Fixing escrita por Marylin C


Capítulo 1
Único: the truth will be found.


Notas iniciais do capítulo

Oioi!

Acho que já falei o que queria no disclaimer. A tradução do título desse capítulo é "a verdade será encontrada". No mais, é isso. Espero que gostem!



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De todos os seres mágicos habitantes do longínquo arquipélago de Iscah, as fadas estão entre os mais poderosos. Perdem apenas para os vários tipos de feiticeiros presentes naquelas ilhas e, claro, para os dragões. Imagino que todos devem se interessar muito mais por estes últimos que por simples fadas, não é? Principalmente pelo fato do reino dragão se encontrar nas profundezas do ponto oceânico equivalente ao encontro entre quatro pequenas ilhas, além de... Espere, esta não é uma história de dragões. Não totalmente, pelo menos.

Todos neste mundo sabem, ou pelo menos deveriam saber, que fadas não são aqueles minúsculos seres dotados de asas que trazem a alegria e a beleza às pessoas. Não vivem apenas de emoção em emoção, não usam roupas feitas com folhas ou flores e não gostam de objetos brilhantes. Bom, na maior parte do tempo. A verdade é que, neste lugar, as fadas são apenas incompreendidas. Talvez por suas cidades serem extremamente ocultas ou pelo fato de uma pequena parte gostar de aventurar-se pelas cidades dos humanos e, bem, apaixonar-se por eles. Seus métodos de disfarce e sedução são quase infalíveis; temos, portanto, o motivo do nascimento de crianças humanas com orelhas pontudas e asas malformadas. Geralmente um feiticeiro é contatado para retirar a má-formação, já que eles são mestres em magia e anatomia, junto com... Oh, esta também não é uma história de feiticeiros.

E não, não pense você que contarei a história de como uma fada tragicamente apaixonou-se por um humano. Esta pode ficar para outro dia. A história que quero contar hoje é a de Ysolt Sionann. Conhece? Não? Ótimo. Ysolt Sionann é uma fada que perdeu as asas. É a matriarca de todas as gerações de fadas sem asas do arquipélago de Iscah e a causa de Liebling Seidensticker não ter perdido a vida ao afogar-se em mentiras. Se lembra agora? Ainda não? Céus, imagino que você não more em nenhuma das cidades onde esta história foi contada pelos bardos. Muito bem, vamos começar.

Seguindo sempre para o norte da ilha Iscah, a maior do conjunto, e atravessando o Mar Iluminado, sem grandes problemas se chega às terras emersas de Sísia, a segunda maior ilha do arquipélago. Andando sempre a oeste pela costa, o Campo de Soláris surge à sua frente. Caso o viajante seja detentor dos conhecimentos profundos do universo, poderá passar ileso e chegar até as Cidades das Fadas. Localizadas em pontos estratégicos da costa e da floresta, todas são extremamente bem guardadas de olhos bisbilhoteiros por magia e sentinelas de plantão a cada momento. Poucos vivos podem afirmar já ter visto uma daquelas cidades ou seus habitantes em sua forma plena, mas as lendas de grandes tesouros e espelhos mágicos serviam de combustível para a imaginação popular. Por causa das canções épicas que os bardos costumavam espalhar pelas ilhas, pintando imagens das riquezas e magia supostamente presentes naquelas cidades, os guardas daquela classe de seres tinham muito trabalho em impedir humanos curiosos e mercenários seddars de entrar em sua civilização. Barcos, quando vistos no horizonte, possuíam somente dois destinos possíveis: o retorno ao lugar de onde vieram ou o fundo do oceano.

