Como nascem as lendas escrita por Drafter


Capítulo 1
Como nascem as lendas




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Reza a lenda de que na parte mais ao norte da floresta que circundava aquele povoado vivia um ser terrível, um monstro inominável. "Ele tem orelhas pontiagudas, como os lobos", diziam alguns; "dentes tão afiados quanto os de um leão", diziam outros; "produz um guincho terrível, como um morcego", diziam mais alguns outros. A verdade, no entanto, é que ninguém nunca vira de fato tal criatura.

A lenda passava de geração em geração, e todas as crianças do povoado cresciam sabendo dos limites da floresta. Por vezes, elas ainda se desafiavam entre si, provocando os amigos e os incitando a dar alguns passos além da borda imaginária imposta pelos adultos, mas no fim das contas nenhum tinha coragem de ir muito adiante, e voltavam para casa antes do entardecer, seus corações infantis cheios de emoção por aquela pequena ousadia.

E a vida seguia assim naquele vilarejo. O monstro assombrava as histórias dos mais velhos, que eram repetidas pelos mais novos, e recontadas a exaustão a todo e qualquer andarilho que estivesse de passagem. A lenda fazia parte da aldeia, era quase como se fosse responsável pela construção da identidade visual de todos aqueles moradores.

Todos não. Dentre eles, havia um homem que zombava da lenda. Dizia não acreditar em nenhuma palavra e ria com escárnio sempre que a história era contada. Emilio era o ferreiro da vila. Alto, forte e ruivo, trabalhava todos os dias em sua oficina criando armas, ferramentas agrícolas, utensílios domésticos e todo o tipo de objeto prático para facilitar o dia a dia do povoado. Era conhecido e querido por todos — só não gostavam da maneira debochada a como ele se referia ao monstro. À lenda.

Afinal, desacreditar aquela história chegava a ser um insulto. Gerações de aldeões haviam crescido em torno daquela fábula, e rir daquilo como se fosse uma piada era considerado por muitos como uma blasfêmia. Emílio no começo não ligava, e ria ainda mais da seriedade com que todos naquela vila pareciam levar o assunto. Achava graça de como eles tinham medo, um verdadeiro pavor, de pensar em atravesar o suposto limite seguro da floresta. "É só um bosque!", ele exclamava, se desmanchando em gargalhadas, "Por acaso tens medo de esquilos e pássaros? Dos galhos das árvores frondosas que crescem mais além?", perguntava, em tom de zombaria, balançando os abastados cabelos vermelhos.

Os aldeões se sentiam incomodados, e com o tempo, passaram a evitar a oficina de Emílio. Alguns chegavam a ir até o vilarejo vizinho para encomendar suas peças, ou até mesmo as compravam dos viajantes que transitavam entre os povoados levando mercadorias.

A notícia chegou até Emílio, que ficou ultrajado com o boicote. Via sua renda diminuir mês a mês, e em breve, não teria mais com que se alimentar ou custear sua oficina. Seria obrigado a encerrar as atividades, procurar outra ocupação ou até mesmo ir em busca de oportunidade em outro vilarejo. Só que Emílio não queria nada daquilo. Nascera ali, como seus pais e seus avós, e assim como eles, crescera dentro de uma oficina de forja. Nascera para aquilo, e morreria fazendo o que amava, junto da terra de seus ancestrais, morando na casa que pertencera a todas as gerações anteriores a sua.

Ele decidiu que aquilo não poderia ficar assim. Teria que dar um jeito naquela situação o quanto antes, reconquistar a confiança de seu povo e voltar a ter trabalho para poder colocar comida na mesa. Por isso, convocou uma reunião com todos os moradores — crianças, adultos, idosos, homens, mulheres. Todos eram bem-vindos para ouvir o que Emílio tinha a dizer, e, tamanha a curiosidade daquele pequeno povoado, todos compareceram na hora marcada.

"Sei que não gostam de como eu trato a lenda local, de como falo do monstro. A ponto de não mais procurarem meus serviços de ferreiro", ele começou, e todos escutavam com atenção. Aqui e ali ouviam-se alguns burburinhos, mas ninguém ousava interromper. "Isso está trazendo instabilidade para minha casa, e já quase não tenho como me sustentar. Não quero abandonar minha vocação muito menos essa terra que tanto amo, mas também não quero enganá-los, dizer que estão certos apenas para tê-los de volta como minha clientela. Por isso quero provar que estão errados, que não há nada a temer. Sei que se apegaram à figura do monstro, sei que a lenda é importante para muitos aqui, mas não podemos mais deixar que essa história, que esse mito conduza nossas vidas a esse ponto. É hora de evoluirmos, deixarmos o passado e suas fábulas para trás".

