Collide I e II [Degustação] escrita por Allie Próvier


Capítulo 8
[2ªT] 3. Deslumbre




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3

"Porque, querido, foi bom nunca olhar para baixo.

E bem ali onde estávamos era solo sagrado."

Taylor Swift — Holy Ground

Acordei sentindo a minha cabeça pesada feito chumbo.

Olhei a redor e vi que estava amanhecendo. Tateei as mãos pela cama e encontrei o meu celular para verificar o horário. Eram quase sete horas da manhã. Eu não tinha muito tempo para me arrumar para o trabalho, então teria que me apressar.

Levantei rápido e tomei um banho quente. Já estávamos no inverno e eu nunca havia sentido tanto frio na minha vida. Depois de uma vida inteira na Califórnia, ser jogada em Nova York em pleno inverno era quase uma tortura.

Vesti minhas roupas rapidamente e peguei a minha bolsa, saindo do quarto em seguida. Minha cabeça doía horrorosamente e meu estômago queimava. Eu devia ter lembrado que beber muito vinho me destruiria, como sempre.

Quando cheguei na sala, encontrei Eve sentada na mesa de jantar, com as pernas cruzadas e uma xícara de café em uma das mãos enquanto lia uma revista. Já estava arrumada para ir trabalhar, vestindo um blazer branco e com os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo alto.

Seu olhar caiu sobre mim e eu engoli em seco, desconcertada após tudo o que aconteceu na noite anterior. Deixei a minha bolsa sobre o sofá e andei até ela, sentando na cadeira ao seu lado.

— Me desculpa por ontem? – falei. – Eu não queria ter sido tão grossa com você.

— Tudo bem – ela murmurou, colocando a xícara sobre a mesa de madeira. – Me desculpa por ser tão intrometida? Eu deixo a preocupação subir demais à cabeça.

Sorrimos uma para a outra e nos abraçamos.

— Eu não tenho o que desculpar — sussurrei antes de nos separarmos.

— Eu fiz panquecas, coma alguma coisa antes de sair – ela disse. – Também tem analgésicos no armário.

Comi uma panqueca, só para não sair com o estômago vazio, e bebi um pouco de leite. Se eu bebesse café, a queimação no estômago iria terminar de me matar. Tomei um analgésico para a dor e saí apressada do apartamento, após me despedir de Eve com um abraço rápido.

O caminho até a editora foi estressante, como de costume. O trânsito de Nova York conseguia ser pior que o de Los Angeles. Eu estava acostumada ao tumulto, mas ter de aprender a dirigir em um lugar novo — sendo ainda dependente do meu fiel GPS — e com novos motoristas loucos, era um desafio. Felizmente, eu consegui chegar a tempo.

Quando entrei em minha sala pequena, mas aconchegante e silenciosa, foi como entrar no céu. Sentei em minha cadeira e peguei um livro para terminar de analisar. Acabei deixando-o pela metade no dia anterior, mas estava realmente interessada em saber aonde aquela história me levaria.

Era um romance leve e divertido, com uma proposta muito parecida com outras do gênero chick lit, mas a protagonista engraçada e desinibida havia capturado a minha atenção.

Ouvi duas batidas na porta e logo a cabeça de Madison, a minha assistente editorial, apareceu. Ela sorriu animada para mim e veio até minha mesa. Seus cachos cheios e castanhos, com um suave brilho dourado, pareciam ainda mais bonitos hoje. Ela segurava dois copos da Starbucks e logo colocou um deles sobre a mesa, na minha frente.

— Caramel Macchiato, o seu preferido. – Ela piscou para mim. – A noite foi boa?

— Foi ótima. – Suspirei. – Sozinha na minha cama, bêbada e com dor de cabeça. Não poderia ser melhor.

— Quer que eu encontre um nova-iorquino bem gato para você? O Tinder está sempre à disposição. — Maddie me olhou com uma expressão de pena, mas era perceptível o humor em seu olhar. — Ou o seu noivo abandonado ainda está no jogo?

Meu corpo vibrou fracamente no ritmo da minha risada, enquanto eu pegava o meu café gelado e balançava a cabeça negativamente para a minha assistente louca. Eu e Maddie nos demos bem instantaneamente, o que era maravilhoso.

Ela era uma assistente incrível, realmente competente e me salvava em muitas coisas com as quais eu estava me habituando, mas também era muito divertida.

