O Sussurro da Cerejeira escrita por Lunnarea


Capítulo 1
A Efêmera Flor


Notas iniciais do capítulo

Bem, assim como disse no disclaimer, a história foi escrita para o 8º Desafio do Café com Letra (Ou CcL, se preferir), que chama-se Café da Tarde.
Espero que gostem do que lerão.



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Desde quando o altar foi erguido no topo do monte o seu deus recebia as preces de seus seguidores, dia após dia alguém subia e lhe pedia algo, ora ou outra, alguém vinha agradecer por algo que ele sequer tinha feito, afinal, ainda não largara sua preguiça e assim não fazia nada por seus escassos seguidores.

Mesmo assim pouco se importava com a quantidade daqueles que lhe cultuavam, nem mesmo desejava estar ali vivendo a pacata vida que lhe concederam a ele, e assim ele a teria pelo resto da eternidade. Ansiava que ela fosse tão efêmera quanto a flor de uma cerejeira que se desprendeu da árvore.

Em certo amanhecer, detrás da pedra vinha tristonho um rapaz em direção ao pequeno pavilhão do altar. O deus já observara o seu templo insólito durante dezenas de primaveras, entretanto, ele nunca viu uma cena daquelas, de fato despertou sua atenção e, ao contrário do que fazia na maioria das vezes, ajeitou-se sobre a almofada e esperou o que aconteceria a seguir.

O sino de vento ressoou quando a porta leve foi aberta, a moeda tilintou apôs ser lançada entre um dos vãos da caixa de oferendas e, quando achou que havia oportunidade, ele fez o seu pedido ao deus. Disse que apenas queria paciência, nada que fosse além disso, e assim pode se ouvir o piso ranger com seus passos de despedida. Intrigou o deus com tal prece, nunca lhe rogaram algo do tipo, mas, pela primeira vez, decidiu atender o pedido que lhe foi feito. A paciência é como o aço, e o fogo é como a adversidade que tem de se enfrentar, tanto o aço sem fogo e a paciência sem adversidades não existem.

O resto do entardecer passou como a fria brisa na primavera, que logo cede seu lugar para o verão, e o amanhecer foi agraciado pelo sol outra vez. Antes mesmo de o astro ascender por completo para além do horizonte o menino havia voltado para o santuário, anunciou sua entrada com o ruído desagradável do deslizar da porta amadeirada e acendeu o incenso. A divindade, após alegrar-se imensamente com a chegada dele, afinal, ele não pode aquietar-se desde a última visita, que também foi a primeira, daquele que acabara de chegar. Desta vez o templo não era o mesmo, não para aquele que foi visita-lo neste dia pois, ainda que tudo estivesse como antes o ar rarefeito do cume da montanha parecia ter se expandido para dentro do local. O homem de cabelos que mais pareciam fios de seda contemplava a garoa caindo dos céus pela abertura dentre as paredes, estava rodeado por serenidade o que confirmava ainda mais a sua presença divina no recinto.

Pela primeira vez em sua existência ele revelou-se para alguém, o vento uivou apenas uma vez e logo agitou os sinos que ressoaram com sua chegada. Sentou-se na mesa e não olhou sequer uma vez para o rapaz, sabia que ele não conseguiria conter sua ansiedade por muito tempo, e assim foi, em curtos instantes o outro também assentou e ficou quieto, não ousou dizer qualquer palavra. O silêncio mórbido começava a surgir, embora o badalar dos guizos no exterior da construção, mesmo que de modo desapercebido.

— Existem aqueles que pedem para serem guerreiros, mesmo sabendo que terão a vida tão fugaz quanto as flores rosadas da cerejeira — Bebeu o chá que exalava o aroma inconfundível do gengibre. —, outros querem experimentar o suco da cereja já maduro, de cor e sabor intenso, o primeiro amor — Sentiu a eventual ardência que a bebida causava. —, tem também os que se arrependem por terem mordido a doce fruta, que sangra como os lábios de uma amante, e também aqueles que simplesmente pedem fartura e fortuna, assim como a primavera traz com as flores rosadas — Pôs o objeto sobre a mesa — Mas, dentre todas as partes da árvore, você me pede a semente, que é tão pequena quanto o grão do cascalho, mas que se torna muito maior do que as rochas que o fazem, antes serve de comida aos pássaros e depois serve como casa para eles, antes é ignorada pelos homens, depois é contemplada pelos deuses. Tens certeza de que é isso que quer?

Não hesitou uma única vez em confirmar seu pedido, não puderam nem mesmo se entreolhar, e assim que o fizeram o outro esboçou um sorriso discreto, logo a primeira prova surgiria perante ao rapaz, mesmo que esta fosse a mais difícil delas, ela ainda se manteria na ordem, afinal, a muito o deus planejou esse roteiro para tal situação e não seria por piedade ou bondade que isso seria mudado.

