Hazel & Gretel escrita por Bruise


Capítulo 1
✺. ÚNICO


Notas iniciais do capítulo

✩ Essa história foi escrita para o 8º desafio do Café com Letra (CcL) intitulado "Café da Tarde" e inspirada no conto de João e Maria dos irmãos Grimm.

✩ Alph (ID: 626478) me ajudou a construir algumas descrições.

A história não foi betada, portanto, se encontrar algum erro peço que digam nos comentários para que seja consertado.



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O farfalhar das árvores da floresta era o ruído que mais dificultava Hazel e Gretel de escutarem o que o pai e a madrasta conversavam por trás da parede de madeira que dividia os quartos da cabana. Constantemente, as meninas eram o motivo das brigas e o alvo dos deboches que vinham da mulher que seu pai havia casado. Aqueles eram tempos de fome, mas também eram tempos de inveja, ciúme e maldade.

Não havia um dia sequer que as gêmeas não fossem o assunto favorito do café, almoço ou janta. A madrasta queixava-se da miséria e fazia questão de frisar que a responsabilidade das meninas deveria ter acabado quando a mãe das duas teve seu fim. Para a arrogante e egocêntrica mulher, Hazel e Gretel eram um desperdício de espaço, comida e tempo.

No começo, o pai teve resistência em aceitar, mas para a infelicidade das meninas, já se fora a época em que elas eram o bem mais precioso do homem. Foram sido deixadas no esquecimento as lembranças que um dia fizeram Hazel e Gretel sorrir.

Aproximando a orelha da madeira, elas conseguiram escutar parte da conversa:

— Eu não aceitarei mais as duas em nosso lar — disse a madrasta em um tom baixo, mas suficientemente alto para que as meninas escutassem. — Levaremos as duas para a parte mais densa da floresta com um pedaço de pão e as abandonaremos. Eventualmente, serão comidas por lobos ou morrerão de fome.

— O que o vilarejo pensará de mim como pai se o fizer? — questionou-se o pai.

— O que pensarão de você se não o fizer? — contestou a madrasta. — Pense bem, querido. As meninas que você sustenta não passam de uma bagagem em seu casamento. Quer bastardas em sua família? Quer que falem de você e da sua inutilidade como marido? De mim? Ah, querido... Falarão de mim... Coitado do filho homem que te darei, terá uma mãe mal vista pelos outros e pior! Não será seu primogênito. Você se orgulharia disso?

A mulher o cercava e criticava, insistindo em seu ponto de vista e o homem, tão facilmente manipulado, de pensamento fraco, aceitava tudo o que dizia.

— Hazel — chamava a irmã com os olhos transbordando em lágrimas —, eu não quero ser abandonada.

— Você não vê, Gretel? — retrucou com amargura na voz. — Nós já fomos abandonadas. É apenas tempo para que sejamos oficialmente largadas na floresta.

— O que faremos? Eu não quero morrer de fome.

— Acalme-se — sussurrou. — Eu sei o que fazer.

Não se passou muito até que os pais chegassem a um consenso. Poucas horas mais tarde, no crepúsculo, a madrasta bateu à porta e entrou com um sorriso no rosto.

— Levantem-se, meninas — anunciou a mulher extasiada. — Iremos à floresta buscar lenha para a fogueira da noite. Pegue cada uma um pedaço de pão para evitar que a fome acabe com suas forças durante o longo caminho que teremos a trilhar!

Com uma troca de olhares hesitantes, Gretel e Hazel pegaram os últimos pedaços de pão que restavam. Elas seguiram a madrasta e o pai para fora da cabana e adentro da floresta. Após desviarem-se da trilha, Hazel passou a partir os miolos de pão e jogar atrás de si enquanto seguia o caminho dos pais. Eles fizeram uma fogueira para as meninas e mandaram se acomodar.

— Nós iremos por entre as árvores cortar madeira. Quando acabarmos, voltaremos para buscá-las — avisou a mulher.

Assim que os pais desaparecerem, a noite trouxe a escuridão para a floresta. Os barulhos dos animais e as sombras ficavam mais intensas, os ruídos dos corvos ecoavam por entre as árvores. O odor de podridão dos animais em decomposição tinha cheiro de morte e fazia arrepios subirem pela coluna das meninas. Elas esperaram que talvez o pai mudasse de ideia. Talvez ainda houvesse amor ou afeto dentro do homem. Encaravam as fendas entre as árvores úmidas e cheias de fungos na esperança de que o barulho de folhas sendo pisoteadas grosseiramente revelasse seu progenitor. Por tempo que pareceu infinito, elas esperaram em vão.

— Como voltaremos para casa, Hazel? — perguntou Gretel com medo.

— Seguiremos o rastro de pão que eu deixei cair! — respondeu.