Tendo de lidar com um novo cargo, em um lugar novo, ter alguém como Maddie estava salvando os meus dias. Era muito bom ter uma nova amiga.

— Vai trabalhar, garota – ordenei, vendo-a ir até a porta com um sorrisinho no rosto. – E eu não o abandonei!

— É claro que não... – Ela sorriu com ironia e saiu da sala.

Suspirei, encostando-me melhor na minha cadeira e fechando os olhos. Fiquei imaginando o que Cameron estaria fazendo agora. No dia anterior, ele me avisou que tentaria agilizar as coisas para vir o mais rápido possível e logo me daria mais detalhes.

Ele sempre tomava o controle das situações e nunca me dava muitos detalhes, costumava resolver tudo sozinho e me avisar apenas depois.

Mesmo tentando evitar, o que Eve tanto dizia me veio à mente... Eu estaria mesmo em cima do muro em relação a Cam? Eu o amava, certo? Eu confiava nele – mesmo depois da traição e de tudo o que houve após isso – e eu sabia que ele estava tentando melhorar.

Muitas vezes eu sentia que era um tiro no escuro, que estava esperando por algo que talvez nunca fosse acontecer, mas... Eu ainda tinha esperança.

A nossa relação sempre foi conturbada. Em certos momentos estávamos ótimos, em outros estávamos em crise por causa de certas atitudes e palavras dele, mas no geral... Bom, eu sabia que ele estava tentando. Ele sempre dizia isso, afinal.

Ao menos eu sempre tentava melhorar, sempre tentava ser boa para ele. Por vezes, isso era exaustivo. Em muitos momentos eu sentia que estava tentando me transformar em alguém que eu não era, alguém que eu nunca fui... Por ele.

Isso sempre me incomodou, mas temos de fazer alguns sacrifícios, certo? Relacionamentos são assim.

Eu vinha tentando fazer a minha parte há muito tempo e sabia que ele percebia isso. Só espero que ele perceba que isso tem que partir dos dois lados.

Decidi voltar ao meu trabalho, já que tinha muita coisa para ler. Porém, os meus pensamentos me apunhalaram diversas vezes com dúvidas em relação a Cameron e a sua vinda.

Faltavam cerca de quinze minutos para encerrar o meu expediente, quando Maddie entrou na minha sala após duas batidas altas e apressadas.

— O que houve? – perguntei assustada, tirando os olhos do monitor do computador para olhá-la.

— Tem um cara maravilhoso querendo falar com você – ela disse, afoita. – Maravilhoso mesmo.

Meu coração acelerou no mesmo momento. A primeira pessoa que me veio à mente foi Cameron. Será que ele havia decidido vir mais cedo e fazer uma surpresa? Não é possível!

Levantei num átimo da cadeira e segui Maddie para fora da minha sala, com o coração a mil. Ao passar pela porta, eu esperava ver Cameron Hayes, mas arregalei os olhos ao me deparar com um homem loiro, alto e com um sorriso muito conhecido.

— Olá, Jones. – Benjamin sorriu.

Suspirei, sentindo um alívio estranho preencher o meu peito. Alívio? Eu não deveria estar decepcionada? Suspirei fracamente, empurrando os meus pensamentos para o fundo da mente e abrindo os braços para abraçar Ben.

Maddie voltou para a sua mesa e nos olhava sugestivamente, enquanto analisava Benjamin de cima a baixo. Discrição não era uma de suas grandes qualidades, infelizmente. Lancei um olhar recriminatório para ela, que apenas sorriu e me ignorou.

Maddie apoiou o queixo das mãos e ficou nos observando tranquilamente, como se assistisse a um filme.

— O que veio fazer aqui? – perguntei a Ben. – Pensei em te ligar hoje à noite.

— Então nossos pensamentos devem estar interligados – ele disse, logo abrindo um grande sorriso. – Vim saber se você gostaria de sair agora ou se quer ir em casa primeiro. Consegui sair do trabalho mais cedo, então...

— Podemos ir agora. – Sorri. – Mas só poderei sair daqui a dez minutos. Enquanto isso, posso ligar para Eve e Jack para saber se querem ir conosco.

Benjamin concordou prontamente e sentou-se em uma das poltronas de espera. Maddie logo se ofereceu para pegar um café para ele, num tom de voz doce demais, enquanto eu revirava os olhos para a sua cara de pau e voltava para a minha sala.

