Déjà vu escrita por Paulinha Almeida


Capítulo 40
Capítulo 40




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1 ano, 9 meses e 4 dias depois.

No meio da tarde, senti meu celular vibrar no bolso da calça, mas apesar da vontade de atender, ignorei e continuei prestando atenção na garota deitada à minha frente com a perna quebrada. Discretamente olhei o relógio que indicava pouco mais de onze da manhã e constatei que só podia ser quem eu esperava.

Acompanhei minha paciente durante todo o atendimento necessário, identifiquei o local da lesão, constatei que apenas imobilizar seria suficiente para sua recuperação completa e me despedi desejando melhoras quando ela e os pais saíram da sala de trauma. Assim que a porta se fechou, apanhei meu telefone e liguei de volta.

—Oi, minha linda. - Harry atendeu já no segundo toque.

—Oi, Ursinho. Já está em casa? - Respondi animada e com saudade, devido a semana que ele passou fora.

—Sim, a hora que te liguei tinha acabado de chegar. Deixei os dois no aeroporto e vim direto para cá.

—E como eles estavam?

—Super empolgados. - Contou enquanto eu ouvia o barulho do microondas ao fundo. - Perguntaram de você a semana inteira.

Se referiu à última semana de férias que passou na casa dos pais, eu não pude acompanhar porque não consegui agendar meu período de descanso para a mesma época que o dele.

—Você mandou meu beijo para a sua mãe?

—Sim.

—E para o seu pai?

—Também. - Garantiu. - Eu prevejo o dia que vou chegar lá sem você e eles não me receberão. - Falou ciumento, embora eu soubesse que ele gostava dessa proximidade, e me arrancando um sorriso convencido.

—Queria ter ido, mas não consegui. - Lamentei sinceramente.

Eu não conseguia entender qual a implicância toda que as pessoas tinham com sogros, porque eu adorava os meus e era totalmente recíproco. Precisei só de uns dois ou três encontros para decidir que Lily era minha pessoa preferida no mundo, por exemplo. James também era ótimo, mas minha intimidade com ela não se comparava.

Não foi de um dia para o outro, mas aos poucos comecei a me sentir mais a vontade na casa deles e os assuntos foram se tornando mais fáceis e naturais, até que se tornaram frequentes também por mensagens e algumas ligações ocasionais. Ainda me lembro de quando Harry viu nossa conversa no meu celular e comentou indignado que nós duas nem falamos dele.

—Eles sabem, ficaram a semana inteira repetindo que você trabalha demais, e o que você faz é o máximo, e que eu deveria te levar para fazer o que você quiser no fim de semana porque você deve estar se sentindo sozinha, e que eu tenho muita sorte.

—Tem mesmo. - Confirmei e ri ao imaginar que ele rolaria os olhos com isso.

Saí da sala com a pasta em mãos e caminhei sem pressa pelo corredor que me levaria à recepção.

—Como está aí hoje?

—Agenda cheia, mas até agora nada grave. - Informei assim que cheguei ao meu destino. - Mary, você guarda para mim, por favor? - Pedi debruçada sobre o balcão da emergência, entregando o prontuário da última paciente. - Obrigada.

—Então nem vou passar para te ver antes.

—Antes de? - Perguntei fazendo o caminho do meu consultório.

—De ir para a casa do Mike. Hoje é o primeiro jogo do campeonato, vamos assistir juntos.

Fiz cara de entediada só por prever o que me aguardava por algumas noites nos próximos cinco meses.

—Que pena, vou perder o primeiro jogo. - Lamentei, fazendo-o rir.

—Posso sentir daqui como você está triste. - Confirmou da mesma forma.

—Quando eu sair amanhã, vou direto para a sua casa, ta bom?

—Estou com saudade, eu queria te ver hoje.

—Eu também, mas ao que parece não vou ter tempo nem para comer direito. - Falei emburrada. - Ah! Isso me dá uma ideia. Amanhã você pode fazer espaguete para mim.