De pé em seu posto na praia de areia branca, Ysolt Sionann divagava sobre as possibilidades que sua vida praticamente imortal poderia ter. Os pés descalços afundando na areia fria do começo da manhã, ela enrolava um dos cachos negros em um dedo alvo enquanto suas asas, adornada com padrão parecido ao das borboletas monarca, se agitavam ante o balanço do vento. Sua mãe já a proibira de ser uma daquelas fadas que se apaixonavam por humanos e fugiam com eles para nunca mais voltar a ver a família, além de vigiá-la quase que constantemente para que não atravessasse o campo que separava seu país da civilização humana. Mas, diferente do que sua mãe pensava, não era a humanidade que a interessava. Na verdade, a imensidão do azul à sua frente é que a atraía como uma lamparina atrai mariposas, incluindo a parte em que o inseto morre queimado ao atingir seu objetivo. Desejava ardentemente conhecer outras ilhas além de sua própria desde que se entendia por gente, e usualmente divagava sobre isso quando deveria vigiar sua parte da costa. Aquele tinha tudo para ser mais um dia comum, quando uma silhueta apareceu em meio à neblina que tomava conta do horizonte. Um navio.

O protocolo padrão dizia que ela deveria lançar chamas vermelhas no ar, alertando os outros guardas e fazendo-os ir junto com ela até a embarcação para negociar ou afundar. Ysolt realmente pretendia fazê-lo, até mesmo produziu o fogo necessário com a palma da mão, mas então uma ideia passou por sua cabeça. Alguém disse uma vez que a maioria das ideias vem do trabalho árduo e pensamento cauteloso, mas algumas, como a que a fada teve naquele momento, vêm de improviso, rápidas e belas como uma flor de fogo. Ao invés de lançar as chamas para cima, ela apagou-as momentaneamente. O que pretendia fazer era arriscado; algum dos outros sentinelas poderia avistá-la, e seria condenada por traição; os tripulantes desconhecidos poderiam reagir agressivamente, de modo que seria obrigada a afundar o navio e estragar a aventura prestes a começar.

Contrariando todas as expectativas, Ysolt calçou as sandálias e respirou fundo para concentrar-se. Diminuiu até atingir o tamanho de um dedo médio humano e só então levantou voo, a mochila que continha seu almoço para aquele dia e seu livro de magia pendurada sobre o ombro. Deste modo, ficaria mais difícil de ser avistada.

Acendeu novamente o fogo em sua mão, segurando a alça da bolsa para que ela não caísse, e voou as cinco milhas que a separavam da embarcação bastante próxima às ondas, para que nem as sentinelas da ilha nem a tripulação a visse. Notou que aquela era uma caravela (passara mais tempo que o aceitável estudando os diversos tipos de navio que os humanos produziam) de velas brancas construída em madeira escura. Uma sereia esculpida adornava a proa, mas nenhum som que indicasse vida poderia ser ouvido. A fada franziu as sobrancelhas e se dirigiu ao topo de uma das velas, para ter uma boa visão da embarcação. O cheiro de sangue seco e podridão a deixou mais enjoada do que o corpo sangrento de um rapaz de cabelos loiros e pele bronzeada que claramente havia sido empalado por garras enormes enquanto se pendurava nos cabos das velas, possivelmente tentando escapar.

Ysolt voou até a popa, voltando ao seu tamanho normal com nariz e boca cobertos pela manga de sua camisa de algodão cru, e pôde contar pelo menos cinquenta corpos estraçalhados e com membros faltando. Notou então que um dos mastros havia tombado, e foi até lá para examiná-lo. Não tocou em nada, mas sua visão crítica de quem fora autora de muitos naufrágios a disse que aquele era um trabalho de dragões; bom, os répteis super desenvolvidos realmente nunca tinham sido fãs de humanos, mas geralmente mantinham a civilidade. A menos, é claro, que ameaçassem seus ninhos.

A fada então ouviu um gemido fraco e o ranger de uma porta se abrindo. Voltou o olhar para a porta que ela sabia levar à cabine do capitão, de onde uma mulher de revoltos cabelos purpúreos que se tingiam de marrom por causa do sangue que escorria de um grande rasgo em sua nuca saíra arrastando com dificuldade o corpo inerte de um rapaz de pele morena. As lágrimas que escorriam do rosto dela espalhavam a fuligem e o sangue seco por todo o seu rosto, que parecia lutar com as últimas forças que lhe restavam ao levar o corpo para tomar ar fresco. Ela tombou no chão logo que o olhar das duas se cruzou, caindo de exaustão sobre o rapaz.

