Déjà vu escrita por Paulinha Almeida


Capítulo 38
Capítulo 38




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O mês seguinte ao aniversário do meu irmão passou rápido e sem grandes acontecimentos. Encontrei algumas vezes minha vizinha, melhor amiga e, agora, cunhada, e ela estava sempre correndo para ir ou voltar do trabalho. Ron estava animado com o lançamento da segunda fase do seu jogo mais popular. Harry precisou viajar à trabalho por uma semana e voltou com tanta saudade quanto eu sentia por não vê-lo nesses dias.

Saí do hospital numa noite atipicamente quente de Abril e fui direto para a minha casa, disposta apenas a comer e afundar na minha cama, mas meu celular tocou antes mesmo que eu trancasse a porta. O nome do meu irmão na tela não era incomum, mas o tom comedido com que ele me cumprimentou, sim.

—Tudo bem, Ron?

—Tudo e você?

—Também. Aconteceu alguma coisa?

—Não, nada, eu só queria saber se você não quer vir jantar aqui em casa comigo e a Mione hoje.

A voz dele não estava alerta, o que me tranquilizava quanto a ter acontecido alguma coisa ruim, mas algo me dizia que eu não voltaria a mesma desse tal jantar. Eu não estava com muita vontade de sair de casa, muito menos de enfrentar noticias bombásticas, mas não poderia dizer não a eles.

—Claro, Ron, agora?

—Sim, pode vir, estamos te esperando.

Desliguei o telefone e fiz o caminho inverso, aproveitando a porta ainda aberta. Cruzei as ruas escuras até a casa dele, estacionei atrás do carro da minha vizinha e respirei fundo antes de tocar a campainha.

—Oi, Gin.

—Oi, Mione. – Trocamos um beijo de cumprimento enquanto eu avaliava sua expressão feliz, o que me deixou ainda mais em alerta.

—Oi! – Ron veio ao nosso encontro e se abaixou para me dar um beijo. – Vem, já está pronto.

Me surpreendeu ele ter preparado canelone de frango com requeijão, que era o meu prato preferido, e embora estivesse uma delícia, eu não estava conseguindo aproveitar a refeição com os dois se entreolhando a cada dois minutos na minha frente.

—Gente, por favor falem logo o que vocês tem para dizer, porque não sei mais se fico preocupada ou desesperada. – Pedi soltando os talheres e os encarando, sem dar indícios de que abriria mão da minha resposta.

Minha amiga respirou fundo e me olhou decidida, muito diferente do Ron, que me encarava meio cauteloso, sem saber como dizer.

—Primeiro fique tranquila, não há nada para se preocupar nem se desesperar. – Mione falou tranquilamente. – Ao contrário, eu acho que você vai gostar bastante.

Ai meu Deus, só pode ser o que eu estou pensando.

—E a gente não planejou nada disso, mas estamos muito felizes. – Meu irmão completou, olhando para mim ainda sem saber como dizer.

Não que precisasse, eu seria capaz de apostar o teor da notícia, e minha cabeça já estava rodando.

—Vamos ter um bebê. – Mione falou de uma vez.

Eu não sabia dizer como estava minha cara, mas os dois ficaram me olhando de um jeito engraçado, como se esperando alguma reação da minha parte. Apoiei o rosto nas mãos e respirei fundo antes de olhar para eles de novo.

—Eu não sei o que dizer. – Confessei minha confusão. – Parabéns?

Os dois riram da minha falta de reação imediata. Eu não queria que eles pensassem que não gostei da notícia, mas a questão é que nem eu sabia ainda o que estava pensando, como diria a eles?

—Foi meio de surpresa e eu não sei ainda o que pensar disso, mas... – Minha frase morreu diante dos olhares divertidos dos dois. – Ah, vocês me entenderam. – Deixei para lá e nós três rimos.

—Foi bem de surpresa para nós também, Gin. – Ron falou com os braços ao redor dos ombros da namorada. – Mas passado o susto, eu já estou me sentindo todo bobo.

A cara dele não negava o fato, mas optei por não comentar sobre isso e embrenhar por assuntos que eu conseguiria manter normalmente:

—E você já foi ao médico, Mione?

—Sim, fomos ontem e ele confirmou que estou de quatro semanas e está tudo bem com nós dois.