—Enquanto você dorme? - Perguntou cético.

—Sim, eu vou acordar com fome. - Confirmei animada. - Sua mãe disse que você deveria fazer o que eu quisesse, não se esqueça.

—Deve ser porque ela não te conhece bem. - Acusou divertido.

O acompanhei quando riu, no mesmo instante em que soou no meu bolso o chamado urgente no centro cirúrgico.

—Preciso ir, Harry. - Falei já em pé, saindo apressada da sala.

—Ta bom, Ratinha. Nos vemos amanhã.

—Que horas seus pais chegam? - Perguntei entrando no elevador.

—A escala deles é das oito à meia noite, no horário daqui, e eles chegam em Sidney seis da manhã, também no horário daqui.

A sugestão de visitarem a Austrália partiu de mim, porque depois de tudo que ouvi Hermione dizer sobre o país só podia ser o lugar ideal para quem quisesse visitar praias maravilhosas, e era essa a intenção deles.

—Ta bom, amanhã então mando uma mensagem para a Lily para saber como foi a viagem. - Expressei minha intenção, parada do lado de fora do centro cirúrgico. - Depois nos falamos, Ursinho. Beijos…

—Quantos beijos? - Me cortou antes que eu desligasse.

—Muitos beijos. - Baixei o tom de voz, me tornando involuntariamente mais manhosa.

—Vou cobrar. - Respondeu da mesma forma, me arrancando um sorriso. - Vai lá para o que você precisa fazer, amanhã eu cobro meus muitos beijos.

—Vou fazer questão de dar cada um deles. Tchau, Harry.

Coloquei o celular no bolso e entrei, tomando o cuidado de não tocar em nada.

—Me chamou, Lu? - Perguntei para minha amiga.

—Sim, você pode me dar uma segunda opinião aqui? - Pediu, olhando concentrada para o fêmur exposto à sua frente.

—Claro. - Confirmei e me aproximei, ouvindo com atenção o que ela queria saber.

Tive mais duas consultas agendadas durante o dia e recebi uma emergência cirúrgica que me ocupou por horas, assim, quando voltei à sala de espera para informar à família que correu tudo bem, o céu lá fora já estava quase totalmente escuro. Me virei para a recepção e percebi com satisfação que Colin já estava ali, pois ele ocuparia o turno da noite hoje.

—Ei, gato. Chegou agora? - Estalei um beijo em seu rosto e me encostei na mesa à sua frente.

—Acabei de chegar. - Respondeu, segurando a minha mão e sorrindo para mim. - Tudo bem com você?

Conversamos por alguns minutos antes que Luna se juntasse a nós, encostando na mesa do outro lado e o deixando entre nós duas.

—Estou exausta! - Resmungou com as mãos no rosto.

—Achei que o dia estivesse tranquilo. - Colin comentou com o cenho franzido.

—Quem me dera, não parei um minuto. - Lamentei enquanto ele olhava a tela do computador ao meu lado. - Harry voltou hoje, mas não tive tempo nem de vê-lo ainda.

Ouvi ele digitar alguma coisa e clicar duas vezes antes de se manifestar novamente.

—Você precisa matar a saudade hoje ou dá pra aguentar até amanhã? - Perguntou sarcástico.

—Eu queria ter matado a saudade, no máximo, terça, e hoje já é sexta, gato, o que você acha? - Respondi da mesma forma.

—Vai agora, está tudo livre. - Ofereceu solícito.

—Sério? - Me virei para a tela e vi que de fato não havia nenhuma entrada registrada, fazendo um contraste gritante com tudo o que tinha acontecido até pouco tempo atrás.

—Vai, Gin, eu te cubro se alguém aparecer. - Luna incentivou.

—E eu te ligo se precisar. - Colin prometeu, me convencendo de vez.

—Que horas são? - Perguntei já soltando o cabelo do rabo de cavalo.

—Dez para as sete.