Ysolt sobressaltou-se e correu até ela, já tendo apagado a chama que produzira fazia algum tempo. Tirou-a de cima do corpo que, ela notou, ainda respirava, e a pôs ao lado dele. Aproximou-se da ferida em sua cabeça, analisando-a: definitivamente obra de um dragão.

Rapidamente abriu a bolsa para procurar um feitiço de cura, quando a mulher puxou sua manga de leve. A fada atentou para ela, que respirou fundo e pronunciou uma única frase na linguagem típica da ilha de Iscah antes de perder a consciência:

— Ele primeiro.

Agora com dois corpos inertes, Ysolt engoliu em seco e assentiu consigo mesma. Analisou os ferimentos do rapaz: um braço destroçado e que perdia muito sangue, ferimentos leves no rosto e na nuca; uma ferida profunda que, a julgar pela respiração entrecortada, atingira os pulmões. Primeiro deveria estancar o ferimento de seu braço. Ou seria cuidar para a respiração dele normalizar-se? Céus, ela estava em pânico.

Respirou fundo e fechou os olhos por alguns milésimos: ela podia fazer isso. Usou o feitiço para estancar o sangue do braço enquanto procurava algo para curar suas feridas internas; por sorte, sua mãe sempre a obrigava a levar um vidro da poção que restaurava tecidos onde quer que fosse devido à sua tendência a tropeçar nas próprias asas, muito maiores que as da maioria das fadas porque Ysolt detestava ter que apará-las a cada três meses junto com seu cabelo. Preferia manter seus fios castanhos curtos e suas asas longas, principalmente porque asas maiores trazem mais velocidade e poder... Mas isso não vem ao caso agora.

Usou algumas gotas da poção em cada ferimento menor do rapaz, enquanto entoava uma pequena canção que sua mestra de magia ensinara para ajudar na cura. Para os que apresentavam riscos à sua vida, usou uma tampa da poção. Não havia mais nada que pudesse fazer por ele no momento, então passou à garota.

Ela parecia menos ferida, então algumas gotas bem aplicadas resolveram a maior parte dos problemas. Mas, para a nuca aberta, Ysolt não podia usar a mesma poção. Tecidos cerebrais necessitavam de algo mais complexo para serem curados, então voltou a folhear o livro de feitiços com rapidez. Encontrou um cântico enorme que nunca tinha feito antes, mas tinha que tentar.

Passou pelo menos alguns minutos, que para ela pareceram horas, entoando cada palavra da canção enquanto sentia o poder saindo da palma estendida sobre o ferimento da moça. Ao final de tudo, a exaustão quase a fez desmaiar. Mas Ysolt ainda tinha que fazer mais uma coisa, então levantou-se e, cambaleante, estendeu ambas as mãos para os lados de seu corpo. Forçou-se a pensar em transparência e vidros refletores, e então a caravela ficaria invisível para que ninguém soubesse de sua existência. Seus joelhos cederam assim que ela terminou, e a fada caiu sentada no chão ao lado dos únicos outros seres que viviam naquela embarcação. Riu consigo mesma, pegando um pão de dentro da bolsa e mastigando-o para restaurar suas forças. Tinha chegado até ali preparada para barganhar sua passagem até as terras dos humanos, e ao invés disso havia acabado de salvar duas vidas. Oh, como sua mãe ficaria orgulhosa. Ou não.