—Se você precisar de algum tipo de acompanhamento especial ou quiser tirar algumas dúvidas, no hospital tem uma obstetra maravilhosa, eu consigo uma hora com ela quando você quiser.

—Obrigada, Gin. – Agradeceu com um sorriso radiante, os olhos brilhando.

Meu Deus, cadê a minha amiga que me diria que já tem um médico ótimo?

—E o que vocês vão fazer agora? – Perguntei olhando de um para o outro. – Quer dizer, tem um bebê chegando e não que eu entenda muito deles, mas requerem uma série de cuidados e coisinhas.

—Por enquanto a única coisa que sabemos é que em duas semanas vamos para a Austrália contar aos meus pais, quando voltarmos pensamos nisso, não é, amor?

—Sim, mas com certeza vamos ao menos morar juntos, não vou ficar longe da Mione nesse período delicado, quero participar de tudo.

Era o filho ou filha do meu irmão e da minha melhor amiga, o que quer dizer que eu seria tia de todas as formas: sangue e consideração. Eu ainda não tinha digerido a ideia, mas de uma coisa eu tinha certeza:

—Eu quero acompanhar tudo também, se vocês não se importarem.

—Nós fazemos questão. – Ron garantiu com um sorriso satisfeito.

Terminamos o jantar enquanto ela me contava como desconfiou e descobriu tão rápido, entre outras coisas que já estava pensando para o bebê. Vê-los tão felizes assim, especialmente minha amiga, me deixava feliz por eles também. Quando me despedi, horas depois, os dois me acompanharam até a porta e trocamos um abraço apertado antes de eu ir para casa.

Me deitei na minha cama ainda não conseguindo pensar em nada além do fato de que muito em breve a minha família, até então composta por apenas duas pessoas, teria mais um integrante, e que ele precisaria de toda atenção e cuidado que o Ron pudesse dar. Num rompante de infantilidade do qual eu não me orgulho, pensei em que é que eu faria agora quando precisasse da atenção dele. Eu não seria mais a única, e nem a prioridade.

Esse bebê seria meu sobrinho ou sobrinha e não tenho dúvidas de que eu o amaria, mas também não consegui evitar dormir ainda sentindo um pouco de ciúmes da sua chegada.

Eu precisava conversar com alguém sobre isso, e cheguei ao hospital decidida a falar com o Colin, porque ele sempre escutava com atenção todas as confusões emocionais que eu estava disposta a compartilhar. O encontrei no pré-operatório enquanto higienizava minhas mãos, e estranhei ele passar por trás de mim com as mãos devidamente comportadas ao lado do próprio corpo, e não na minha bunda.

—Bom dia, Gin. – Cumprimentou muito formal para os padrões do meu amigo.

O observei de canto de olho enquanto lavava as próprias mãos e se enfiava no centro cirúrgico em frente ao meu, onde sua presença tinha sido requisitada. Deixei o assunto de lado por um tempo, enquanto trabalhava para ajudar a uma garotinha de sete anos a ter o braço no ângulo normal novamente, após uma fratura feia.

—Mary, você viu o Colin? – Perguntei a uma enfermeira amiga dele, assim que terminei de informar à família que havia sido um sucesso.

—Está na lanchonete, acabou de sair para comer alguma coisa.

—Obrigada. – Sorri para ela e fui até lá.

O encontrei sentado sozinho em uma mesa de canto, olhando emburrado para a lata de refrigerante à sua frente. Comprei meu próprio almoço e me sentei com ele sem esperar pelo convite.

—Fala, gato, o que tem de errado? – Perguntei sem nenhum rodeio.

—E por que teria algo errado? – Ergueu a sobrancelha para mim com um ar de superioridade nada convincente.

—Não me chamou de gata, não me apalpou, não me convidou para almoçar... – Enumerei os motivos. – Bem você não pode estar.

Ele rolou os olhos e se rendeu, apoiando o queixo na mão antes de começar a dizer:

—Eu acabei brigando com o Ced ontem.

—Briga feia? – Perguntei interessada, porque ele realmente parecia feliz ultimamente.

—Não, foi besta demais e é isso que me deixa mais bravo. – Se virou para mim com a mão erguida numa pose indignada. – Ele quer que eu renove todo o meu guarda roupa para o inverno!