—Até as nove estarei de volta. - Prometi, já a caminho do vestiário. - Obrigada vocês dois, seus lindos.

—Sabemos. - Meu amigo falou convencido, como se meu elogio não fosse nenhuma novidade.

Ainda rindo, caminhei rapidamente até lá para deixar o jaleco e pegar minha bolsa, troquei os tênis pelo sapato menos confortável e mais bonito com o qual tinha vindo para o hospital, e saí em direção ao estacionamento. Eu sabia que o jogo só começaria às nove e que ele não sairia de casa até pelo menos oito e quarenta, visto seu dom natural para estar sempre no horário, mas nunca adiantado demais.

Havia uma vaga livre a alguns metros da portaria, então não me incomodei em perder tempo descendo até a garagem e parei ali mesmo. Cumprimentei rapidamente o porteiro assim que passei pelo portão e aguardei pacientemente o elevador me levar até o andar certo. Assim que as portas se abriram, o rock alto tocando dentro do apartamento do meu namorado já podia ser ouvido, me dando certeza de que eu estava certa a respeito dos seus horários.

Usei minha chave para entrar e passei rápido pela sala vazia, parando tempo suficiente para deixar a bolsa sobre o sofá e abandonar meus sapatos também por ali de qualquer jeito antes de seguir até seu quarto, onde Harry normalmente ficava quando estava em casa sem fazer nada. O barulho que eu não me preocupei em disfarçar, chamou sua atenção e ele me viu pela porta aberta quando me aproximava pelo corredor, o sorriso tão grande quanto o meu.

—Não aguenta esperar para me ver, não é? - Falou convencido, deixando de lado o celular onde estava mexendo.

—Não. - Confirmei, me jogando em cima dele, que estava deitado sobre o edredom apenas de cueca.

Retribuí seu beijo demorado enquanto ele me apertava em um abraço cheio de saudade, condizente com todos os oito dias em que não nos vimos.

—Achei que estivesse corrido hoje, por isso não falei mais com você. - Justificou quando me deitei ao seu lado na cama, deixando apenas minha perna sobre as dele.

—E estava, mas deu uma acalmada agora há pouco. Colin e Luna me cobrem se acontecer alguma coisa e daqui a pouco eu volto para lá. - Contei, fazendo carinho no seu rosto.

—Eu amo seus amigos.

—Eu também. - Falei, rindo da sua expressão satisfeita. - Como foram esses dias?

Antes de responder, ele me puxou para mais perto e se virou de frente para mim também, encostando o rosto entre meus seios e aspirando meu cheiro.

—Foi legal, é bom ficar com eles um pouco, mas queria que você tivesse ido.

—Na próxima eu vou. - Prometi, deslizando os dedos por seus cabelos.

—Minha mãe mandou aquele doce enjoativo que você adora. - Contou com os olhos fechados, aproveitando meu carinho.

—Se eu já tivesse jantado ia comer agora mesmo. - Falei, já sentindo o gosto do melhor pudim de brigadeiro do mundo.

—Quer comer? - Perguntou, levantando o rosto para mim.

—Não, obrigada, eu como no hospital quando voltar. - Neguei sem a menor vontade de sair dali. - Que hora você vai para a casa do Mike?

—Chegando lá às nove está bom. Talvez um pouquinho depois. - Falou infiltrando a mão pela minha blusa e deslizando pelas minhas costas até alcançar a regata justa e mais curta que eu usava por baixo sempre que vestia algo mais transparente para ir ao trabalho.

—Eu estava com saudade. - Confessei, me inclinando e grudando um beijo demorado na sua bochecha.

—Eu também, amor. - Falou olhando para cima e me beijando de novo.

Namoramos pelos próximos minutos, trocando muitos beijos, carinhos e rindo vez ou outra de alguma coisa boba.

A mão dele subiu pela minha coxa em direção à minha camisa e abriu os botões rapidamente quando os beijos se tornaram mais quentes, afastando a peça para os lados enquanto descia os beijos pelo meu pescoço em direção ao decote da peça pequena que eu usava por cima do sutiã.