Depois de ter descansado algum tempo, levantou-se e conjurou travesseiros para seus dois pacientes. Camas dispensavam mais tempo e energia, então os deixou sozinhos e começou a explorar o lugar. Acabou que tinham corpos em praticamente todos os lugares daquela caravela, que poderia ter sido bela algum dia. O terrível odor de podridão e morte, além dos muitos danos que os dragões tinham feito à estrutura da embarcação, impediam Ysolt de pensar naquele lugar como aconchegante ou bonito. Jogou a âncora com um feitiço de flutuação, para que o navio não continuasse à deriva ou se aproximasse da costa das cidades das fadas.

Hesitou em entrar na cabine do capitão. Aquele era um aposento mais privado que os outros, ela sabia, além do que a moça e o rapaz poderiam ser os donos daquele lugar. Mas então deu de ombros e entrou, pensando que eles não iriam condená-la por ser curiosa. Ela salvara suas vidas, por favor!

Claramente aquele era um escritório de mulher. As rosas vermelhas ainda frescas espalhadas pelo lugar, a letra cursiva caprichada em uma carta não terminada sobre a escrivaninha, os lençóis com bordados em seda. Toques femininos que, de outro modo, não estariam presentes em uma cabine de navio.

O quarto estava parcialmente destruído: no lugar onde deveria existir uma parede de madeira com janelas, apenas um buraco onde se podia ver o oceano logo abaixo. O guarda-roupa havia sido destroçado, roupas de marinheiro e vestidos jogados pelo chão. Mas o que deixou Ysolt embasbacada foi o que encontrou no único armário que ainda estava inteiro, um cofre de navio atrás de um espelho quebrado: uma pedra roxa, escamosa e reluzente, de formato oval que lembrava remotamente um ovo de avestruz, pulsando com vida. Um ovo de dragão.

***

— Sim, nós o pegamos. — calmamente afirmou a moça de cabelos roxos enquanto sorvia leite de uma xícara azul. — Pegamos cinco, na verdade. Mas os escondemos em lugares diferentes do navio, então quando eles viessem teriam mais trabalho em encontrar todos. E aparentemente foi o que aconteceu. — ela sorriu minimamente, levemente assombrada com a própria esperteza. O olhar acusador de Ysolt não a deixou enquanto reacendia a pequena fogueira que havia mantido o ovo aquecido durante a semana. O rapaz apenas olhava para o chão, tomando seu leite vagarosamente e tentando acostumar-se a usar apenas um braço. Uma semana havia se passado desde que a fada curara os dois sobreviventes da caravela à deriva, e eles a passaram quase completamente em um estado de sonolência. Só na tarde do sétimo dia acordaram verdadeiramente, no que Ysolt não hesitou em perguntar de onde tinham vindo e por que, por toda a magia do universo, mexeram em um ninho de dragão.

— Sobre o porquê de termos feito isso, eu vou ser bem sincero. — o rapaz, de nome Fergus, finalmente se pronunciou. Seu sotaque ao falar a língua de Iscah se enrolava um pouco, o que denunciava sua origem distinta da moça. — Foi a Li quem nos convenceu de que seria uma boa ideia. — apontou para a capitã, Liebling, que abaixou a cabeça e assentiu humildemente. A fada ergueu uma sobrancelha, voltando a sentar-se no chão junto aos dois. Ela havia feito uma pequena cerimônia fúnebre para os corpos, de acordo com o que sabia sobre os ritos dos humanos, e os jogara no mar. O lugar ficou habitável novamente, e por um milagre ninguém da ilha descobrira sobre o navio.

— Por que então, Liebling?

— E-eu... Eu menti para muita gente, Ysolt. Inclusive para os meus homens. — ela hesitou, mordendo o lábio inferior antes de voltar a encarar sua salvadora — Eu só conheci a mentira como modo de se dar bem na vida. E para uma menina sem nada além de seus conhecimentos de navegação... Você sabe o quanto vale um ovo desses no lugar de onde eu vim?! — exclamou de repente, pousando a xícara no chão e apontando quase desesperadamente para a fogueira onde o ovo pulsava aquecido.

