacionamento que iria existir entre nós, no curto tempo em que estivéssemos juntos:

— Sinto-me lisonjeado por me compararas ao general Solo da Nova República, antigo contrabandista, um dos melhores e mais odiados bandidos da galáxia, mas não sou, nem nunca quis ser Han Solo. Eu sou Lyle Bergh e Lyle Bergh é… pois, é Lyle Bergh, único e inimitável! Tenho a minha própria lenda para construir.

A escadaria acabou. Ele espreitou para ambos os lados e, ao ver que o caminho continuava livre, deu ordem para que prosseguíssemos o avanço até ao espaçoporto onde estava a sua nave.

— Então, não foi Han Solo que te enviou…

— Claro que não! E o Iko não é o meu companheiro, simplesmente porque nunca me acompanhou em tempo algum, em nenhuma das minhas missões. Eu trabalho sozinho! Ele está aqui para te proteger.

— Para me proteger?

Seria outro dos que me conhecia e mais um de quem não me recordava absolutamente de nada? Espreitei-o pelo canto do olho, incrédula. Ter um guarda monstruoso nunca fizera parte das minhas conjeturas no processo de recuperação da memória. Achava muito naturalmente que não convivia com criaturas quase irracionais, quando era uma mulher da raça humana. Pelos vistos, os meus conceitos teriam de começar a mudar e rapidamente, aceitando todas as probabilidades, por mais descabidas que fossem.

— Claro, para te proteger. Tens um excelente protetor. Iko é perfeito quando se zanga.

— Matou aqueles soldados porque me estava a proteger?

— Não tenhas dúvidas! Normalmente, não andam criaturas ameaçadoras nos corredores de antigas naves de assalto imperial a matar gente indiscriminadamente.

— Antigas naves de assalto imperial?

Lyle Bergh digitou rapidamente um código num painel e uma porta dupla deslizou horizontalmente para nos dar passagem. O zumbido que nos acompanhava nos corredores desertos começava a dar lugar ao ruído nervoso de uma nave em rebuliço. Estávamos a aproximar-nos de locais cheios de gente e cheios, por acrescento, de perigo.

— Além disso – prosseguiu, ignorando a minha observação –, Iko não podia levar-te sozinho para Luyta e entrei eu na história.

— Então, Iko deveria vir buscar-me a esta nave e levar-me… para quem te está a pagar… Em Luyta… Precisam de mim em Luyta porquê?

Aborrecido, o contrabandista voltou-se para mim.

— As tuas perguntas começam a enervar-me!

— Se não me levares, não recebes o teu pagamento. Sugiro que me respondas ou fujo. Não me importo de ser novamente aprisionada, pelo menos sei com o que posso contar dentro desta nave.

Na verdade, não o sabia. Também O’Sen Kram queria levar-me para Luyta. O que haveria nesse sistema que era vital para os planos do senhor do trono negro e igualmente importante para quem lhe queria sabotar os planos? Ah, finalmente uma falha que Kram não conseguia prever e corrigir. A minha salvação! Ou pior, faria tudo parte do mesmo projeto e aquela fuga não passava de uma falsidade pérfida do próprio Kram, com o objetivo de me quebrar a vontade.

— Estás a desafiar-me, menina?!

— Não, Lyle Bergh! Tento perceber o que raios se passa aqui!

— Apenas faço o que me pagaram para fazer. O meu trabalho! Tu é que deves saber para que raio precisam de ti em Luyta!

— Não confio em ti!

Iko rosnou baixinho ante aquela discussão.

— O que queres dizer com isso? Que não vens… comigo?!

Um disparo laser passou por cima da cabeça de Lyle Bergh. O contrabandista encolheu-se por instinto e agarrou-me no braço, puxando-me para um recesso daquele corredor, criado por um enorme bastidor que fazia parte do sistema informático da nave, e que nos servia como escudo. Iko juntou-se a nós. Uma patrulha de seis soldados, seguindo o apelo do alarme que fora eventualmente lançado na área de detenção onde um prisioneiro se tinha evadido, tinha-nos encontrado e tentava cortar-nos o caminho para o espaçoporto, despejando sobre nós uma vaga ininterrupta de tiros. As pequenas explosões dos raios laser soavam por todos os lados, tapei os ouvidos com as mãos. Um cheiro acre rodeava-nos, proveniente das nuvens de fumo nascidas das explosões.