As duas meninas apagaram a fogueira e procuraram as migalhas, mas após uma ou duas, um tapete negro amorfo no chão as fizeram dar passos para trás. Um ruído alto e agudo transformou o tapete em um ninhal de corvos com brilhantes olhos vermelho-sangue que haviam comido todas as surradas migalhas, acabam com a única chance que tinham de retornar à cabana.

Os animais avançaram na direção das meninas. Elas soltaram gritos agudos e tentaram se proteger com a mão na frente dos rostos, mas os corvos bicavam e feriam qualquer pedaço de pele que viam pela frente, até que a força que elas tinham para se defender se esgotou e caíram no chão aos prantos, esperando que os pássaros fossem embora. As roupas banhadas de sangue e rasgões deixavam os ferimentos expostos que ardiam a pele.

— Hazel! — Gretel choramingou. — Estamos perdidas!

— Acalme-se, Gretel. — A menina abraçou a irmã. — Daremos um jeito. Isso não vai ficar assim.

Enquanto o sentimento de solidão atingia o peito de Gretel, a amargura tomava conta de Hazel. Não era como sua mãe que havia falecido, mas ainda as amava. Era abandono. Deixadas para trás. Para os lobos, para a fome. O pai das gêmeas havia sido perfeitamente capaz de largar parte de seu sangue no meio da floresta de maneira fria e pacífica.

Hesitantes, as duas meninas seguiram de mãos dadas por entre as árvores, por caminhos desconhecidos e escuros. Elas caminharam por horas, até que seus pés não as aguentavam mais de pé, formigando e queimando, até que o suco gástrico corroesse lentamente as paredes estomacais de tanta fome e até que a escuridão por entre as árvores parecesse mais familiar que a própria morte. Elas seguiram perdidas, esfomeadas, em círculos por incontáveis minutos. Talvez houvesse se passado dias, mas o topo das árvores era tão alto, as folhas tão grandes e a neblina tão densa que não conseguiam mais ver a luz do sol. Seus pés ensanguentados, faces feridas e vestidos rasgados deixavam claro: estavam completamente abandonadas. Eram órfãs, entregues ao destino. Um destino incerto e que ainda não havia providenciado a morte certeira para dar as gêmeas o seu fim.

Então elas avistaram uma clareira. A luz que incendiava as fendas entre as árvores cegava-as à medida que se aproximavam. Sem forças para apressarem o passo, mas, ainda assim, forçando suas pernas ao limite, as meninas correram para o local e se jogaram na grama ao saírem da floresta.

Por um tempo indeterminado, elas se mantiveram deitadas no verde reluzente daquela grama. Até que Gretel com seu apurado olfato sentiu o cheiro. Era doce como glacê que um dia havia provado no bolo que sua mãe biológica fez, e vinha da grama que seu rosto estava colado. Gretel arrancou uma folha e cheirou mais de perto, constatando que aquilo só podia ser alucinação, mas a grama era feita de glacê.

— Hazel! — Gretel sacudiu a irmã. — Hazel, veja, a grama é feita de glacê!

— O que você está falando? — perguntou a menina. Gretel puxou um punhado de grama do chão e percebeu também que a terra abaixo era feita de bolo de chocolate. — Não é possível!

As duas meninas começaram a enfiar o chão comestível em suas bocas, famintas.

— Gretel, olha! — gritou a criança engatinhando na direção de um caminho de pedrinhas que logo ela descobriu serem pedras de açúcar. As flores que adornavam eram feitas de algodão que se desmanchava na boca com um gosto doce, o tronco dos pequenos arbustos era de chocolate negro.

As gêmeas se atiraram e começaram a experimentar tudo que havia naquela clareira. Até que chegaram a uma cabana que não era nada convencional. O telhado era feito de caramelo, as paredes de torta e as janelas de pipoca colorida com doce de leite. Elas comeram até ficarem cheias e se deitaram na entrada da porta para descansarem com o sol revigorante esquentando suas peles.

Mas aquele momento não durou para sempre como Hazel e Gretel esperavam. De repente, a porta da casa de doces se abriu.

— Ora, ora, ora — murmurou a voz de uma mulher. Hazel e Gretel se assustaram e levantaram em um pulo, ficando de frente para a dona da casa. Era uma mulher baixa de cabelos grisalhos, pele enrugada e trajava um avental colorido e bordado com pirulitos. — Crianças! Que as trouxeram aqui, meninas? Entrem, não fiquem do lado de fora, tem mais doce aqui dentro!

Hazel e Gretel se entreolharam ansiosas e, dopadas pelo sabor doce e a curiosidade, correram para dentro da casa da mulher, e acabaram descobrindo que tudo era feito de doce naquele local.