Liguei para Eve e perguntei se gostariam de sair conosco, mas ela e Jack dispensaram. Ambos estavam muito cansados e queriam passar a noite em casa. Porém, concordaram em sair na noite seguinte, caso decidíssemos fazer algo.

Então, arrumei as minhas coisas em minha bolsa e encontrei Benjamin assim que o meu expediente chegou ao fim. Decidimos andar ao invés de pegar nossos carros, afinal, estávamos bem próximos dos principais pontos da cidade.

Passear pelas ruas de Nova York, com Benjamin O'Neil ao meu lado, era como voltar a seis anos atrás. Quando eu tinha dezoito anos, não vinte e quatro. Quando ele era o capitão dos Lions e não um publicitário em ascensão.

Quando as coisas pareciam muito mais fáceis, não complicadas. O cheiro marítimo de São Francisco, definitivamente, nem se comparava à poluição de Nova York, mas isso não era um empecilho. Ben me passava um sentimento bom de nostalgia, algo suave e tranquilo.

Enquanto ele me contava mais sobre o seu trabalho e a sua vida na cidade, eu me peguei pensando em como a vida dá voltas surpreendentes. Eu nunca imaginaria que o encontraria aqui, a essa altura dos acontecimentos.

Tenho de admitir que durante a faculdade eu vivia imaginando-me encontrando Benjamin novamente... e Daniel. Eu não seria hipócrita, afinal, foi uma época onde a minha imaginação conseguia me machucar mais do que as memórias.

Eu imaginava diversas possibilidades: seria na virada de uma esquina, em uma praia qualquer da Califórnia, numa visita aos meus pais em São Francisco ou no outro lado do mundo, em uma viagem totalmente inesperada, onde não haveria qualquer possibilidade de nos reencontrarmos, mas... O Universo faria isso acontecer.

Na maioria das vezes, todos esses pensamentos me faziam chorar.

Quando eu visitava a minha mãe em São Francisco, olhava para todos os cantos das ruas, esperando ver qualquer um deles dois. Porém, nunca os encontrei.

Benjamin foi importante para mim. Não marcou a minha vida, corpo e alma como Daniel, não fez estrago no meu coração, mas foi essencial. Marcou a minha vida de uma forma só dele, como um amigo importante faz.

E, surpreendentemente, eu senti muito a sua falta durante aqueles anos. Optei por nunca procurá-lo porque eu sabia, bem no fundo, que onde quer que Benjamin estivesse, Daniel também estaria.

Pensar na possibilidade de revê-lo era...

Mordi o lábio inferior, suspirando disfarçadamente enquanto ouvia Benjamin falar algo sobre o apartamento minúsculo onde morava.

Eu não queria pensar em tudo aquilo. Nem agora e nem nunca. Eu ainda tinha esperanças de que Daniel nem estivesse mais em Nova York. Talvez tenha se tornado um engenheiro e foi para Dubai ou qualquer coisa assim. Isso combinava com ele.

Seria melhor se ele estivesse bem longe. Longe dos meus olhos, da minha vida. Definitivamente seria o melhor para todos; é o que eu prefiro pensar.

Mas todos sabemos que Allison Jones é uma péssima mentirosa.

— Então... – Benjamin mordeu seu lábio, arqueando uma sobrancelha para mim enquanto balançava levemente sua cerveja. — Como anda a sua vida amorosa? Ainda está me esperando?

Havíamos parado em um barzinho próximo ao Rockefeller Center, um complexo de 19 edifícios comerciais bem famoso na cidade, e pela proximidade do Natal era possível ouvir as melodias natalinas ecoando pelas ruas. Diversas lojas ainda estavam abertas e o fluxo de pessoas passando era impressionante. Sentamos em uma mesa externa do bar, pois o interior do local já estava lotado, e era incrível observar o quanto a cidade parecia viva com todas aquelas pessoas, sons, cheiros e luzes.

— Oh, claro. – Suspirei teatralmente, sorrindo para ele. – Minha vida se resume a esperar pelo seu olhar, O'Neil. Meu maior sonho é ser notada por você.

— Ótimo. – Ele sorriu abertamente. – Não sou mais o capitão do time, mas que ainda estou bem, não acha?