Era tão absurdo imaginar o Colin numa situação dessa que eu gargalhei.

—Não tem graça, Ginny! – Me repreendeu, jogando o guardanapo em mim.

—Tudo bem, desculpa. – Me recompus e ele voltou à sua pose deprimida. – Mas você não que comprar umas roupas?

—Pra que? Meu guarda roupa está ótimo como está, tenho mais roupas do que consigo usar e não preciso de mais. Mas o Ced parece achar que a vida só faz sentido se ele comprar uma peça nova por semana.

Ele bufou irritado ao fim da frase e praguejou baixinho, demonstrando toda sua frustração. Decidi deixar minhas questões emocionais para lá e oferecer minha companhia silenciosa, que ele agradeceria em outra ocasião quando não estivesse tão irritado. Voltamos ao trabalho assim que eu terminei de comer e não o vi mais durante a tarde.

Um tempo depois meu celular tocou e estranhei ao ver o nome da minha cunhada na tela, mas ao mesmo tempo me senti preocupada de um jeito diferente, mais protetor.

—Oi, Mione, tudo bem?

—Oi, Gin, tudo e você?

—Também.

—E o bebê?

—Nós dois estamos ótimos. – Me respondeu satisfeita. - Só queria perguntar uma coisa, o Colin está bem? Porque o Ced está com a roupa da tristeza dele e isso nunca é um bom sinal.

—Roupa da tristeza? – Meu tom demonstrava por si só como eu achava isso absurdo.

A risada dela também indicava que não via muito sentido.

—Pois é, acredite, isso existe no mundo dele.

—Que mundo peculiar. – Comentei mais para mim, mas ela riu outra vez mesmo assim. – Eu o vi hoje e ele estava triste, mas demonstrando de um jeito que eu consigo entender.

—É um jeito tão engraçado quanto?

—Mais ou menos, quando está triste ele não passa a mão em mim e nem me chama de gata, chama pelo nome mesmo.

Ouvi a gargalhada dela do outro lado e acabei rindo junto.

—Agora que já sei mais ou menos o motivo, vou falar com o Ced antes que ele exploda em chocolate. Obrigada, Gin, e desculpe atrapalhar.

O exagero que eu quase conseguia ver só em ouvi-la falar me fez rir com vontade.

—De nada, Mione, e não tem problema nenhum. Beijos para vocês dois. – Me pareceu errado mandar meu carinho apenas para ela e esquecer de quem agora ela carregava.

—Beijos de nós dois, titia. – Retribuiu com o tom infinitamente mais carinhoso.

Encerramos a ligação e eu voltei ao trabalho até que já estivesse na hora de ir para casa. Me troquei e fui até a recepção atrás do meu amigo, que continuava com a mesma cara de insatisfeito.

—Oi, gato.

—Oi, gata. – O tom usado entregava que ele só me chamou assim para que eu não tocasse mais no assunto.

Dei a volta no balcão e me sentei na mesa em frente a ele.

—É só uma roupa, Colin, compra logo e pronto.

Ele me olhou cético, a sobrancelha erguida em desafio.

—Todo ano a Mione me arrasta pro shopping com ela e brinca de Barbie comigo o dia inteiro, me fazendo experimentar e comprar um monte de coisas. Voltamos com sacolas de coisas que eu não precisava e ela fica tão feliz. – Ele já me olhava com atenção ao fim do meu relato. - E olha que a Mione é só minha melhor amiga. E se quer saber, no fim eu até me divirto e sempre tenho um dia ótimo.

Ele me olhou de canto por um tempo, sem dizer nada, mas pela sua cara eu sabia que estava ponderando o que eu acabei de dizer.

—Já vou, gato, amanhã conversamos mais.

—Tchau, gata, bom descanso.

Ele retribuiu meu abraço rápido e eu me levantei para sair, deixando-o pensativo e levando de volta comigo todas as coisas sobre as quais eu queria ter conversado.

Atravessei o portão da garagem alguns minutos depois e me perdi em pensamentos enquanto subia de elevador até meu andar. Distraída, destranquei a porta e literalmente soltei um grito quando quase colidi com o Harry, assim que dei um passo para dentro.

—Oi, Ratinha! – Falou sorridente, se aproximando e me prendendo em um abraço.