— Pois bem, não lhe darei o que pedes — Tragou o resto da bebida e apontou em direção a porta. —, vá para casa, rapaz.

E assim foi feito, ele se levantou do chão, caminhou pelas tábuas e partiu pela porta. Imóvel o deus olhava de dentro do templo, aconteceu do mesmo modo que havia presumido desde quando ele havia atirado a moeda no outro dia. Pôs a mão dentro de seu manto e tirou de lá um gato branco, este que o continuou fitando-o mesmo após ser posto sobre a mesa.

— Eu lhe disse, ele era uma muda que secou logo no primeiro inverno e além disso, não deu nem mesmo um gole no chá. — Enrolou um fio de seu cabelo no dedo.

— Certamente, afinal, você não pegou leve com ele, suas falas foram muito confiáveis— Deitou sobre a superfície quente da madeira, em um ângulo de onde podia se ver bem a face do deus.

— Eu não tenho culpa quanto a isso, eu não disse que seria fácil, ele sequer tentou relutar contra minha decisão. — Tentou contornar tal situação enquanto desviava do olhar julgador do espírito.

— Sim, sim, não é você que diz que durante a ventania o bambu se curva, mas o carvalho é arrancado pelas raízes? — Estreitou os olhos.

— Eu digo também que a montanha não pode tapar o sol por mais grande que seja. Isso não vai nos levar a lugar algum, sabe disto, não é? —Completou uma das xícaras sobre a mesa, deixando com que, novamente, o agradável cheiro escapasse de dentro do bule. — Vamos beber mais chá, está bem?

— Se você não ficar dizendo que você nunca mais vai fazer nada pelos humanos, mesmo que você ainda faça depois, eu talvez aceite seu convite — Sentou-se na almofada. — Mesmo que eu não possa mais tomar chá nessa forma.

— Sempre me esqueço disso, não é ao todo minha culpa, afinal, você quase nunca aparece por aqui, e quando o faz, logo vai embora, antes mesmo d’água esquentar — Suspirou e escondeu ambas as mãos dentro da manga de sua veste. —, Por que quer tanto que eu ajude algum deles?

— Você foi feito para isso, mesmo que não queira fazer. Sei bem que preferiria ser um deles, livre para correr por aí, sem todo o fardo de ser uma divindade, só que, muitos dos homens seriam gratos por terem uma vida como a sua, sem preocupação alguma, sem riscos ou problemas para enfrentar. — Passou a língua em sua pata felpuda, desvencilhando qualquer coisa que se prendeu dentre seus pelos — É muito mais fácil ser uma pedra do que ser uma vidraça.

— Pode parar de dizer as coisas como provérbios? Que não são seus, por sinal.

— Você vive fazendo o mesmo. — Debochou enquanto desviou a atenção para o farfalhar das folhas no exterior.

— Acho que isto é o que sobrou da minha convivência com você por todos aqueles anos “pré-gato” — Acompanhou o olhar do animal. — Não tenho culpa se pude aprender com o melhor.

O gato levantou-se do assento enquanto esticava seus membros, era o prenúncio de sua ida. Respirou uma última vez o ar do recinto que deixaria por tempos, até a outra primavera soprar contra o monte e florir os campos, deixando com que seu frescor viesse depois do inverno gélido que ecoava pelos vales. Com suas patas almofadadas ele passeou pelo assoalho do templo em rumo a porta que foi deixada aberta, viu as flores rosadas que imitavam a neve partirem para o mar e resolveu acompanha-las.

— Falará com ele uma outra vez? — Fez a última de suas questões para a divindade.

— Só se sabe quando uma árvore realmente morre quando outra primavera desponta, se novos brotos surgirem em seus ramos ela poderá florescer outra vez. — Tragou o chá silenciosamente de uma única vez, o gato pode não ter ouvido a resposta para sua última questão, mais cedo ou mais tarde ele ouviria o sussurro da cerejeira em suas orelhas e descobrirá por si só.

Logo após a despedida do grande felino a porta foi empurrada delicadamente até fechar-se por completo, não deixando uma única brecha para o ar frio das montanhas entrarem por ela. A rotina monótona de observação do deus voltou ao normal, com aldeões subindo pelo monte pouco a pouco, desacompanhados ou não, e fazendo suas preces para ele, haviam também, assim como antes, aqueles que agradeciam por bênçãos não concedidas, por dádivas conquistadas, mas nunca houve outro que lhe pedisse por paciência até o desabrochar da flor.


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Notas finais do capítulo

Então, o que acharam...?
Se perceberam qualquer erro podem relatar-me, está bem...?

Obrigada por lerem