— Um garanhão. – Pisquei um olho para ele, divertida. – E respondendo à sua pergunta: eu estou em um relacionamento há dois anos.

O sorriso de Ben foi murchando lentamente, mas ele tentou disfarçar a surpresa e bebeu um longo gole de sua cerveja.

— É mesmo? – perguntou, se recompondo. – Uau, dois anos é bastante coisa. Já devem estar pensando em casamento.

— Ele me pediu, mas... – falei, descendo meu olhar para o drink em minhas mãos. – Eu tive que vir para Nova York e ele ficou em Los Angeles.

— Então você destruiu o coração do cara. – Ele constatou com um sorrisinho, me fazendo revirar os olhos. – Uma relação à distância? Isso está funcionando?

— Eu acho que sim. – Bebi um gole do meu drink, me sentindo nervosa com aquele assunto.

Eu queria cortá-lo, queria falar sobre qualquer outra coisa. A menção de Cameron me deixava mais nervosa do que eu gostaria. O que está havendo comigo?

— Ele planeja vir para cá, mas ainda estamos organizando isso. Enfim, como estão os seus pais? Não tenho notícias deles há tanto tempo.

Ele pareceu perceber a minha fuga do assunto, então não insistiu. Começou a falar de Tanya e Antony, que ainda moravam em São Francisco, mas pretendiam vir passar o natal desse ano na cidade.

A minha mente tentou me sabotar novamente. Será que Daniel ainda vivia aqui? Será que Benjamin mantinha contato com ele? Eles eram primos e se davam razoavelmente bem, mas Daniel tinha certa implicância com Benjamin, então...

Droga, eu precisava parar de pensar nisso. Mesmo após todo esse tempo, pensar em Daniel era doloroso. Tudo me levava às lembranças da noite do baile.

Quando Cameron surgiu em minha vida, eu juntei todas as lembranças dolorosas do passado em uma caixa e a coloquei no fundo da minha mente. Estava mofada e cheia de teias. Eu gostava de mantê-la assim, mas estar com Benjamin me leva a caminhos que eu tanto tento esquecer.

Daniel me desnorteia mesmo sem estar por perto, mas eu sei que superei. Todo esse alvoroço e ansiedade é pelo simples fato que, ultimamente, muita coisa tem acontecido.

Logo tudo isso passará e eu posso jurar que, se ele aparecer na minha frente, eu vou agir como uma perfeita adulta. Vou fingir que nem o conheço, seria como se nada tivesse acontecido.

— Termine essa bebida, pois quero te levar a um lugar – Ben disse, virando o que restava da sua cerveja rapidamente. – Rápido, Jones!

Virei meu drink, sentindo o álcool queimar a minha garganta, e limpei o canto dos lábios com a manga do meu sobretudo, aos risos. Benjamin já havia pago pelas bebidas, então apenas segurou a minha mão e me puxou de volta para a rua. Não demorei a perceber que era levada ao Rockefeller Center. Eve havia prometido que me levaria para ver a vista do Top of the Rock, um observatório que ficava no topo do local que oferecia uma vista incrível da cidade, mas ainda não havíamos encontrado tempo para isso.

— Você consegue imaginar a expressão de um garoto, que passou a vida inteira na Califórnia, ao ver uma pista de patinação pela primeira vez? – Ele sorriu, balançando as sobrancelhas sugestivamente para mim.

Logo eu entendi o que ele queria dizer. Eu já havia visto diversas fotos, é claro. Já havia escutado os elogios, mas nada se compara a ver tudo aquilo de perto: a famosa árvore de natal do Rockefeller Center era gigante e estava totalmente iluminada.

Se erguia acima de nós de forma imponente, quase mágica, e eu não pude controlar o sorriso bobo ao ver o quanto ela era bonita, principalmente com todos aqueles prédios iluminados ao redor.

A quantidade de pessoas não pareceu desanimar Benjamin. Ele me puxou para alugarmos nossos patins e, quando dei por mim, já estava agarrada a suas mãos, tentando me manter de pé no gelo escorregadio.

Benjamin ria enquanto me ajudava a manter o equilíbrio. Caí de joelhos e escorreguei para os lados diversas vezes, arrancando risadas de nós dois.

Demorou cerca de cinco minutos para que eu conseguisse fazer os meus pés se manterem firmes, mas ainda era um desafio. Benjamin continuou segurando as minhas mãos e me guiando pela pista pacientemente.