— Não me interessa. Precisamos devolver.

Os dois arregalaram os olhos, Fergus tocando de leve o lugar onde seu ombro acabava, e disseram juntos:

— Não!

— Há um acordo de não agressão entre fadas e dragões, algo de mil anos atrás. Eles não atacarão vocês se eu for junto. — Ysolt sorriu de lado, erguendo a cabeça para desafiá-los a contestar. — Vocês fizeram errado ao por vidas em jogo. Agora precisam consertar.

— Mas... — o rapaz tentou argumentar, mas o olhar obstinado da fada o calou. — Tudo bem, faz sentido. Mas como iremos?

Ela tentou explicar, mas Liebling interrompeu-a com uma fúria mal contida:

— Ela vem planejando isso desde que encontrou o ovo. Não notou os consertos que fez no navio? Os suprimentos que estocou no porão?

Ysolt apenas sorriu ante o olhar assustado de Fergus, assentindo.

— Certo, mas como conduziremos o navio? Precisamos de pelo menos cinquenta homens para poder velejar. — ele perguntou novamente. A fada então tirou um punhado de pedrinhas de dentro da bolsa e, sem nada explicar, levantou-se e começou a enfileirá-las no chão do convés. Sorriu de lado para os dois humanos que olhavam-na com as testas franzidas e bateu um pouco as enormes asas, flutuando acima das pedras e esfregando as palmas da mãos. Um pó dourado acabou sendo liberado do esfregar de palmas, caindo nas pedras e transformando-as. Em meros segundos uma multidão de seres com formato humanoide, sem expressão alguma, substituíam as pedras. Os dois humanos soltaram exclamações de surpresa, ao que Ysolt riu abertamente.

— E então, vamos?

Os dois suspiraram e deram de ombros, assentindo. A fada bateu palmas, subitamente animada com a perspectiva de viajar. Deu ordens dignas de uma capitã às suas criações, que logo se puseram a fazer o barco se mexer. Esqueceu-se dos humanos por algum tempo, adentrando o porão do navio para verificar os suprimentos e repassar cuidadosamente a lista que fizera. Enquanto conferia quantos barris de água potável tinha trazido, ouviu uma melodia conhecida sendo assobiada. Vinha do outro lado dos barris, e o timbre do sopro a fez reconhecer de imediato seu dono. Ysolt gelou; como ele descobriu?

— Eu sei que está aí, Sionann. — ele parou de assobiar para comentar. A voz grave dele a fez arrepiar-se como um gatinho, como sempre acontecia. — “Não há nada oculto que não venha a ser conhecido”, não é? — citou um dos provérbios que seus pais costumavam citar quando descobriam sobre as mentiras dos filhos.

— Heliodoros. — ela saboreou o nome antes que o rapaz de cabelos e asas douradas saísse das sombras, sorrindo para a garota a quem pertencia seu coração. Como ele atravessara a grande quantidade de barris parecendo ser incorpóreo, Ysolt notou que era uma projeção mágica.

— Sim, eu descobri seus humanos e seus planos. — ele riu para depois assumir um tom sério e saudoso — Queria poder ir com você, mas me nomearam representante das fadas na ilha de Amandine alguns dias atrás e preciso me dirigir para lá o mais breve possível. Deixei o livro com os documentos que certificam o tratado com os dragões na cabine do capitão. Use-os com sabedoria e, por favor, fique viva. Sua mãe já está maluca atrás de você, então vá logo. Quando terminar sua aventura, me escreva. Quero estar com você no lugar que resolver ficar. — e, com uma piscadinha acompanhada de um sorriso triste, o rapaz sumiu. A fada sentiu seu coração despedaçar-se; morreria de saudades dele, mas aquilo era algo que deveria fazer. Independente da distância, ela o amava e era amada por ele. Tudo ficaria bem por causa disso, acreditava ela. É claro, como você bem deve saber, o amor tem o poder de consertar tudo. Ou quase tudo.

