A Criação da Luz escrita por André Tornado


Capítulo 12
Adeus, planeta do deserto


Notas iniciais do capítulo

"Não vou descrever essa viagem com pormenores. Foi admiravelmente feliz."
in A Ilha do Tesouro, Stevenson, R. L., Círculo de Leitores, 1985



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O exterior do espaçoporto de Mos Eisley estava apinhado. Gente misturada com androides e com as criaturas mais estranhas que eu alguma vez vira, ou assim me recordava. Não era um lugar muito recomendável, assim me avisara Luke, e dera-me ordens precisas para que não falasse com ninguém. Não me insurgi contra a recomendação. Eu conhecia bem o lugar. Fora ali que Luke Skywalker conhecera pela primeira vez Han Solo. Podia-se dizer que fora ali que tudo começara.

Naquele sítio eclético, Obi-Wan Kenobi vira o futuro. O velho mestre Jedi soubera, desde o início, que os destinos de Luke Skywalker e de Han Solo não mais se separariam, no momento em que os dois se sentaram cara a cara.

Um arrepio perturbou-me, mas estava calor, como sempre, no planeta do infinito deserto vermelho.

— Cleo, dirige-te para aquele edifício e não pares por nada. Não olhes, nem fales com ninguém, lembra-te. Eu depois irei ter contigo – disse Luke, desligando os motores.

— Onde vais? – perguntei e saltei do speeder.

— Vou tentar vender este veículo. Não vou precisar mais dele. Espera por mim e não te esqueças do que te disse.

— Farei como ordenaste, cavaleiro Jedi. – Abri os braços mostrando a comprida capa que me cobria o corpo e cujo capuz ocultava-me o rosto. – Com isto será difícil reconhecerem-me como… uma mulher.

Ainda o medo aos Pickot. Acrescentei maldosa:

— Acho que estou suficientemente…

— Disfarçada?

— Eu iria dizer… repelente. Ninguém se vai meter comigo.

Ele fez um esgar de desaprovação.

— A capa fica-te bem! – observou agastado e também ele saltou do speeder.

Agarrei em duas caixas metálicas com pegas de ambos os lados onde Luke guardara os seus pertences e o meu saco. Vi-o afastar-se e dirigir-se a um grupo de anões. Das carapuças dos seus hábitos castanhos, uma versão em miniatura da capa que eu envergava, distinguiam-se dois olhos amarelos brilhantes. Jawas. Se os Pickot negociavam com fêmeas, os jawas negociavam com sucata. Iriam comprar o speeder sem regatear demasiado. Era um modelo relativamente recente e fora pouco usado.

O ambiente abafado era opressivo, alimentado principalmente por uma multidão de seres de todas as espécies que pareciam conviver em relativa harmonia. Gente ao lado de criaturas gigantes, baixas, disformes, rastejantes, bamboleantes, saltitantes, humanos ao lado de androides que vagueavam irrequietos, a distribuir zumbidos, apitos, crocitos. Havia casas redondas com pequenas janelas que estavam fechadas, torreões, passadiços, edifícios de paredes nuas e amareladas que ladeavam uma imensa avenida de terra batida.

Limpei o suor da testa. Os dois sóis abrasavam o espaçoporto, acentuando o cheiro insuportável que acompanhava a multidão, a mistura do aroma doce do deserto com o odor intenso de muitos corpos diferentes amontoados.

De repente, numa das casas, a porta dupla abriu-se com estrondo e uma criatura rosácea estatelou-se no chão poeirento. Recuei assustada. Logo, dois outros seres atravessaram a porta escancarada, empunhando armas laser. O que estava no chão vociferou algumas palavras num linguajar incompreensível e levou a mão ao cinto. Um dos seres disparou um tiro. Soltaram-se faíscas, escutou-se um grito agudo e a criatura rosácea transformou-se num pedaço de carne queimada. A multidão agitou-se, uns para fugir, outros para se aproximarem do cadáver, outros para interpelarem o agressor. Eu quedei-me imóvel e boquiaberta, os braços ocupados com as duas caixas metálicas. Um par de soldados aproximava-se a correr. Os seres armados, entretanto, tinham desaparecido na confusão.

Uma mão agarrou-me no braço.

— Disse-te para não ficares no meio da rua. Anda, vamos embora.

Olhei para Luke. Repliquei com a voz trémula:

— Eu não falei com ninguém.