Passávamos por entre as pessoas e eu olhava para o alto, admirada com todo o cenário ao nosso redor. Era como se tudo acontecesse em câmera lenta ao nosso redor. O som alto da música e do burburinho das pessoas, aos poucos, se tornou um chiado único no fundo da minha mente.

— Obrigada por isso – falei, desviando o olhar dos prédios e da árvore para poder olhar em seus olhos. – Esse lugar é incrível, Ben. Não acho recomendável vir após ser embebedada, mas é... realmente mágico.

Ele riu, parecendo verdadeiramente feliz.

— Não precisa me agradecer, Ally. – Sua voz estava repleta de carinho, enquanto ele deslizava para o lado e me levava junto. – Você parece um pouco desanimada desde que nos reencontramos. Eu queria apenas... não sei. Deslumbrá-la, talvez?

— Ah, você sabe como deslumbrar uma garota. – Sorri. – Parabéns! A junção de álcool e pista de patinação com muitas luzes com certeza causam o efeito de deslumbre. Eu vejo dez vezes mais luzes do que realmente deve haver aqui.

Benjamin riu alto e me puxou para mais perto dele, enquanto deslizávamos para a saída da pista. Nosso tempo acabou, então devolvemos os patins e nos colocamos a andar para fora do local calmamente. Caminhamos lado a lado de volta ao estacionamento onde eu deixava o meu carro.

Ben ficou apoiado na minha janela enquanto eu me acomodava e colocava o cinto de segurança.

— Tem certeza que consegue voltar para casa? – perguntou preocupado. – Eu posso levá-la e amanhã você busca o seu carro.

— Eu estou bem. – Pisquei para ele, colocando a chave na ignição. – Depois da patinação e de quase quebrar a perna, voltei a ficar sóbria.

Ben revirou os olhos e me olhou com preocupação. Peguei a sua mão, que estava tão gelada quanto a minha, e a beijei suavemente enquanto sorria.

— Obrigada pelo deslumbre — sussurrei, como se lhe confidenciasse um segredo.

Um sorrisinho contido apareceu em seus lábios e ele assentiu levemente, parecendo se dar por vencido. Liguei o veículo e saí do estacionamento, vendo a figura de Benjamin se afastar cada vez mais pelo espelho retrovisor.

O sábado amanheceu com um sol tímido atrás das nuvens.

Estávamos na metade de novembro e o frio já estava presente. Tomei um banho quente assim que acordei, vesti uma roupa quente e confortável e rumei para a cozinha à procura de Eve. Encontrei ela e Jack sentados na pequena mesa de jantar, com um belo café da manhã a postos.

Jack bebericava uma caneca de chocolate quente enquanto observava Eve. Ela segurava uma pasta amarela sobre o seu colo e algumas folhas estavam espalhadas a sua frente, quase caindo dentro do prato de panquecas com mel.

— Bom dia – cantarolei, sentando de frente para eles e pegando um pratinho para me servir. – Algum problema?

— Eve está enlouquecendo e eu estou tentando lembrá-la que ela trabalha para cuidar de crianças, e não para matá-las – Jack respondeu tranquilamente.

Arregalei os olhos para Eve, que bufou e lançou um olhar cortante para Jack. Sorri ao ver o modo como os seus óculos de descanso pendiam sobre o nariz fino e reto, dando-lhe uma aparência mais séria. Um bico de insatisfação estava presente nos lábios.

— Não exagere – ela resmungou para o noivo. – O problema é que algumas crianças não sabem o significado da palavra "respeito", porque dentro de casa elas são criadas por bando de filhos da p...

— Olha a boca – Jack a interrompeu seriamente, mas com um sorriso contido nos lábios.

— Problemas com bullying? – perguntei.

— Sim. – Ela suspirou, tirando os óculos e reunindo as folhas, guardando-as dentro da pasta e logo deixando-a de lado. – Eu esqueci como era uma escola do fundamental quando consegui esse emprego. Há um grupinho de garotos do oitavo ano que não param de perseguir alguns alunos do sexto ano. Sinto vontade de pegar uma mesa e jogar neles.

— Eve! – Ralhei de boca cheia, enquanto mastigava um pedaço de panqueca. – Eu não tenho dinheiro para tirá-la da cadeia, por favor. São apenas crianças.