—Por que você quer me matar de susto? – Perguntei exagerada, retribuindo o carinho.

—Estava com saudade de você, não nos vimos e mal nos falamos essa semana.

—Você que anda trabalhando demais, Ursinho. – Falei enquanto fechava a porta atrás de mim.

—Não quero mais trabalhar tanto assim, não, isso não está fazendo bem ao nosso relacionamento. – Fez manha, apertando os braços ao redor da minha cintura com o rosto encostado no meu pescoço.

—Eu também estava com saudade.

Me virei de frente e ele apertou os dedos na minha cintura, aprofundando nosso beijo. Espalmei as mãos no peito dele e o empurrei.

—Espera, tenho uma coisa para te falar.

Ele me olhou sem saber o que esperar, mas não disse nada, apenas me encarou com os olhos arregalados:

—Tenho que me preocupar?

A pergunta me fez rir e ele pareceu mais relaxado.

—Não, não precisa. – O puxei pela mão em direção ao sofá. – Senta aqui comigo, estou precisando desabafar.

—Que aconteceu, Gin? – Perguntou com a voz suave, se acomodando de frente para mim no sofá, minha perna sobre a dele.

—Vou ter um sobrinho. Ou sobrinha.

A boca dele se abriu em um “O” surpreso.

—É, também fiquei com essa cara. – Ele riu, suavizando a expressão. – Eles me contaram ontem, Mione está de quatro semanas e os dois estão com cara de bobos.

Ele me olhou por um tempo, me estudando, e eu sustentei seu olhar sem me constranger.

—E como você está com isso?

Hesitei uma vez antes de dizer, mas eu ia ter que falar sobre isso com alguém e dessa vez não dava para ser com o Ron.

—Eu estou com ciúmes. – Soltei de uma vez, me inclinando e deitando o rosto no ombro dele. – Ridículo, né?

Ele riu sem tirar sarro, só um sorriso mesmo, e fez carinho na minha cabeça.

—Não acho ridículo, não, Ratinha, acho até bem normal. Você é o bebê do Ron há muito tempo. – Falou com a voz suave. – Aliás, acho super legal o jeito que vocês cuidam um do outro.

—Eu estou feliz, não tem como não estar, mas sei lá, é estranho. – Me afastei e encostei a cabeça no sofá, voltando a olhar para ele.

—O que é estranho? – Perguntou fazendo carinho no meu rosto.

—Eu achava que a minha família seria só nós dois sempre, sabe? E agora não é mais.

O semblante dele ficou mais sério por um momento, com uma sombra diferente da atenção de quando cheguei, mas logo se suavizou e voltou ao carinho que estava me fazendo.

—Você vai gostar de ter uma família um pouquinho maior que isso, minha linda, tenho certeza.

—Eu já gosto da ideia desse bebê, sabia? Acho que o ciúmes vai passar.

—Daqui a pouco você vai estar sentindo ciúmes é do bebê, porque eu vou ser o tio mais legal. – Falou convencido.

Olhei feio para ele, mas não consegui segurar a risada.

—Pode sair de cima do meu sobrinho, moleque, ele tem que gostar mais de mim.

—E se for ela?

—Tem que gostar mais de mim do mesmo jeito, ainda vai ser minha. – Terminei minha frase indignada em meio a risadas de nós dois.

—Credo, só quero brincar com ela um pouquinho. – Fez um bico que eu não resisti em beijar.

—Só um pouquinho mesmo, porque ela vai ser minha sobrinha, então com certeza vai ter um fraco por você, não posso arriscar.

—Que bom saber disso, vou me aproveitar dessa queda das mulheres da sua família por mim.

—Eu só espero continuar sendo a primeira. – Cobrei com o dedo apontado para ele.

—Ratinha, você é a única. – Me puxou pela cintura de modo que eu me acomodasse em seu colo. – Do mundo.

Aquela abordagem me agradava mais, então nem tentei frear meu sorriso satisfeito. Harry sem dúvidas sabia como me agradar, e fez isso pelo resto da noite até adormecermos grudados um no outro.

O contato entre Mione e eu ficou muito mais assíduo depois da novidade, porque eu estava falando sério quando disse que gostaria de acompanhar de perto a gravidez. Além disso, conversar com ela nunca foi uma coisa chata, a carga de novidades diárias só deixou mais legal.