Emílio fez uma pausa, observando a reação dos seus amigos e vizinhos. Todos se entreolhavam, murmurando baixinho, incrédulos com tamanho atrevimento.

"Por isso, vou passar esta noite na floresta. Voltarei amanhã, como prova de que tal criatura não passa de uma invenção".

"Você não pode fazer isso, Emílio!", uma pessoa gritou. "Você vai morrer!", bradou outra, mas ele deu de ombros. Estava convicto do que faria.

"Se eu assim o fizer, e retornar a salvo na manhã seguinte, a única coisa que almejo é ter meu prestígio de volta. Voltar a trabalhar dia e noite com paixão como sempre fiz nesta aldeia. É tudo que peço".

Os moradores não estavam muito convencidos, mas Emílio já fizera sua escolha. Ouviu todas as recomendações e avisos, mas suas resposta era sempre a mesma. "Vou ficar bem", ele dizia. Aceitou apenas o conselho de levar consigo alguma arma para se defender de uma possível ameaça. Escolheu, entre suas ferramentas, um pesado martelo de forja que estava habituado a manejar.

Cheios de receio, eles acompanharam Emílio até a borda norte da floresta, sem ousar dar mais um passo. Viram o ferreiro seguir a caminhada sozinho, o martelo seguro nas mãos, até sumir entre as árvores. O único som que o acompanhava era o uivo sibilante do vento.

A noite correu silenciosa e devagar, como sempre. Muitos não conseguiram nem dormir, tamanha a apreensão que sentiam. Nunca antes alguém havia desafiado o monstro. Alguns grupos chegaram a até mesmo organizar uma vigília, rezando por toda a madrugada pela segurança de Emílio.

A aldeia estava em polvorosa na manhã seguinte. Todos aguardavam ansiosos pelo retorno do homem, divididos entre a esperança de que ele estivesse bem, e o medo do destino cruel que ele podia ter enfrentado naquele bosque.

O sol mal tinha raiado e eles já esperavam o corajoso aldeião na saída da floresta. Olhavam cheios de expectativa pelas árvores, atentos ao menor sinal de que ele estaria voltando. O cabelo ruivo de Emílio se destacaria fácil naquela paisagem verdejante, mas tudo que eles viam eram os animais silvestres e o balançar das folhas. Esperaram por diversas horas, mas aos poucos foram abandonando o posto. A vida lá fora chamava: a colheita devia ser feita, os animais, alimentados e as crianças, banhadas. Ainda assim, sempre que sobrava algum tempo, corriam até a oficina de Emílio para conferir se o ferreiro estava de volta.

Passou-se um dia inteiro, mas ninguém conseguira encontrar o homem. O burburinho foi geral. Muitos choravam, exclamando coisas como "O monstro! O monstro!", mas alguns ainda mantinham acessa a chama da esperança de ver o amigo retornar a salvo. "Aposto que é só mais uma piada de mal-gosto de Emílio", refutavam.

Porém, o segundo dia surgiu e o homem continuava desaparecido. Chegavam o mais perto possível da borda norte da floresta, esticavam o pescoço e apuravam os ouvidos. Nada.

O grupo que ainda acreditava no retorno de Emílio ia sendo reduzido dia após dia. Uma semana depois, mais ninguém o ia esperar na saída das árvores. A oficina permanecia fechada, sua casa, completamente deserta. Com o tempo, foram se acostumando com a ideia. Inconscientemente, já falavam de Emílio no passado.

Meses e anos se passaram. A aldeia ganhou um novo ferreiro e a vida seguia normalmente. E os viajantes que procuravam abrigo na hospedaria do povoado eram sempre bombardeados pela lenda local. Pela lenda do monstro que morava na ala norte da floresta. "Ele tem cabelos de fogo", diziam alguns; "Possui uma pata de ferro, sólida como um martelo de forja", diziam outros; "Ele produz um som agudo, como um metal trincando", diziam mais alguns outros.

“Ele se chama Emílio”.


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