Por mais que estivesse muito gostoso, eu precisava voltar ao trabalho, então me estiquei enquanto isso e puxei seu celular para ver as horas. Fechei os olhos e aproveitei um pouco mais seus beijos na minha barriga à mostra pela camiseta curta, mas o relógio marcando já quase oito e quarenta indicava que eu não poderia ficar.

—Preciso ir. - Me lamentei, soando manhosa até aos meus próprios ouvidos.

—Mas já? - Perguntou da mesma forma, fazendo o caminho inverso e terminando com o rosto escondido na curva do meu pescoço, me envolvendo em um abraço apertado e deitado sobre mim.

—Amanhã eu volto e a gente continua. - Prometi, prendendo-o ali.

—Cedo?

—Uhum, quando sair do trabalho venho direto.

—Vou fazer espaguete para você, então. - Concedeu como se fosse uma recompensa. - Você anda merecendo.

—Ando mesmo, não é? Eu sei. - Afirmei, me forçando para cima e fazendo-o se afastar. - Preciso mesmo ir, Ursinho. E você também, se não quiser perder o início do jogo.

—Me espera, descemos juntos. - Sugeriu, me dando um último selinho e se levantando.

Fechei de novo minha roupa e fui até a sala calçar os sapatos enquanto ele vestia a primeira calça jeans que viu quando abriu o armário e uma camisa xadrez de botões. O esperei amarrar os cadarços do tênis e fazer o melhor que podia com os cabelos, só então saímos juntos.

—Portaria? - Estranhou quando apertei o botão que não me levaria para a garagem.

—Tinha uma vaga aqui na frente, era mais rápido. - Expliquei e ele assentiu.

—Vou com você até lá fora então, depois eu desço. - Ele tateou os bolsos e franziu o cenho. - Esqueci a chave do carro.

—Quer carona?

—Não, obrigado, depois é ruim voltar de táxi. Vou com você até lá fora e subo para pegar.

Passamos abraçados pelo porteiro que sorriu em nossa direção, e caminhamos poucos metros para longe do portão, ficando no meio do caminho entre meu carro e a entrada do prédio.

—Bom trabalho. - Desejou, me prendendo em um abraço demorado. - E tente chegar cedo amanhã.

—Você vai estar dormindo ainda que eu chegue às onze. - Afirmei, olhando para cima para conseguir encará-lo.

—Amanhã não, porque preciso cozinhar para a minha namorada. - Falou como se fosse um evento de extrema importância.

—Que mulher de sorte, essa sua namorada. - Comentei antes de beijá-lo mais uma vez. - Venho o mais rápido que conseguir.

—Até amanhã.

—Divirta-se e mande um beijo para Lisa, Mike e Meg. - Pedi me esticando e grudando nossas bocas em mais um selinho. - Até.

Nos viramos cada um para um lado e caminhei rápido em direção ao veículo, disposta a não chegar no hospital depois do horário que prometi à Luna e Colin. Ainda a alguns passos de distância, apertei o botão que destravaria as portas e olhai para o lado de onde vinham os carros antes de sair da calçada para a rua e abrir a porta do motorista. Joguei os cabelos para o lado distraída e troquei a bolsa de mão, já me preparando para jogá-la no banco do passageiro, mas fui interrompida antes mesmo de pisar na rua quando um homem muitos centímetros mais alto do que eu se materializou na minha frente, vindo de não sei onde.

—Me dá a chave. - Ordenou, mostrando claramente que aquilo não era uma brincadeira.

Por reflexo, dei alguns passos para trás e estendi o que ele me pediu sem dizer nada e sem nenhuma relutância. Nos pouquíssimos segundos que levou para ele dar um passo na minha direção e puxar o objeto da minha mão, minha mente estava completamente livre de qualquer pensamento, exceto do detalhe que eu não ouvi o barulho característico de quando o portão do prédio que acabei de sair se fechava, indicando que a probabilidade de que Harry ainda estivesse em algum lugar atrás de mim era muito grande.