Um dia antes do embarque dos dois para a Austrália, Harry e eu saímos com os amigos dele para um encontro no mesmo bar estilo cassino a que eu já tinha ido uma vez e ganhado de todos eles no meu jogo preferido. Fomos um dos primeiros a chegar e dividimos a mesa com Alice e Robert, seu namorado, até que os outros chegassem também. Mike e Lisa não viriam por causa da Meg, que estava a coisa mais linda e esperta do mundo com seus sete meses de vida, mas Jess, Tom e Dave já tinham confirmado presença.

Estávamos em meio a uma gargalhada coletiva quando a voz de animada do Dave nos cumprimentou. Me afastei do abraço do Harry e joguei o cabelo para trás, me virando para cumprimentá-lo, mas a primeira pessoa que vi e me apertou imediatamente num abraço não foi ele.

—Oi, Gin, tudo bem? Quanto tempo!

—Oi, Kate. Tudo ótimo, e com você?

—Também. E ai, gatinho? – Me soltou e fez o mesmo com o Harry.

Precisei de muito auto controle e paz interior para ignorar os dois e cumprimentar os demais recém chegados. Quando voltei à minha cadeira, Harry já estava sentado na dele e eu retornei à nossa posição inicial, com seus braços ao meu redor e encostada levemente em seu peito. Tão logo me sentei, Kate também se acomodou na única cadeira livre, do meu outro lado.

—Vocês já pediram alguma coisa? – Jess perguntou, se acomodando ao lado do Dave, de frente para mim.

—Só algumas bebidas para esperar vocês chegarem. – Alice respondeu.

—Então vamos começar a jogar? – Dave falou empolgado.

—Da um tempo, Dave, vamos comer alguma coisa antes. – Jess sugeriu, empurrando de leve o ombro dele.

Pensei ter ouvido uma lufada mais pesada de ar ao meu lado, vinda de onde a Kate estava sentada. Olhei de canto para ela e a vi muito interessada em cutucar alguma coisa na própria unha.

—Como você quiser, madame. – Ele respondeu irônico e chamou um garçom que estava passando ali por perto.

Nossas porções chegaram minutos depois e a conversa se estendeu enquanto os pratos eram esvaziados. Bebidas foram chegando no mesmo ritmo, assim como os refrigerantes do Harry.

—Podemos jogar agora? – Dave repetiu o convite e todos concordaram.

Ele começou a embaralhar as cartas e as pessoas foram se agrupando ao redor da mesa. Harry me puxou para mais perto e sussurrou no meu ouvido:

—Você quer jogar?

—Não faço questão.

—Então me conta o vício deles, quero dar um show igual ao seu naquele dia. – Pediu com os olhos brilhando de empolgação.

Posicionei as mãos em concha ao redor da boca para evitar que ouvissem qualquer coisa do que eu diria a seguir, e contei a ele o que me pediu, facilitando o caminho para que colocasse em prática os truques que o ensinei.

—Vamos, doutora? – Dave convidou num tom debochado, ele ainda não havia tido sua revanche.

—Hoje não, Dave, vou mandar o meu correspondente direto.

Harry se levantou e caminhou até a cadeira vazia mais próxima da mesa sob risadas, sua falta de habilidade era conhecida no grupo.

—Nos represente, Ursinho. – Incentivei com uma palmadinha na bunda dele quando passou na minha frente.

Me dei conta do apelido assim que o pronunciei, mas todos já haviam escutado e a gargalhada foi geral. Harry se virou para mim com o semblante bravo e eu o olhei de volta com um sorriso amarelo.

—Desculpa. – Murmurei lentamente para que ele conseguisse ler meus lábios.

—Vem, Ursinho, está demorando muito. – Tom convidou em tom de piada.

—O apelido é de uso pessoal e intransferível, Tom, então nem se atreva a usar ou vou aí e acabo com suas fichas em três jogadas. – Ameacei, o tom dividido entre falar sério e estar brincando.

—Melhor parar, então. – Ele concordou achando graça, mas deixou o assunto para lá.

Nas primeiras rodadas Harry estava meio tímido, mas aos poucos foi se soltando e acabando com as piadinhas que lançavam a ele. Eu estava completamente distraída olhando o jogo à minha frente quando a voz ao lado chamou minha atenção.