O monstro fazia uso da sua espingarda, assim como o contrabandista da sua pistola, e tentavam obrigar os soldados a interromperem os disparos para nos proporcionar uma escapatória.

— Estás a ver aquela passagem, menina? – perguntou Lyle Bergh aos gritos, para se fazer ouvir sobre o ruído dos disparos.

Esqueci que ele me irritava com aquele tratamento e respondi, também aos gritos:

— Sim, estou!

— Quando eu disser, corres para lá e corres sempre a direito. Eu e Iko vamos depois de ti, compreendido?

— Certo!

Num assomo de intrepidez, o contrabandista saiu do recesso e começou a disparar ininterruptamente sobre a patrulha de soldados. Cerrava os dentes e os músculos dos braços desenhavam-se sob a camisa branca, de punhos desabotoados.

— Agora! Corre!!

Acudi ao seu apelo, admirando-lhe a loucura que o fazia expor-se daquela maneira aos soldados que foram esconder-se para escapar dos seus tiros. O pagamento que lhe haviam prometido para salvar-me deveria ser bastante elevado para ter tomado aquela atitude drástica, em que a morte seria um risco que podia ser considerado em qualquer altura.

Desatei a correr sem parar. Não sabia qual a direção que tomava, mas corria. Sempre em frente, obedecendo à indicação de Lyle Bergh. Parei ao embater numa porta blindada dupla. Os meus pulmões ardiam. Dobrei-me, tentei recuperar o fôlego. O contrabandista e o monstro apareceram pouco depois. Já não se escutavam disparos. Os soldados tinham sido afastados, ou mortos.

Lyle premiu alguns botões no painel situado junto à porta. Um apito agudo soou e ele esmurrou-os, furioso.

— Mudaram o código! Malditos!

Iko vigiava o corredor atentamente, soltando pequenas rosnadelas.

— Essa porta iria dar onde?

— À plataforma dez, do outro lado está a minha nave.

— Fazia-nos falta uma unidade R2 para comunicar com o computador central e conseguir o novo código.

Ele tentou gracejar, mas o nervosismo e a fúria que lhe iluminavam os olhos castanhos destruíram o possível efeito apaziguador da piada:

— Não vejo nenhum androide amigável por perto!

— Rebenta com o painel.

— Não vai resultar. Estragava o mecanismo de abertura e depois é que a porta não se abria nunca. Vamos dar a volta!

— É uma grande volta?

— Depende!

— Do quê?! – irritei-me.

— Se tu te calares, vai ser uma volta pequena! Mas se continuares a importunar-me com as tuas perguntas e observações idiotas, acho que vai demorar uma eternidade!

O insulto deixou-me perplexa. Lyle Bergh era um homem brusco e desagradável, com quem não valia a pena interagir. No fim de contas, ele estava ali apenas para me salvar a vida e eu deveria aceitar o facto com neutralidade. Não haveria contas a saldar depois, pois que ele haveria de receber o seu pagamento e eu podia esquecê-lo sem qualquer remorso. Se ele levasse um tiro por causa de mim, também não deveria haver lugar a culpa da minha parte. Fazia tudo parte do contrato.

A volta não foi grande e o nosso silêncio ajudou a que parecesse menos longa, tinha de concordar. Lyle Bergh arrancou uma placa da parede, descobrindo uma estreita passagem entre cabos e material elétrico que dava acesso a uma câmara utilizada pelos operários de manutenção. Passámos com cuidado pela passagem e, já na câmara, Lyle Bergh acionou o código de uma porta que se abriu diretamente para um espaçoporto com uma pequena pista de aterragem. Uma abertura lateral deixava ver o espaço exterior. Pelo aspeto simplório não me parecia ser o porão imponente onde o antigo transportador imperial de Luke Skywalker tinha sido capturado, talvez um sítio secundário onde se descarregavam mercadorias e outros abastecimentos. Da porta desciam umas escadas, compostas por degraus muito inclinados e estreitos.