Fechei a mão em punho ao lado do corpo quando o objeto pedido foi tirado dela, mas não consegui me forçar a olhar para outro lugar que não a postura ameaçadora do meu assaltante. Ele olhou de relance para mim e esticou a mão na minha direção, me fazendo fechar os olhos com força para esperar o que eu imaginei ser uma agressão, mas os dedos dele se fecharam no meu pingente e senti a corrente arranhar meu pescoço quando ele a puxou. Abri os olhos a tempo de vê-lo me olhar com mais atenção, de um jeito que não me pareceu nada bom, enquanto colocava no bolso o colar que estava saindo de mim pela primeira vez desde que ganhei.

—Você vem comigo, bonitinha. - Determinou, me arrancando o resto de ar que tinha nos pulmões.

A primeira coisa que me passou pela cabeça foi o desejo gritante de que Harry se mantivesse quieto onde quer que estivesse. Neguei com um aceno, sem conseguir dizer nada, e dei outro passo atrás.

—Não estou pedindo. - Afirmou com um sorriso muito sádico, tirando a arma até então escondida na cintura e apontando para o meu peito.

Se algum dia antes eu achava que já tinha sentido medo na vida, nada do que aconteceu me preparou para a sensação aterrorizante daquele momento. Senti meus olhos marejarem imediatamente, e me forcei a expressar a única coisa que eu conseguiria dizer:

—Não, por favor. - Foi tão baixo que nem sei se ele ouviu.

—Anda. - Falou perdendo a paciência e alcançando meu pulso, por onde me puxou em direção ao veículo.

Antes que eu tivesse dado dois passos para frente, senti o solavanco quando meu cabelo foi puxado no sentido oposto, com força suficiente para me fazer cambalear para trás e minha mão ficar livre daquele aperto violento.

—Leva o carro logo, ela não vai. - Harry determinou, me empurrando para trás dele.

Infelizmente o outro lado não estava tão disposto assim a conversar e negociar as opções, então sua resposta veio na forma de um barulho alto e seco que nem os muitos filmes de guerra que eu já tinha assistido previram com tanta exatidão a capacidade de nos deixar atônitos.

O som do disparo lavou de mim qualquer pensamento coerente, eu só conseguia manter os olhos vidrados naquela cena que ainda não entendia completamente. Vi a arma ser apontada na minha direção, mas por algum motivo ele desistiu e se virou apressado para o lado oposto a onde eu estava. Embora eu ache não levou dez segundos inteiros até meu carro sumir de vista a uma velocidade muito acima da permitida para aquela rua, a cena se desdobrou em câmera lenta diante dos meus olhos.

Levei um momento até conseguir sentir minhas pernas e me permitir olhar para baixo, vendo minha roupa ainda imaculadamente branca. Harry ainda estava em pé na minha frente, provavelmente absorvendo seu próprio pânico antes de se virar e dizer que estava tudo bem, como sempre fazia.

Respirei fundo e tentei organizar meus movimentos para ir até ele, mas antes que eu completasse essa ação ele cambaleou um passo para trás, se mantendo em pé com esforço, e a compreensão me atingiu como um meteoro.

—Não! - Gritei em desespero quando ele se apoiou em mim para não cair. - Não, não. - Repeti como se aquilo fosse tornar a cena menos real.

Saindo do meu estado letárgico, o ajudei a se sentar na calçada e olhei em pânico para a mancha de sangue que crescia na roupa dele, naquele momento eu não sabia o que fazer e isso era bem irônico no meu caso. Fiquei ajoelhada à sua frente um momento, querendo desesperadamente acordar daquele pesadelo, mas foi a voz dele, mais baixa do que o normal e com muito esforço, que me despertou:

—Amor, eu preciso de você agora.