—Que anel lindo! – Kate exclamou com admiração, se inclinando para frente e olhando de perto. – Posso ver?

—Claro. – Estendi minha mão para que ela visse melhor a pedra lapidada em formato de coração.

—Harry arrasou no presente. – Comentou impressionada.

—Não foi o Harry, foi meu irmão.

—Achei que fosse ele, me parece exatamente o tipo de presente que ele te daria. Uma joia para alguém que ele considera tão valiosa quanto. – Explicou me olhando com cumplicidade.

Eu tinha uma imagem pré-concebida da Kate, de que eu não deveria gostar dela por pura implicância. Mas ela insistir em ser amável assim comigo deixava a minha tarefa difícil.

—Ele me deu essa. – Puxei o pingente e mostrei a ela.

—É o símbolo da sua profissão, não é? – Olhou a peça com atenção e eu assenti. – Que lindo!

—Eu também acho, adoro meu colar.

Ela me lançou um sorriso compreensivo, que me dizia perfeitamente que ela entendia por que e eu tinha razão. O assunto morreu por um tempo e nos concentramos novamente na bagunça que eles faziam enquanto jogavam, as piadas ditas em vozes mais altas do que o necessário e as apostas gritadas com presunção e segurança para fazer o adversário desistir.

Quando meu olhar cruzou com o do Harry, ele me lançou seu sorriso de canto que eu já sabia traduzir, e esse queria dizer que ele tinha me visto conversar com a amiga e estava achando graça. Notei também que sua pilha de fichas estava bastante equilibrada com a do Dave, que claramente era o melhor jogador entre os outros, e não pude deixar de me sentir um pouco orgulhosa.

—Eles parecem bem íntimos, né? – Kate chamou minha atenção de novo, mas sem a animação de antes.

—Desculpe, quem? – Desviei meus olhos para ela.

—Jess e o Dave.

Olhei disfarçadamente para os dois e o vi cochichar alguma coisa no ouvido dela, que riu com vontade. Me lembrei do Harry me contando que a Kate era apaixonada por ele, o que com certeza explicava seu tom de voz chateado.

—Eu acho que não, Kate, me parecem amigos.

Ela riu sem humor e me olhou também.

—O Harry com certeza te contou. Ridículo da minha parte, né?

—Sinceramente, eu não acho. Não posso dizer que é ou não é uma boa ideia, porque eu só conheço o Dave que senta com a gente na mesa de um boteco e fala besteira o tempo todo, mas para você gostar dele eu tenho certeza de que há motivo suficiente.

—Sim, há, mas agora já não sei se eles são reais ou existem só na minha cabeça.

Não soube o que responder para isso, então me concentrei por um tempo na empolgação do jogo.

—Quer ouvir como tudo aconteceu? Aí você me diz sua opinião. – Perguntou de repente.

Eu a olhei meio sem saber o que dizer, porque não tinha ideia de como reagir a essa intimidade toda adquirida de forma tão rápida. Mas por outro lado, era amiga do Harry, irmã do Mike e cunhada da Lisa, ela com certeza tinha cursos avançados em como fazer amigos de infância com apenas poucos encontros.

—Quero, mas vamos pedir outra bebida antes porque acho que essa história é longa e não vou querer interromper.

Quando o garçom colocou na nossa frente mais duas caipirinhas de morango, vislumbrei de relance o olhar divertido do Harry para mim enquanto eu entregava o copo à minha companheira de conversa, mas não me atentei muito a isso e a incentivei a começar a história. Em resumo, os dois se conheciam já há bastante tempo e entre uma carona e outra depois dos encontros de todo mundo as coisas foram acontecendo e eles tiveram muitos encontros a sós no último ano, e foi quando ela acabou concretizando a pequena queda que sempre teve por ele e se apaixonando. Acontece que Dave leva tudo na brincadeira demais, inclusive o que os dois têm, e isso chegou ao limite do aceitável quando ele usou um dia em que eles estavam na praia para ficar com outra pessoa, sob o pretexto de que eles não tinham um relacionamento. E agora ela achava que ele estava saindo com a Jess também.

—Mas que... – Parei sem saber como completar a frase.