***

Imagino que estejamos ficando sem tempo. Você provavelmente já está se cansando desta história, então pularemos boa parte da monótona viagem de barco, que consistiu basicamente em enjoos por parte da fada e conversas silenciosas por parte dos dois humanos. A ação realmente começa quando um dos seres humanoides criados por Ysolt avistou uma ilha surgindo no horizonte. Àquela altura da viagem, passadas pelo menos duas semanas, a nova capitã do navio já tinha se acostumado com o balanço das ondas e então pôde ficar animada ao checar o mapa que encontrara na cabine do capitão junto com os documentos – obra de Heliodoros, sem dúvida – e verificar que aquela era a primeira ilha do arquipélago de Toldot, Sharláit. Eles estavam prestes a adentrar o território oceânico que pertencia aos dragões.

Fergus ficava mais arredio a cada momento, olhando com preocupação para as ondas e se recusando a sair da amurada do navio. Liebling tentava manter a pose de ex-capitã ajudando no que fosse necessário, mas o tremor em sua coxa esquerda, onde havia uma perna de madeira substituindo os ossos do joelho para baixo, evidenciava o quanto ela também estava nervosa.

— Entraremos no território dos dragões em menos de uma hora. — anunciou para a capitã de dentro da cabine, guardando o compasso depois de medir o mapa e transferir a medida para milhas náuticas. Uma fada poderia ser detentora da magia profunda, mas uma humana que crescera na praia possuía a prática de navegação que faltava em Ysolt.

O rapaz suspirou pesadamente ante a informação, que ouvira sendo gritada. Nunca compreenderemos como ele não guardou ressentimentos de Liebling depois de tudo o que aconteceu, já que perdera um braço tentando protegê-la a troco de uma mentira. Mas, como já comentei antes, o amor tem o poder de consertar quase tudo.

Todos os tripulantes da caravela puderam perceber o momento em que cruzaram a divisa mágica entre as águas interterritoriais e o domínio dos dragões. Uma tempestade formou-se subitamente, forçando-os a fechar as velas e abrigarem-se na cabine da capitã. O ovo continuava aquecido, já posto de volta no cofre juntamente com as chamas que Ysolt criara. A fada então, para ocupar-se com algo útil, começou a estudar os documentos que seu amor havia deixado. Fazia anotações frenéticas, enquanto os dois humanos observavam a tempestade da janela com dúvida no olhar.

— Os dragões ainda não nos atacaram porque esta é a época em que se recolhem para guardar seus ninhos. Só se preocupam com os navios que saem, não com os que entram. — a fada respondeu a pergunta que ambos se faziam, sem olhá-los enquanto escrevia mais e mais numa folha de pergaminho avulsa. Suas belas asas de borboleta se agitavam levemente, fazendo o calor de dentro da cabine se dissipar um pouco.

Então um dos seres humanoides que Ysolt criara bateu à porta, já que todos continuaram trabalhando durante o temporal. Em meio à chuva, ele apontou para a ilha que se aproximava. Um brilho alaranjado vinha de lá e, apesar do barulho do vento e dos trovões, ela pôde ouvir um urro irado que a fez finalmente temer o encontro.

— “Não há nada oculto que não venha a ser conhecido,” — murmurou para si mesma, pensando no ovo. — Eu preciso devolver, é o certo a se fazer. Consertar tudo.

Passou uma mão pelos curtos cachos negros, olhando em volta sem se importar com a roupa já ensopada. Colocara um casaco para prender as próprias asas antes de sair; caso não o fizesse, seria levada pelo vento. Respirou fundo e voltou para dentro da cabine, onde os dois humanos ainda não tinham saído do lugar.