Aquele tom me quebrou por dentro e eu não consegui mais impedir as lágrimas de caírem, mas também me mostrou que eu não podia me desesperar agora. Sacudi a cabeça e me arrastei para perto, parei com os joelhos no chão ao lado das pernas dele e ofereci meu apoio.

—Você precisa se deitar. - Determinei e ele fez o que eu pedi.

Me inclinei junto com ele, apoiando sua nuca para que não houvesse impacto, e senti o tecido empapado da sua camisa grudar na minha perna, deixando minha calça com uma considerável marca vermelha. Tentei a todo custo não pensar nisso agora, porque eu precisava mais do que nunca ser uma médica e não uma namorada.

Não consegui me forçar a encarar sua expressão de dor e desviei o olhar para o outro lado, sentindo minha bochecha úmida e quente pelas lágrimas que eu não queria demonstrar agora. Ele é quem deveria estar assim e não eu, no entanto seu rosto não demonstrava nada mais do que uma calma comedida, como se confiasse que eu resolveria tudo.

Olhei em volta e vi o porteiro encarando nós dois com o olhar desesperado. Não consegui medir o tom e quando vi já tinha ordenado a ele com um grito rude:

—Chame uma ambulância!

Não o esperei sair dali e me voltei para o Harry, que respirava com certa dificuldade e tentava a todo custo não se mexer. Levei minhas mãos ao primeiro botão da camisa dele, mas elas tremiam tanto que abri-lo seria impossível, então puxei com força, fazendo todos eles voarem para qualquer lugar ali perto.

O sangue acumulado me impedia de ver o que quer que estivesse acontecendo por baixo, mas eu precisava saber. Espantando o pensamento indesejado de como minhas mãos estavam impróprias para o que eu ia fazer, passei por cima do ferimento, afastando para o lado a poça úmida, e limpei na calça.

—Lado direito, graças a Deus. - Sussurrei para mim mesmo quando vi o pequeno furo no seu peito.

Olhei para os lados desesperada, pedindo que o resgate chegasse logo, porque não tinha muito que eu pudesse fazer sem recursos.

Ele continuava sangrando e isso era o que mais me preocupava. Sem me preocupar com os botões ainda fechados, puxei minha camisa para cima e a tirei.

—Não que eu esteja reclamando, mas isso não é uma boa hora, minha linda. - O ouvi dizer com um sorriso de canto.

Embolei a peça de qualquer jeito nas mãos antes de pressioná-la sobre seu ferimento, não conseguindo conter o sorriso com sua tentativa de me distrair.

—Vai doer um pouquinho. - Avisei, demonstrando quanto eu lamentava aquilo. - Preciso ver se tem ferimento de saída, tenho que passar a mão nas suas costas.

—Ta bom. - Concordou, mas aparentemente sem entender o que aquilo significava.

—Você precisa me ajudar, amor, levanta só um pouquinho. - Pedi e ele o fez com certa dificuldade. "Nada, ainda bem!", pensei com alívio. - Pronto.

—Pare de me bajular, você nunca me chama de amor. - Acusou, tentando rir.

Harry tinha que ficar acordado, isso era tudo o que me preocupava no momento, porque eu não sei se me manteria tão calma assim caso ele perdesse a consciência, e ele precisava de mim. Olhei para os lados, e com um lamento interno vi que ainda não havia nem sinal da ambulância.

—Já chamei sim, umas duas ou três vezes, você deveria falar que é lindo. - Respondi para que ele continuasse falando, e senti uma nova leva de lágrimas esquentar meu rosto.

Sua mão tomou impulso para secá-las, mas ele se interrompeu no meio do caminho com um gemido de dor.

—Não, fica quietinho. - Pedi, entrelaçando nossos dedos e mantenho minha peça de roupa, já totalmente molhada, pressionada apenas com uma mão. - Me conte alguma coisa que eu ainda não sei.