—Filho da puta? Idiota? Animal? – Ela o fez por mim.

—Sim.

—Pois é.

A deixei ficar pensativa por alguns minutos, enquanto ponderava ou não o resultado das minhas observações enquanto ela se estendia em sua história. Decidi que faria bem a ela saber.

—Mas eu não acho que ele tenha algo com a Jess. – Sua atenção voltou a mim novamente. – Pelo menos, não algo que ele valorize.

—Por que você acha isso?

—Observei enquanto você falava, e ele te olha o tempo todo.

Kate arqueou a sobrancelha em dúvida, mas balancei a cabeça afirmativamente.

—Vocês ainda saem juntos?

—As vezes, a última faz umas duas semanas.

—E quem convida quem?

—Normalmente ele me convida.

—Para de aceitar, faz ele entender que se for só isso não quer mais, aí você vê no que dá. – Sugeri sob seu olhar atento. – Se ele também quiser, vocês se entendem, se não, já desencana de vez e para de esperar.

—É, faz sentido. – Falou pensativa, mas logo em seguida bufou. – Eu deveria ter vindo de carro.

—E você veio como?

—De carona com ele. Achei que seríamos só nós dois, mas ele passou para pegá-la também.

Tenho certeza que um lado meu sempre teria um pouco de ciúmes da Kate, mas o outro lado, aquele mais racional e cheio de empatia, não conseguiu não se comover ao imaginar como o clima estaria ruim dentro daquele carro.

—Se você quiser, eu e o Harry te levamos para casa.

—Não vai te atrapalhar? É meio fora do caminho da casa dele...

—Não vai, Harry que é o motorista hoje e tenho certeza de que não vai se importar. – Garanti com um sorriso que ela retribuiu.

—Obrigada, Gin.

Antes que eu pudesse responder, ouvi um tapa na mesa e a gargalhada feliz do meu namorado.

—Não acredito nisso! – Dave exclamou exasperado, o rosto transbordando irritação.

Harry levantou cheio de pose e caminhou novamente até mim com um sorriso presunçoso. A cadeira que ele estava ocupando não estava mais ali, mas ele não se incomodou em sentar de lado no meu colo.

—Nos representei com orgulho, Ratinha, foi fichinha ganhar do Dave.

—O Dave é fraquinho mesmo. – Provoquei e ele me lançou um gesto obsceno que arrancou mais risadas.

—Você tem que me dar uma aula também, Ginny. – Dave exigiu, parecendo abalado.

—Nem pensar, cara, essas aulas aqui só eu ganho. – Harry respondeu por mim, arrancando uma coleção de olhares maliciosos dos amigos.

—Parabéns. – Falei para que só ele ouvisse, o rosto virado em sua direção.

—Acho que mereço recompensa por ser um bom aluno, vou pensar e te falo. – Se abaixou para me dar um beijo.

Ninguém mais quis continuar jogando, então apenas conversamos por um bom tempo ainda. Quando minhas pernas começaram a formigar embaixo dele, trocamos de lugar para eu me acomodar em seu colo, e assim permaneci até levantarmos para ir embora. Parados na calçada enquanto os carros eram trazidos, me despedi de todos eles com beijos no rosto, mas fixei minha atenção na voz do Dave quando a Kate se despediu dele:

—Você não vai comigo?

—Não, vou com o Harry e a Gin.

—Por que? – Ele parecia visivelmente contrariado por não ter a companhia dela.

—Quero conversar um pouco com eles, e a Gin ofereceu. Boa noite, Dave.

Ela percebeu que eu estava olhando e segurou a cara de satisfação, mas eu ri para ela mesmo assim. Harry estava falando alguma coisa com o Tom e não prestou atenção, então seu olhar se tornou confuso quando a viu parada do meu lado, mas teve o bom senso de não perguntar em voz alta.

—A Kate não veio de carro, vamos deixá-la em casa, ta bom? – Informei casualmente, para que os dois ouvissem.

—Tudo bem, mas não acostuma que eu não sou seu motorista. – A provocou em tom debochado, fazendo-a rolar os olhos para ele.

Poucos minutos de trajeto depois, a deixamos em frente ao prédio situado em outro bairro e voltamos para as ruas tranquilas da cidade, em direção à casa do meu namorado.