— Eu sei, eu amo aqueles pirralhos, mas... – Ela choramingou, passando as mãos no rosto. – Eles me deixam maluca! Você acredita que eu chamei os pais no colégio e nem metade apareceu para saber o problema? E os que foram conversar comigo foram tão babacas quanto os filhos? Se você coloca uma criança no mundo, poderia ao menos tentar parecer bom, para ele não crescer e ser ruim como você.

— É complicado... – murmurei pensativa. – Você poderia planejar algo para conscientizar as crianças sobre o tema. E os professores, é claro. Muitos nem fazem ideia de como lidar com alunos que estão nessa situação, tampouco como controlar isso.

— Sim, eu estou estudando o que posso fazer – respondeu, mordendo uma torrada e olhando distraidamente para um ponto qualquer da sala. – Algo que não envolva Eveline Walker sendo presa por fazer justiça com as próprias mãos.

Sorri e revirei os olhos para o seu exagero. Eve tinha esse temperamento impaciente, mas era um doce por dentro. Eu sabia que, apesar de mostrar esse lado para mim e Jack, na escola ela provavelmente parecia uma mãe preocupada com os filhos.

Eu lembro do estágio que ela fez há alguns anos, em um colégio, e de como ela era cuidadosa e atenta às crianças. De longe, parece improvável imaginar Eve como psicóloga escolar, mas olhando de perto eu vejo que é algo que ela realmente gosta, apesar de toda a tensão e preocupação.

— Então, o que faremos hoje? – Jack perguntou. – Você marcou algo com Benjamin?

— Não, mas posso perguntar se ele quer fazer algo. – Dei de ombros. – Ele parece empolgado para sair conosco.

— Hm... – Eve me olhou com um sorrisinho sugestivo. – E como foi ontem à noite?

— Bebemos e depois ele me levou ao Rockefeller Center. – Sorri. – Aquela árvore é incrível! Patinamos por um tempo e depois eu vim embora.

— Só isso? – Eve continuou com o bendito sorrisinho.

Revirei os olhos, percebendo o que ela estava querendo dizer. Peguei um biscoito amanteigado do pote de biscoitos e joguei nela, que ria sendo acompanhada por Jack.

— Vocês são dois idiotas – resmunguei enquanto despejava mel nas minhas panquecas. – Eu e Ben somos amigos. É loucura sugerir algo além disso.

— Mas você já foi apaixonada por ele. – Jack piscou para mim, ainda rindo. – Inclusive, eu ouvi falar que você escrevia o nome dele no seu caderno e desenhava vários corações...

Semicerrei os olhos para Eve, metralhando-a com o olhar. Ela tentou disfarçar um sorriso, mas falhou.

— Eu era uma jovem apaixonada e bobinha – falei, tentando explicar aquele fato vergonhoso. – Aliás, eu não sei se te contei, Jack...

Eve ainda ria quando levantou o olhar para mim, bebendo um gole de seu café. Sorri vingativa e continuei:

— A Eve também adorava rabiscar corações na agenda dela. – Sorri deliciada ao ver o olhar arregalado da minha amiga. – E o que ela mais adorava escrever era "Eve Smith", haviam até alguns desenhos seus que ela fazia e...

Um biscoito voou em minha direção e eu gargalhei, desviando no último segundo e vendo o rosto carmesim de Eveline Walker.

— Chega de falar do passado, né? – ela resmungou, ficando de pé e pegando sua louça suja.

Jack sorria de orelha a orelha, todo bobo por descobrir que Eve pensava nele daquela forma anos atrás. Ele não conseguiu se conter e a seguiu até a cozinha, abraçando-a por trás e enchendo o seu rosto de beijinhos.

Ela ria e batia nele levemente com o pano de prato, tentando afastá-lo. Fiquei observando-os de onde estava, enquanto comia as minhas panquecas e ria da cena.

Céus, eu os amava e admirava tanto.

Eve demorava para escolher um bendito sorvete tanto quanto demorava para decidir que roupa vestir.

Como Jack precisava resolver um projeto importante relacionado ao trabalho durante a tarde, eu e Eve decidimos passear pelo Prospect Park, um parque que ficava próximo ao apartamento. Algumas famílias faziam piquenique, alguns grupos de amigos estavam reunidos debaixo das árvores, pessoas passeavam com seus cachorros... Era um lugar bem relaxante.