— Luke… – murmurei com um estremeção.

Iko rosnou qualquer coisa, Bergh disse-lhe aos sussurros:

— Eu também não vejo soldados. Avançamos? Guarda a espingarda… Vamos aparecer como se estivéssemos de partida, como fazemos normalmente…

Iko rosnou uma espécie de pergunta.

— Não me parece que o alarme se estenda até aqui, por isso ninguém vai levantar problemas. A área de detenção fica na zona principal e não esperam que tenhamos vindo para cá – respondeu-lhe Bergh. – Ninguém usa a porta dos fundos!

Iko concordou com um curto ronco. Guardaram as armas nos respetivos cintos, o contrabandista fez-me um gesto para que o seguisse, mas eu não arredei pé. Olhou-me carrancudo.

— E o cavaleiro Jedi? – perguntei.

— Qual cavaleiro Jedi? – impacientou-se. – Ninguém me falou em nenhum cavaleiro Jedi.

— Luke Skywalker.

— Não existe um Luke Skywalker no meu acordo. Por isso, vamos embora! A minha nave está ali e se não nos apressarmos, fecham este espaçoporto e todos os outros quando descobrirem que podemos escapar voando deste lugar infernal.

A sua ignorância causou-me asco. Se me vinha salvar, deveria saber que eu não estava sozinha naquele lugar infernal. Torci-me num esgar e ele entendeu que estava a enfrentá-lo. Espetou-me um dedo diante do rosto.

— Escuta aqui, menina! Se não fores a bem, vais a mal. Peço ao Iko que te dê uma pancada nessa cabeça dura e arrasto-te desmaiada para a nave. Então, como é que vai ser? A bem… Ou a mal?!

Humedeci os lábios. Tremia só de pensar num ataque do monstro cinzento, mas estava firme na minha decisão de não abandonar o Jedi.

— Não saio daqui sem Luke Skywalker.

Os altifalantes do espaçoporto crocitaram um aviso. Pedia-se ao pessoal da manutenção que inspecionasse todas as naves estacionadas e verificasse as permissões de partida. Iko rugiu. Lyle Bergh agarrou-me num braço e desceu a correr as escadas íngremes, arrastando-me sem cerimónias. Tinha perdido a contenda. A força do contrabandista impedia-me de me soltar dele e não adiantava insistir que me largasse, que fosse buscar Luke Skywalker. Ele haveria sempre de esgrimir o argumento do contrato, do trabalho que fora ali fazer e que iria cumprir à risca. Nem sequer havia a possibilidade de me deixar à minha sorte ou perdia a recompensa. Largou-me quando pisámos o chão do espaçoporto. Puxou pelas abas do colete negro, aligeirou o colarinho apertado da camisa passando-lhe um dedo e avisou-me entredentes:

— Nada de precipitações agora. Vamos para a minha nave, calmamente. Não podemos dar nas vistas ou nunca mais saímos daqui. Entendido?

A nave espacial de Lyle Bergh tinha uma forma pouco aerodinâmica. A carlinga era um apêndice redondo num corpo maciço semelhante a um contentor geometricamente impossível, de afiadas arestas que se uniam em ângulos estranhos compondo um espaço tridimensional com lados desiguais que se sucediam sem uma ordem aparente, acrescentos quando fora necessário criar compartimentos adicionais para carregar mais mercadorias ou esconder mais contrabando. A um primeiro olhar havia a dúvida se aquela coisa podia realmente voar e atingir o hiperespaço.

Iko rodeou o veículo, abriu uma pequena tampa cinzenta e acionou uma alavanca que abriu a rampa de acesso, situada na parte inferior, entre as quatro patas metálicas nas quais a nave assentava. Ao fundo, de uma sala iluminada com janelas compridas, saíram dois homens arrastando uma máquina, acompanhados de um androide astromec, uma unidade R2.

— Estou a vê-los – indicou Bergh ao monstro cinzento.