— Me contem uma boa história, vocês dois. — pediu, sentando-se na cama e chamando a atenção deles. Liebling assentiu e, depois de pensar um pouco, começou:

— Há muitos anos, uma menina de rua foi adotada por um bardo. Os dois viviam viajando e ele contava-lhe as mais belas histórias sobre tesouros, magia e fadas. A história que ela mais gostava era de um rapaz que tinha conseguido roubar um ovo de dragão, vendeu-o e ficou bem rico. Ela sonhava com o dia em que... — e, naquele momento, as coisas realmente começaram a acontecer. Um grande urro foi novamente ouvido, mais próximo que o que Ysolt tinha ouvido anteriormente. Os três saíram correndo de dentro da cabine, a fada transportando o ovo junto com as chamas. Usou de sua magia para que o fogo não se apagasse devido à chuva que ainda caía, começando a sentir suas forças se esvaindo. Mas precisava aguentar: permanecer acordada era essencial.

Em meio à tempestade, perceberam que estavam a meros cem metros da ilha de Sharláit e que uma figura vinha até eles pela água agitada. Cortando as ondas, o rosnado do dragão que se aproximava podia ser ouvido a cada vez que sua cabeça emergia. Ele já havia avistado o ovo.

Fergus gemeu, caindo no chão e recuando até o outro lado da amurada tão rapidamente quanto o balanço da embarcação permitiu-lhe. Liebling deu um passo para trás, sua mão tremendo com o esforço que fazia para não puxar a espada. Qualquer gesto impensado poderia resultar em sua morte.

Ysolt, o ovo ainda aquecido em suas mãos, deixou o casaco que prendia suas asas ser levado pelo vento. Precisava mostrar ao dragão quem era. Fechou os olhos, relembrando as aulas da língua dos dragões que tivera com sua mestra, e rosnou para si mesma. Depois usou um pequeno encantamento para fazer sua voz ficar mais alta e então rosnou novamente. O som reverberou pelas ondas, encontrando o ser que avançava rapidamente pelo mar revolto. Este respondeu com uma saudação e finalmente chegou até a caravela, fazendo a tempestade passar com duas palavras bem empregadas em sua língua.

Os dragões, como você deve saber, são seres pensantes que possuem uma língua própria e organização de hierarquia diferenciada. Aquele era um macho, cujo nome ainda não pôde ser traduzido, e que estava patrulhando a área ao redor dos ninhos quando notou a presença deles. As fêmeas, de escala mais alta na hierarquia, permaneciam nas cavernas com os ovos e mandavam os machos protegerem o perímetro. Nada que eles fizessem poderia ser fora de uma ordem expressa delas, e aquele representante estava desafiando ordens ao não destruir a caravela assim que a visse justamente por causa da fada presente. Ele honraria os acordos e esperava que as fêmeas entendessem isso.

Ela engoliu em seco ante a presença gigantesca sobre si, quase perdendo o controle dos muitos feitiços que fazia, e gritou um enorme pedido de desculpas em nome dos humanos que tinham roubado os ovos. Ofereceu o ovo azul de volta, ao que o dragão riu. Bom, o mais aproximado de um riso de escárnio que um ser como aquele podia fazer.

As escamas acobreadas de sua face enorme reluziam com o fogo que Ysolt produzia, os olhos dourados de diâmetro maior que ela analisando-a com uma fúria mal contida. Ele tinha os dentes arreganhados, em um rosnado silencioso que declarava seu ódio aos humanos atrás da fada. As águas haviam se acalmado, mas isso não tornava a visão mais alegre. Ainda estava um breu, mesmo que fossem duas da tarde. As nuvens de fuligem talvez fossem as culpadas de tudo, já que as quatro ilhas do arquipélago de Toldot eram vulcânicas.

‘Achas que simplesmente aceitarei suas desculpas assim, sem nenhum tipo de recompensa para com meu povo ou punição para os humanos malditos?’ era o que aquele riso queria dizer. Dragões eram os mais justos e verdadeiros dos povos; sabiam o valor de cada coisa. O de uma deslealdade era a perda de um membro necessário do corpo.