A mulher serviu fornadas de bolinhos, biscoitos e copos cheios de achocolatado. As meninas que já estavam cheias, agora estavam enjoadas de tanto doce. Elas pediram para a tão gentil moça parar, mas a mulher continuava a trazer variedades para a mesa. As guloseimas que antes agradavam as meninas, agora estavam tendo um gosto estranho. O cheiro ficou parecido com o de terra com estrume e o sabor ficou similar a sangue: ferrugem e sal.

— Não se acanhem, vocês estão muito magrinhas — disse com um sorriso no rosto. — Comam o máximo que puderem.

— Por que a senhora quer tanto que gente coma seus doces? — Gretel perguntou.

— Ora, que pergunta besta! — A mulher balançou a cabeça com um sorriso simpático, mas que logo se transformou em um sorriso sádico. Ela foi até a porta e a trancou com uma chave enferrujada, enfiando-a no bolso de seu vestido que uma hora já havia sido colorido, mas à media que a visão das meninas ficava cada vez mais turva, o vestido perdia sua cor, mostrando sua verdadeira forma: rasgões e sujeira acompanhada de um cheiro podre. Seus olhos se tornaram fendas negras assustadoras e seus dentes transformaram-se em presas amareladas extremamente afiadas. Sua face ficou muito branca com um aspecto de rachaduras ressecadas. Ela bateu com as mãos, agora cheias de buracos de onde larvas saíam de sua pele, na mesa e Hazel e Gretel notaram que as unhas haviam se transformado em longas garras sujas de terra. — Para comê-las, é claro! — grunhiu.

As duas meninas saltaram da cadeira e se afastaram o máximo possível, até que encontraram a parede da cabana batendo contra suas costas.

— Por favor, senhora, não nos devore! — gritou Hazel.

— Nada disso — respondeu a bruxa. — Crianças é a minha refeição favorita.

— Nós fomos abandonadas, senhora! — choramingou Gretel, pondo-se a chorar. — E agora seremos devoradas, pois nossos pais nos deixaram para morrer de fome.

E então a bruxa hesitou.

— Morrer de fome? — perguntou. — Por que seus pais as deixaram?

De repente, Hazel soube o que responder.

— Porque eles não gostavam de nós. Eles nos levaram para dentro da floresta e nos abandonaram lá. Ficamos perdidas por dias, morrendo de fome, sede e cansaço. Nossos pais nos jogaram fora.

— Por isso que vocês estão aqui! — A bruxa esboçou um sorriso macabro e avançou nas meninas.

— Senhora, por favor, não nos coma! — Gretel gritou.

— E eu tenho outra opção?

— É claro — argumentou Hazel com esperteza. — Veja, senhora, nós somos pequenas, fracas, ossudas. — Apontou para o braço de sua irmã e o próprio. — Não vamos satisfazê-la. Mas sabemos quem vai.

— E quem vai satisfazer minha fome?

— Duas pessoas que moram na cabana do outro lado da floresta — disse Hazel. — Nós não sabemos como chegar lá, mas garanto que são grandes, cheios e fortes. É melhor que duas pequenas crianças.

— Do outro lado da floresta? — indagou a bruxa, que agora voltou a forma humana menos macabra.  — Eu sei como chegar ao outro lado.

— Nos mostre o caminho e nós mostraremos as pessoas, senhora.

Logo partiram. As meninas seguiram a bruxa por entre as árvores que se abriam e retorciam à presença da feiticeira, dando forma a uma trilha, onde caminharam juntas. Horas se passaram até que o fim da floresta foi avistado e, de longe, a cabana, no mesmo lugar de sempre. Já estava escuro, mas Hazel e Gretel não estavam mais aliviadas por voltar.

O doce da bruxa havia transformado as duas meninas em algo que nem as duas podiam nomear, algo sobrenatural e sobrehumano, com certeza, algo que não deveriam ser. Os olhos, que antes pensaram estarem cegas, agora permitiam-lhes ter uma visão ampliada e clara, até mesmo no escuro. Suas delicadas mãos já não eram as mesmas e, similares às da bruxa, estavam mais ásperas, resistentes e grossas. Os ossos marcavam a pele das garotas e a pele estava branca como papel. Seus instintos mais primitivos estavam atiçados. A fome, a fúria, o ódio.

Elas haviam se tornado a doce e irônica vingança que os pais mereciam.

A porta da cabana se abriu com um rangido. A bruxa seguiu seu caminho.

— Venham, crianças. Sirvam-se.

E então as garras sujas de terra surgiram de seus dedos, os dentes rasgaram a gengiva e o apetite monstruoso deu lugar ao que antes era Hazel e Gretel. Dilacerando a carne fresca e quente daqueles que um dia as deixaram para trás. As paredes da cabana serviram de tela para os esguichos de sangue fresco pintar ao som dos gritos de horror e pânico que podiam ser escutados de longe.

— Seus pais não vão mais abandonar vocês.


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Notas finais do capítulo

IMAGEM DE RODAPÉ: JORGE MASCARENHAS (http://jorgemstudio.com/)

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