Ele agarrou numa das caixas e avançou. Contornou uma torre altaneira e um conjunto de habitações decrépitas para chegar a um enorme hangar, desproporcional no meio das construções mínimas que o rodeavam. A única coisa que lhe fazia jus era a imponência da torre que se erguia próxima, semelhante a uma lança espetada na areia. O compartimento cimeiro estava habitado por seres que se movimentavam rapidamente, de um lado para o outro. Seriam vigias, controladores ou operadores de alguma consola relacionada com o movimento do hangar. No topo desse compartimento piscavam duas luzes alternadamente, uma vermelha e outra azul.

Parámos diante de um portão metálico guardado por um homem maltrapilho. Luke entregou-lhe uma chapa cinzenta, o seu cartão de acesso. O homem introduziu-a numa ranhura, ao mesmo tempo que recebia, disfarçadamente, um pagamento em moedas prateadas, e o portão abriu-se a ranger devido à areia nas engrenagens, recolhendo-se verticalmente até desaparecer por cima das nossas cabeças.

Entrámos no hangar. Era, de facto, gigantesco, um lugar amplo onde estava estacionada toda a sorte concebível de naves espaciais. Impressionantes, práticas, majestosas, remendadas, personalizadas, camufladas, veículos perfeitamente operacionais destinados a sulcar a esteira insondável das estrelas…

Luke, uns passos adiante, mirava-me intrigado.

— Nunca estiveste num espaçoporto antes…

Mordi os lábios para me obrigar a fechar a boca. Ele fizera uma afirmação, eu não vi necessidade de a refutar.

— Não me lembro… de ter estado.

— Talvez nunca tenhas saído de Tatooine.

Encolhi os ombros.

O enorme hangar era tão movimentado quanto as ruas. Perto de algumas naves viam-se os pilotos e ajudantes, que carregavam mercadorias para os respetivos porões ou negociavam preços para o transporte de passageiros ocasionais. Criaturas e homens circulavam pelo lugar acompanhados por androides apressados. Os encarregados da manutenção dos aparelhos operavam maquinaria complicada, abasteciam os depósitos de combustível. No chão pavimentado por uma placa cinzenta, traços amarelos e vermelhos, emparelhados por símbolos e algarismos, indicavam caminhos e identificavam lugares de pouso. Não havia teto para possibilitar a descolagem dos veículos.

Luke aproximou-se da sua nave.

— Um transportador imperial, tipo Lambda— observei.

Ele abriu o painel, pressionou um botão para baixar a rampa de acesso.

— Nunca estiveste num espaçoporto – comentou –, mas reconheceste a minha nave. Conheces bem as naves do Império?

Pestanejei atrapalhada.

— Bem… Não tenho a certeza.

— Alguma memória?

— Não tenho a certeza – reforcei.

Eram memórias, absolutamente certo, mas não eram minhas. A rampa tocou no chão e imobilizou-se junto a uma referência pintada com símbolos amarelos, onde terminava uma linha reta da mesma cor.

Ele desistiu da sua curiosidade, uma concessão momentânea. Haveria de regressar à questão, mais tarde. Eu não o desejava, deveria esclarecer qualquer coisa para que não restassem pendências. Saíamos de Tatooine, tudo iria e deveria ser diferente dali para a frente.

— Conheço algumas naves do Império – expliquei. – Os star destroyers, os caças TIE. Também conheço as naves da Rebelião, como os X-Wings.

— Viajei muito num X-Wing, em tempos.

Uma armadilha. Lançava-me o engodo para que eu o mordesse. Já se teria apercebido da minha memória seletiva, a escolha pouco natural de instantes que não me pertenciam. Eu olhei-o decidida a não fraquejar. Luke notou a minha expressão neutra, o vazio que eu representava, uma coisa desprovida de alma, de uma alma que ele conseguisse ler, e acrescentou pacificador:

— Era mais complicado de pilotar sem uma unidade R2, e eu deixei Artoo num sítio onde faz mais falta, além de ser uma nave de combate. Prefiro esta… – Tocou num dos pilares da rampa. – Não te preocupes, não nos vai acontecer nada por viajarmos numa antiga nave do Império. Fiz-lhe algumas modificações, com a ajuda de Han, e agora é uma nave inteiramente nova. Além disso, este nunca foi um veículo de assalto.

Subi a rampa carregando a caixa metálica e disse-lhe:

— Não estou preocupada.