Ele estava ficando pálido e minha sanidade indo embora junto com sua cor, estava cada vez mais difícil controlar até a firmeza da minha voz.

—Eu não vou morrer, Ratinha. - Falou com tanta segurança que eu me apeguei àquilo como se fosse a única verdade possível.

—Claro que não. - Tentei afirmar tão convincente quanto, mas falhei miseravelmente. - Você não ousaria, três anos não são o suficiente. - Falei apertando sua mão.

Ele me lançou um sorriso cúmplice, mostrando que também queria mais do que esse tempo comigo.

—Estou ficando com frio, é normal? - Soou assustado pela primeira vez.

Ouvi aquilo alarmada, porque o próximo sintoma era a perda de consciência e isso me desesperaria, mas tentei responder o mais clinicamente possível.

—É normal, mas já vai passar. - Falei com a voz falhando.

Ele assentiu minimamente e fechou os olhos.

—Harry, abre os olhos. - Pedi assustada e ele o fez. - Me conte algo que eu ainda não sei, vamos.

—De novo? - Perguntou divertido. - Você está muito curiosa hoje.

O tom mais lento da voz dele não era um bom sinal.

—Aprendi com o melhor. - Afirmei olhando para os lados, ainda sem nenhum sinal do socorro.

—Você é linda. - Falou com esforço para manter os olhos abertos.

Mordi o lábio com força para conter o desespero, por mais que eu o quisesse acordado já vi tanto essa cena que sabia que ele não aguentaria.

—Você é lindo. - Afirmei também, no momento exato em que ele parou de apertar minha mão. - Não! Harry, não, por favor. - Pedi, mesmo sabendo que era em vão, sentindo o meu tremor aumentar consideravelmente.

Uma infinidade de tempo depois, sem que eu tivesse sequer ouvido o barulho da sirene, me senti ser puxada para cima e tentei protestar, mas o uniforme típico dos paramédicos que eu via diariamente me lançou um jorro de alívio tão grande que eu suspirei e me afastei.

Assim que a maca foi levantada e guiada para a ambulância, me apressei e subi também no veículo, sob o olhar reprovador de um dos profissionais que eu não me lembrava de já ter visto.

—Moça, você não pode...

—Ela é médica. - O outro o interrompeu, se sentando do meu lado e me poupando de ter que responder.

As portas se fecharam e o veículo arrancou às pressas dali.

Senti seu pulso mais fraco que o normal, mas ainda perceptível, e me permiti encarar isso como uma ótima notícia. Minha blusa empapada de sangue tinha sido descartada e substituída por uma generosa camada de gaze. Empurrei a mão do paramédico ao meu lado e tomei seu lugar pressionando o local da ferida.

Olhei para o rosto mais pálido que o normal do meu namorado, agora parcialmente coberto pela máscara de oxigênio, e implorei a Deus que isso não fosse nada e terminasse tudo bem.

—Doutora, coloque as luvas pelo menos. - O profissional à minha frente interrompeu minha prece estendo um par para mim.

—Eu não preciso de luvas com ele. - Explodi em um grito histérico, e então irrompi em lágrimas novamente.

Os dois se entreolharam e não disseram mais nada durante todo o caminho. O hospital onde eu trabalho era o mais próximo, então nosso destino certamente seria ele. Levantei a cabeça e ordenei sem me lembrar dos bons modos:

—Ligue para a emergência do hospital e diga que eu quero o enfermeiro Colin. - Enquanto a ligação era feita, continuei. - Já informe a situação para ele, quero que esteja tudo pronto quando chegarmos.

Ele fez o que pedi e depois disso esperei mais uma eternidade até o veículo parar e as portas serem abertas, finalmente. Colin foi ótimo em preparar tudo, porque mal avistei o lado de fora e a maca já tinha sido puxada por uma leva de profissionais concentrados e apressados.