Os altifalantes repetiram o aviso, no mesmo tom tranquilo. Os homens não se apressaram, mas um deles reparou que estávamos junto à nave. A unidade R2 soltava apitos espaçados e as rodas da máquina chiavam levemente. A rampa da nave tocou o chão e imobilizou-se.

Nisto, uma sirene irrompeu pelo espaçoporto. Tapei os ouvidos com as mãos. Os dois homens da manutenção pararam e olharam para cima. A unidade R2 começou a rodopiar sobre si mesma. Lyle Bergh levou a mão à coronha da pistola.

Uma voz metálica ecoou dos altifalantes:

— Atenção! A todas as unidades! Fugiu uma prisioneira do bloco de detenção. Está a ser ajudada por um corelliano e por uma criatura dos lagos Kendon. Se forem encontrados têm autorização para disparar a matar. A mulher, no entanto, deve ser capturada viva. Atenção!...

A mensagem foi repetida. Um dos homens da manutenção gritou:

— Eh, vocês aí! Parados!

Lyle ordenou a Iko, puxando da sua arma.

— Leva-a para dentro. Rápido! E põe os motores a trabalhar!

O monstro agarrou-me pela cintura e levantou-me no ar sem qualquer esforço. Alguns disparos laser cruzaram o ar e atingiram a fuselagem da nave, soltando faíscas. Ainda vi o contrabandista disparar alguns tiros, que queimaram a unidade R2 e derrubaram um dos homens da manutenção, depois estava dentro da nave. No interior cheirava a óleo e a soldadura recente, o que me fez duvidar ainda mais se aquilo conseguiria de facto voar.

Iko soltou-me, Lyle Bergh passou por mim a correr, a rampa de acesso fechava-se entre estalidos e faíscas provocadas pelos tiros que disparavam contra nós. A sirene tocava incessantemente e a mensagem era repetida entre esse barulho ensurdecedor.

Os motores soluçaram, chiaram e rugiram. A estrutura tremia violentamente e eu procurei por um sítio onde me pudesse sentar, pois a descolagem não iria ser suave. O contrabandista juntou-se ao monstro na cabina de pilotagem, eu corri para uma saleta estreita onde encontrei duas cadeiras, destinadas a possíveis passageiros. Sentei-me, apertei o cinto. As minhas mãos tremiam tanto como a nave que bamboleava à medida que se elevava no ar.

Em frente descobri duas escotilhas mínimas que permitiam ver o que se passava no espaçoporto. Na carlinga, Lyle Bergh berrava ordens ao seu copiloto improvisado. Os motores rugiam cada vez mais alto, tudo abanava como se se fosse desconjuntar a qualquer instante. Pelas escotilhas vi um pelotão de soldados fortemente armados marchando pelo espaçoporto. Os da frente assentaram um joelho no chão, elevaram as potentes espingardas. Baixei a cabeça até às pernas, protegendo-a com os braços.

Com um ligeiro solavanco, a nave afastou-se definitivamente da pista, quando os tiros dos soldados atingiam a chapa impiedosamente, criando uma chuva brilhante de faúlhas brancas. Os motores foram acelerados ao máximo e estávamos no espaço, a afastar-nos da nave de O’Sen Kram. Rezei para que não usassem o raio de tração esverdeado que nos traria de regresso ao pesadelo.

Encostei-me na cadeira, experimentando uma terrível sensação de ingratidão. Fora egoísta. Escapara e deixara o cavaleiro Jedi para trás.

A nave gigantesca de O’Sen Kram afastava-se no infinito negro do Universo. E Luke Skywalker ficara lá.


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Notas finais do capítulo

A Cleo foi resgatada por um contrabandista contratado para o salvamento - segundo as palavras de Lyle Bergh o pedido partiu de "um amigo". Felizmente e por enquanto, ela ficou a salvo de O'Sen Kram, mas teve de deixar Luke Skywalker para trás, embora contra a sua vontade.
No próximo capítulo vamos conhecer quem pediu o resgate da Cleo. E será ele quem vai contar-lhe toda a verdade.

Próximo capítulo:
A maldição do conhecimento.



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