Parei no compartimento de entrada, onde depositei, num armário fundo, a caixa. Ele fez o mesmo com aquela que trazia, colocando-a em cima da que eu trouxera, empurrando a porta do armário que se fechou com um estalido. A rampa de acesso recolhia-se automaticamente, fazendo estremecer o chão.

— Sinto o contrário – disse-me enquanto passava para a cabina de pilotagem.

Continuava a zombar de mim. Um método que arranjara para desconstruir a minha postura. Segui-o até à cabina. Sentava-se, colocava o cinto de segurança, acendia o painel de instrumentos. Na retaguarda, a rampa fechava-se por completo, selava-se e os sons do hangar deixaram de se ouvir.

— Pensava que não me podias… sentir.

— Senta-te, por favor – convidou educadamente. – Vais ser o meu copiloto.

— Eu não sei pilotar uma nave.

— Vou guiando-te à medida que precisar de ti. Não é muito complicado. Senta-te, por favor – repetiu e empurrou algumas alavancas.

Os motores ligavam-se com um ronco surdo.

Obedeci e coloquei o meu cinto de segurança. O painel era mais complicado que o de um speeder, mas se fora capaz de lidar com o planador, também estaria perfeitamente apta para ajudar a navegar uma nave com alguém tão experiente como Luke Skywalker, um dos melhores pilotos da galáxia.

Ele indicou-me duas teclas cinzentas compridas com a mão direita enluvada.

— Liga os motores auxiliares. Vão ser necessários se alguma coisa correr mal ao levantarmos voo. Precisamos de muita energia para sairmos da atmosfera do planeta. Posso sentir-te quando me deixas fazê-lo.

— Eu não deixei que o fizesses! – exclamei admirada, enquanto carregava nas duas teclas cinzentas compridas.

A nave sacolejou com o impulso dos motores, que rugiram de forma ensurdecedora pela cabina.

— Liga o computador de bordo, nesse interruptor metálico – pediu-me ele. – Esse mais pequeno… Esse, certo! – Ligou-se um pequeno monitor azul no painel, diante do lugar do copiloto. – Se as leituras forem diferentes do habitual, avisa-me. Baixaste a guarda e eu consegui sentir-te. Nem sempre acontece, mas sem te aperceberes abres brechas na carapaça que te protege e a Força emana de ti. Julgo que é quando estás mais descontraída.

— Como é que eu sei que as leituras são diferentes do habitual? Lembra-te, não sei pilotar uma nave. Então estás constantemente a fazê-lo, a procurar essas brechas… para me sentir. Isso é desleal!

Apareceram linhas de comando no monitor azul. O computador estava a fazer as leituras habituais do aquecimento dos motores antes de uma descolagem. Parecia-me tudo normal, uma lista de verificação que estava a ser conferida, sem que nada houvesse a apontar.

— Quando acontecer alguma coisa fora do habitual, vais notar, acredita em mim. Tu é que estás a ser desleal comigo, ao fechares-te dessa maneira.

— Está bem, vou tentar o melhor que souber. Eu não me fecho voluntariamente. Acontece. Não te sei explicar…

O painel cobriu-se de luzes coloridas. A nave abanou e ergueu-se no ar, oscilando de um lado para o outro, enquanto os apoios que a tinham mantido no solo eram recolhidos com mais estalidos metálicos e rangidos.

— Prepara as coordenadas… À medida que foste ficando mais consciente, ganhaste essa habilidade, de te fechares à minha perceção. Se no início o fazias involuntariamente, agora proteges os teus segredos sabendo exatamente o que estás a fazer.

— Quais coordenadas? Estou a ficar mais imprevisível, é isso?

— As coordenadas do computador de bordo. Vão aparecer daqui a momentos… Preciso de inseri-las no sistema de navegação. Sim, diria que mais imprevisível.

A nave elevou-se lentamente, ultrapassou os limites superiores do hangar. Da enorme janela conseguia ver as cúpulas, os terraços e os telhados de Mos Eisley. O monitor piscou, a lista de verificação foi substituída por cinco longas linhas, compostas por números e figuras geométricas.

— Estão aqui as coordenadas. O que faço agora? Queres dizer que podes estar quase a quebrar o meu mistério?

— Carrega nesse botão verde, ao lado do monitor. Só quebro o teu mistério se tu me deixares. Creio que essa mecânica ficou clara. Nunca te poderei alcançar sem que tu mo permitas, mesmo que faça leituras ocasionais da tua aura em momentos de distração.