Havia algo encantador nessa cidade, uma atmosfera única. Quanto mais coisas eu descobria, mais encantada eu ficava. Possuía um ar tão diferente da Califórnia e de tudo o que eu havia visto e vivido até hoje...

O meu celular vibrou dentro da bolsa e eu acordei dos meus devaneios. Peguei o aparelho calmamente, enquanto relaxava as minhas pernas sobre o gramado. Havíamos encontrado uma sombra perfeita, debaixo de uma grande árvore, para descansar.

Antes mesmo de desbloquear a tela do aparelho, vi que eram mensagens de Cameron. Havíamos nos falado brevemente mais cedo e ele disse que poderia conversar melhor mais tarde.

 

Cameron: "Meu pai vai precisar de mim para terminar de resolver alguns casos, então provavelmente só poderei me mudar definitivamente após o ano-novo. Estou com saudades, amor."

 

Quase dois meses de espera...

Eu pensei que antes do natal ele conseguiria vir, mas pelo visto isso não aconteceria. Estranhamente, eu não me senti incomodada com isso. Porém, você deveria, Allison. Deveria se sentir incomodada, triste, chateada e o que quer que fosse, porque ele é o seu (quase) noivo, não é?

A essa altura, eu já desisti de tentar entender a mim mesma.

Digitei uma resposta rápida para Cameron:

 

Ally: "Também estou com saudades! Pensei que conseguiria vir a tempo para o natal, mas tudo bem. Vou te esperar."

 

Cameron: "O que tem feito de bom?"

 

Ally: "Ainda não consegui ver muita coisa, estou trabalhando muito. Conheci apenas alguns parques e barzinhos."

 

Cameron: "Espero não ter que lidar com nenhum nova-iorquino querendo roubá-la de mim quando eu chegar aí..."

 

Sorri fracamente, digitando apenas uma risadinha como resposta. Minha mente me levou a Benjamin e ao nosso reencontro. Eu nem cogitei mencionar isso a Cameron por dois motivos:

Ele não sabe sobre a história. Eu nunca contei sobre Benjamin, Daniel e tudo o que aconteceu naquele último ano do colegial. Empurrar a caixa de lembranças para o fundo da mente envolvia não falar sobre aquilo. Nunca.

Cameron era muito ciumento e esse era um dos pontos que eu mais odiava nele. Era difícil ter amigos ou qualquer coisa assim.

O único homem com quem Cameron não implicava era Jack, e isso só aconteceu após um bom tempo, quando ele finalmente percebeu que Jack vive para Eve como se ela fosse o ar que ele respira. Se eu falasse qualquer coisa sobre Benjamin, era capaz de Camerom pegar um voo para Nova York na mesma hora.

Finalmente Eve retornou com os nossos sorvetes. Peguei a casquinha de morango de sua mão, olhando-a com desconfiança.

— Você foi tirar o leite da vaca para fazer o sorvete? – questionei. – Eu estava quase morrendo de tanto esperar.

— Exagerada – resmungou. – Não reclame, apenas coma.

Sorri e a cutuquei com o cotovelo, arrancando um sorrisinho dela.

— Cam acabou de mandar uma mensagem – falei, enquanto lambia meu sorvete. Eve fez uma careta de nojo para mim, fazendo-me revirar os olhos. – Não faça essa cara...

— Impossível, basta ouvir o nome do demônio – ela resmungou, mas logo forçou um sorriso aberto e exagerado. – Mas conte-me, o que seu príncipe queria?

Não consegui conter o riso diante da sua ironia. Eve era uma palhaça.

— Ao que parece, o pai dele ainda precisa de seus serviços no escritório, então Cameron só virá em janeiro.

— Graças a Deus – Eve sussurrou, olhando para o céu azul acima de nós. – Vou poder ter a sua companhia por mais tempo.

— Você sabe que eu preciso do meu canto, Eve. – Suspirei. – Vou começar a procurar na semana que vem.

— Não... – ela murmurou, me olhando com uma feição verdadeiramente triste. – Espere o natal passar, por favor. Nossas mães virão para a cidade, é uma oportunidade maravilhosa para estarmos todos juntos.

Suspirei, totalmente rendida.

— Tudo bem, mas será assim que o natal passar.