Poderia ser mais fácil para Ysolt simplesmente devolver o ovo e deixá-lo fazer o que quisesse com Liebling e Fergus. Mas você sabe que não é assim que funciona a mente de um herói. Então ela buscou desesperadamente entre os documentos que estudara uma frase que a ajudasse. Subitamente, encontrou-a.

“O povo de Toldot se compromete a aceitar a remissão de todo e qualquer dissabor cometido pelos povos humanos ou pelos filhos de Eloa, mediante devida punição. Para o roubo ou posse de ovos, o preço para os povos humanos é a vida. Para filhos de Eloa são suas preciosas asas.

 Branca como a lua, traduziu o trecho para a língua que o dragão entendia e rosnou para fazê-lo entender que estava disposta a entregar suas asas se ele deixasse os humanos saírem ilesos da ilha, sob a condição de nunca mais voltarem. O macho parou, pensando, para depois assentir com um rosnado e indicar que ela deveria voar junto com ele até Shaláit.

— O quê?! Não! — Liebling e Fergus gritaram juntos quando ela explicou o que deveria fazer.

— Não há discussões, humanos. Os meus monstrinhos obedecerão a vocês agora. Voltem em segurança para sua ilha e não voltem aqui nunca mais. — ela sorriu-lhes, o ovo ainda em suas mãos — Obrigada pela aventura.

***

Eu sei o que você deve estar se perguntando. Como os dragões tiraram as asas dela? Ela sobreviveu? Como a história terminou? Ela conseguiu voltar a ver Heliodoros? E sua mãe, o que fez? Deixe-me respondê-lo para acalmar seu coração.

Em uma pequena cidade portuária em Iscah, muitos anos mais tarde, um homem contava histórias saídas do livro que tinha no colo a quatro crianças; todos sentavam-se no chão coberto de tapetes, as asas de três das crianças e as do homem sacudindo-se levemente com a brisa oceânica que entrava pelas janelas abertas. A criança restante, uma menina de tímidos cabelos claros, brincava distraidamente com a ponta da asa esquerda de uma das irmãs, apenas para ter o que fazer com as mãos enquanto ouvia a história.

— (...) e eles viveram felizes para sempre. — o pai concluiu, fechando o livro e sorrindo para seus filhos.

— Papai, como é que a mamãe perdeu as asas mesmo? — a menina perguntou. — Nós sabemos a história dela junto com a tia Li e o tio Fergie, mas como foi que o dragão arrancou as asas dela?

Heliodoros hesitou, percebendo que a atenção das outras crianças aumentara. Não sabia se suas crias estavam preparadas para os fatos. Olhou em volta, procurando decidir-se, e viu o sorriso gentil de sua esposa indicar que sim, ele podia contar a verdade. “Não há nada oculto que não venha a ser conhecido.”

— Acontece, querida, que o dragão pôs a mamãe em um lago cheio de lava quente. Ela ficou lá por um tempinho até as asas dela se dissolverem. Mas com isso a magia que faz crescer as asas se modificou dentro dela também, e você herdou isso dela.

— Doeu muito, mamãe? — o mais velho, um garotinho de cabelos escuros, indagou à mulher encostada na parede.

— Doeu sim, querido. Mas consertar as coisas, juntamente com dizer a verdade e se sacrificar por outras pessoas, dói sempre. Claro, não é por isso que não temos que fazê-lo, certo? As recompensas serão sempre maiores a quem o faz de todo o coração. — Ysolt Sionann, agora Sepp, sorriu. Seus olhos claramente indicavam que o que ganhara em troca do sacrifício de duas asas eram aquelas crianças ali, sentadas juntas e aprendendo sobre o amor. Seu maior presente e orgulho.

E assim, meu caro, espero que todas as pontas soltas tenham sido amarradas. Caso esteja faltando alguma coisa, aguarde o próximo contador de histórias aparecer. Porque, é claro, não há nada oculto que não venha a ser conhecido.


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Notas finais do capítulo

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