Carreguei no botão verde e ele agarrou-se a um comando prateado, de forma circular, que lhe permitia dirigir a nave. Puxou o comando para si e fiquei colada às costas da cadeira, à medida que a nave subia pelos céus azuis de Tatooine.

— Devo ficar descansada quanto a esse ponto?

— Absolutamente. Sei que teremos as nossas respostas em breve, não é assim?

— Não brinques comigo! – disse, a apertar os dentes.

— Nunca brincarei contigo. Posso perder… Já te tinha dito como és poderosa?

Vencer a atmosfera foi rápido. De repente, os céus ficaram negros, cravejados de múltiplos pontos luminosos.

— Já… Já me tinhas dito – murmurei, extasiada com o espetáculo que se abria ante os meus olhos.

A beleza era impossível de descrever com minúcia, ou sequer com a emoção real que me assaltava naquele momento revelador. A minha demanda particular, com todos os medos, dúvidas, anseios e rancores, era insignificante face ao Universo infinito e vazio que se estendia em recessos escuros onde nada existia, a não ser um ulterior e esmagador silêncio.

A nave deu uma guinada para a direita e pude ver Tatooine, o planeta vermelho e alaranjado, no canto da enorme janela da cabina. Deixei-o de ver no pestanejar seguinte e senti uma pontada de melancolia. Nunca mais iria voltar àquele deserto onde tinha nascido para aquela existência.

Se tinha nascido antes, e muito provavelmente fizera-o, não era um evento tão relevante como o meu segundo nascimento em Tatooine.

Olhei para as estrelas. Eram as mesmas que eu tinha varrido, naquela noite, enquanto viajava pelo deserto gelado. Piscavam indiferentes ao meu olhar maravilhado, sem qualquer mossa que eu, na minha louca imaginação, pudesse ter causado. Fechei os olhos e dentro de mim também existia um Universo sem fim…

— Cleo, continuo a precisar de ti.

Endireitei-me na cadeira com um salto. O cinto magoou-me os ombros.

— Vamos saltar para o hiperespaço. Dá-me as novas coordenadas.

O monitor apitou após os segundos cálculos e carreguei outra vez no botão verde. Luke, por sua vez, carregava em teclas do painel que tinha defronte, enquanto segurava no comando prateado com a mão esquerda.

Na janela da cabina as estrelas transformaram-se em riscos brancos, cada vez maiores e cada vez mais rápidos, até se fundirem em riscos únicos. Com um solavanco, a nave começou a viajar à velocidade da luz e o espetáculo que me fascinara transformou-se num borrão cinzento desengraçado.

Ele desapertou o cinto.

— A viagem até Coruscant vai levar algumas horas. Atrás existe um compartimento para passageiros que podes utilizar para descansar.

Não me sentia cansada, mas percebi que ele não desejava a minha companhia. Mais uma vez tinha-o deixado apreensivo, ofendido e desiludido. Desapertei o meu cinto e levantei-me.

— Está bem, vou aproveitar para dormir um pouco. Quem sabe o que nos espera…

— Mais tarde irei ter contigo.

Não o iria fazer, só quis parecer simpático. Não que me tenha incomodado, com ele havia sempre uma luta entre sombras, provocada por mim, por isso não me podia queixar de o estar a afastar em todas as tentativas de aproximação.

Entrei no pequeno espaço mobilado com poltronas, uma mesa, bancos e armários pregados na parede. A porta estreita fechou-se atrás de mim. Estendi-me numa das poltronas e olhei para o teto.

Ele nunca mais chegava. Adormeci pouco depois, de tédio.


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Notas finais do capítulo

Mos Eisley é um lugar icónico em Star Wars - não podia faltar nesta história, ainda para mais quando estamos em Tatooine. Ou prestes a sair desse planeta.
O que acharam da conversa entre o Luke e a Cleo, em que se misturaram indicações de pilotagem de uma nave e considerações sobre os mistérios dela?
A Cleo começa a deixar escapar pistas de que tem memória de alguma coisa, só que ela receia que o Luke ache estranho que ela saiba tanto sobre ele e os seus companheiros de guerra, quando não sabe explicar como conseguiu essas memórias.
A viagem para Coruscant começou...

Próximo capítulo:
Um acontecimento inesperado.



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