Eve sorriu empolgada e me abraçou pelos ombros, plantando um beijinho em meu rosto.

Às sete e quarenta da noite, Benjamin buzinou na frente do prédio.

Eu, Eve e Jack já estávamos prontos. Trancamos o apartamento e descemos rapidamente. Como iríamos a um pub, Benjamin ofereceu uma carona. Eve e Jack o cumprimentaram animadamente e Benjamin não conseguiu se conter na hora de elogiar Eve. Ela estava bem diferente daquela menina rabugenta de seis anos atrás.

O casal foi no banco de trás e eu fui na frente com Benjamin.

— Vocês vão adorar o lugar! – Ele sorriu. – Sempre tem um show ao vivo a cada dois dias. Me avisaram que hoje não terá, mas ainda assim vale a pena. O lugar é ótimo.

—Podemos ir em outro dia para assistir ao show – sugeri.

— Ah... – Seu sorriso vacilou um pouco, mas ignorei. – Podemos, é claro.

Acima da entrada, havia uma placa com o nome "Taberna do Viking". O local possuía uma decoração bem rústica, era espaçoso e bem organizado. Haviam tijolinhos aparentes nas paredes, poltronas pretas e confortáveis e mesas de madeira.

Algumas lamparinas com amareladas tornavam o lugar mais aconchegante. Por ser sábado à noite, havia bastante gente, mas encontramos uma mesa vazia próxima ao palco, em uma área mais alta que o salão principal.

De onde estávamos, conseguíamos ter uma visão privilegiada do palco. Enquanto sentávamos, percebi que haviam vários instrumentos montados sobre ele. Alguns homens, vestidos casualmente, afinavam os instrumentos.

— Acho que a banda está aqui. – Observei, cutucando Ben com o cotovelo. – Você disse que hoje não teria show, mas acho que se enganou.

Quando voltei meu olhar para Ben, ele tinha seus olhos levemente arregalados e os lábios entreabertos. Parecia surpreso. Fiquei curiosa com a sua reação. Será que, na verdade, a banda era ruim e ele tinha medo de ouvirmos e odiarmos o lugar? Seria bem engraçado se isso acontecesse, depois de toda aquela divulgação que ele fez...

— A-Ah... Sim, eles... – Ben gaguejou, esfregando a nuca num gesto nervoso. – Eu vou buscar algumas bebidas, ok?

Assentimos e ele levantou da mesa. Olhou para a banda durante todo o caminho até o balcão do bar, quase esbarrando em algumas pessoas.

— Ele parece nervoso – Jack cochichou. – Aconteceu alguma coisa?

Dei de ombros, murmurando que também não sabia. Logo Benjamin voltou para a mesa e nos entregou as nossas bebidas, ao mesmo tempo em que um chiado baixo do microfone ressoava pelo local. Em seguida, uma voz preencheu todo o espaço:

— Preparados para mais uma música?

Todos no local ovacionaram, enquanto um arrepio percorria a minha espinha. Eu paralisei no mesmo instante e arregalei os olhos, que estavam fixos na margarita em minhas mãos. A voz se infiltrou pelos meus ouvidos, inundando a minha mente e fazendo o meu estômago revirar dentro de mim, ao passo que o reconhecimento se alastrava pelo meu corpo inteiro.

Olhei rapidamente em direção ao palco, vendo o vocalista sentar sobre um banco alto na frente do microfone. Ele sorriu abertamente para os outros membros do grupo, fazendo um sinal para que começassem. Mesmo a alguns metros de distância, eu reconheceria aquele perfil, o maxilar marcado e aquele sorriso marcante em qualquer lugar.

Ele vestia uma camisa preta que parecia encaixar perfeitamente em seu corpo. As mangas dobradas até os cotovelos contornavam os seus braços, que pareciam mais fortes. Ele parecia o dono daquele palco. Seus cabelos escuros estavam mais curtos do que eu me lembrava, mas ainda possuíam a desordem característica. Os fios grossos e desordenados emolduravam o rosto marcante, que agora possuía uma barba escura que, aparentemente, não era feita há alguns dias.

E quando ele voltou o seu olhar esverdeado para o público, estampando um sorriso relaxado no rosto como se estivesse totalmente acostumado a ter toda a atenção do mundo para si, eu esqueci como respirar.

Porque Daniel Sullivan estava ali na minha frente... Outra vez.


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