Agora com as mãos livres, joguei os cabelos para trás e prendi do jeito que eu já tinha prática em fazer antes de prestar atendimentos emergenciais. Pulei de lá de dentro e comecei a correr atrás da equipe que já o atendia, mas me choquei com um peito largo que me impediu e prendeu em um abraço quando eu tentei me desvencilhar.

—Não! - Gritei com ele quando entendi porque estava me prendendo ali.

—Gata, você não vai.

—Eu preciso. - Teimei tentando me soltar, vendo por cima do seu ombro o instante em que eles sumiram pelas portas da emergência e viraram à direita para as salas de trauma.

—Você não pode, Ginny. - Insistiu sério, me mantendo no lugar.

—Por favor, Colin. - Implorei batendo o pé como uma criança, mas seu olhar foi inflexível.

Desisti quando vi que não havia chance nenhuma de que ele me deixasse ir atrás e afundei o rosto em seu peito, liberando todo o desespero que reprimi até então. Recebi seu abraço reconfortante, sentindo os ombros sacudirem a cada soluço enquanto ele afagava minha cabeça.

—Eles sabem quem é gata, vão fazer o melhor por ele. - Me tranquilizou.

—Quem está atendendo? Quem de trauma? - Perguntei tentando mudar o foco e colher o maior número possível de informações que eu podia.

—A Smith. - Respondeu com um lamento.

Eu não duvidava da competência da Anne, mas sua antipatia por mim era suficiente para me fazer questionar a ética.

—Por que? - Perguntei alarmada.

—Era quem estava disponível.

—Vai lá, gato, por favor, eu confio em você.

—Você não vai ficar aqui sozinha, Gin. - Explicou como se estivesse falando com uma criança.

—Por favor, Colin, não sou eu que precisa de você agora, e você é o melhor. Por favor! - Insisti sem nenhum outro argumento.

—Eu vou, mas você vai sentar ali na sala de espera e aguardar, gata, estou confiando em você. - Falou firme e me arrastou para dentro depois que concordei com um aceno.

Quando todo mundo me olhou com um misto de pena e curiosidade, pensei se era assim que todos os familiares dos meus pacientes se sentiam, e senti minha empatia por eles aumentar a níveis gigantescos.

Colin me guiou até um banco livre e apertou minha mão de um jeito reconfortante antes de se aproximar do balcão, mexer rapidamente no computador por trás dele e sair correndo em direção às salas de trauma. Senti um impulso repentino de ir atrás, mas eu tinha prometido a ele que ficaria quieta e isso me deteve.

Olhei para baixo e vi minha roupa suja de sangue, as mãos da mesma forma. As paredes brancas ao meu redor não me pareciam hoje o que eu chamava de “acolhedor local de trabalho”, porque eu estava novamente do outro lado, do lado daqueles que não podem fazer absolutamente nada.

Por mais que eu repetisse para mim mesma que ficaria tudo bem, senti devagarzinho o medo me afundando, como se eu tivesse dando passos lentos em direção à parte funda de uma piscina muito gelada. Eu já tinha visto aquela cena antes, e eu estava exatamente do mesmo lado: o lado das pessoas que não podem fazer nada.

Era de novo a situação que eu não podia controlar, outra vez a sala de espera de um hospital, o relógio à minha frente até parecia o mesmo de anos atrás, lento o suficiente para não deixar a hora passar, e eu estava sozinha como da primeira vez. Eu já tinha vivido aquela cena, por um momento quase me senti com dezesseis anos de novo, a mesma menina assustada.

Sacudi a cabeça com rispidez para espantar aquele pensamento, porque apenas a ideia de que o fim também fosse igual me desesperava mais do que eu conseguia suportar.


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Notas finais do capítulo

Oi, pessoal!
Nada a declarar, só que já espero as ameaças ahahah
Nos vemos nos comentários.
Beijos, e até semana que vem.

Crossover: ontem foi postado o último capítulo de Backstage, e está extremamente emocionante! Não deixem de ler.
https://fanfiction.com.br/historia/692675/Backstage/capitulo/33/



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