—O que foi aquele papo todo com a Ka, Ratinha? – Perguntou assim que ficamos sozinhos, me olhando meio de canto.

—Só estávamos conversando, ela precisava contar, eu estava ali para ouvir. – Dei de ombros, sem dar maiores detalhes.

—Por um minuto fiquei com medo de que você estivesse querendo matá-la, sabe? Atraindo para a armadilha. – Provocou, me fazendo rolar os olhos.

—E você ia me ajudar?

—Melhor cúmplice do que vítima também, né? Então eu ia, mas com certeza demoraria para me livrar do trauma depois, eu não estou acostumado a ver pessoas por dentro.

Não aguentei a cara de nojo dele e ri, a cabeça deitada em seu ombro.

—Para de ser besta, não vou matar ninguém, e a Kate é... -

—É...?

—Muito legal. – Falei por fim, ignorando a cara de satisfação que ele com certeza faria.

—Eu te falei isso desde o começo.

—Falou, mas sua opinião continua não contando nesse caso, porque você tem uma visão muito tendenciosa sobre ela.

—Ai meu Deus, lá vem de novo você com esse papo. – Falou exasperado, mas eu consegui notar também a descontração ao adotar o tom deliberadamente. – Só tenho visão tendenciosa sobre você, amor, ninguém mais. Se me perguntarem um defeitinho só da Ginny eu nem vou saber o que dizer.

—Fale mais sobre isso, estou gostando de ouvir. – Pedi me acomodando melhor, e o ouvi rir mais alto.

Ele continuou me bajulando o caminho todo, nos fazendo rir e esquecer qualquer outro assunto nesse momento.

Ron e Mione embarcaram numa segunda-feira à noite para a Austrália, então não tive problema para levá-los no aeroporto e Harry me acompanhou para fazer companhia na volta. No dia seguinte eles avisaram assim que chegaram ao destino e na quarta pela manhã o Ron me ligou para contar que já tinham dado a notícia e os pais dela ficaram super felizes com a novidade.

O plantão daquela semana estava atipicamente tranquilo, o que era ótimo, porque apenas eu e outro ortopedistas estávamos no hospital na sexta à noite. Colin estava no meu turno também, mas infelizmente não teve tanto tempo livre assim.

—Gato, como está a emergência? – Perguntei a ele quando se aproximava da meia noite.

—Livre, só uma cirurgia que o Louis já está fazendo.

—Então vou descansar um pouco, tudo bem?

—Vai sim, eu te chamo se precisarmos de você.

—Obrigada.

Saí da recepção em direção à sala de descanso e me deitei para tentar dormir um pouco antes de precisar sair correndo outra vez.  Não demorei a pegar no sono, mas parece que com a mesma rapidez com que dormi, Colin me despertou.

—Gata, acorda, precisamos de você. – Ouvi sua voz antes de abrir os olhos.

Levantei da cama e passei a mão no rosto para espantar a cara de cansaço, arrumei de novo meu rabo de cavalo e me levantei para acompanhá-lo até a emergência. Estranhei ele ter vindo pessoalmente me chamar ao invés de usar o comunicador interno, mas provavelmente ele estava com tempo livre.

—Que horas são?

—Quase duas da manhã, desculpa te acordar, mas o Louis ainda está em cirurgia e não tem previsão de término, então tinha que ser você mesmo. – Ele estava extremamente cauteloso ao dizer, me acompanhando de perto.

—Sem problemas, gato. Qual sala?

—Trauma doze.

—Obrigada.

Estiquei minha mão para abrir a porta que ele me indicou, mas seus dedos se fecharam no meu pulso, me fazendo olhar para ele.

—Gata, é uma tentativa de suicídio, acho melhor já te contar logo. – Ele me olhou como se a culpa fosse dele, ao mesmo tempo em que eu sentia aquele frio incômodo se instalar dentro de mim. – Desculpe ter que passar o caso para você, mas eu não tinha escolha.

Demorei um minuto inteiro para conseguir dizer alguma coisa, usando esse tempo para me forçar a pensar em outra coisa e me convencer de que a natureza do acidente não fazia diferença, eu tinha apenas que tratar o paciente.

—Sem problemas, gato, obrigada por avisar.

Ele não tinha escolha ao me chamar, eu também não tinha outra que não fazer o meu trabalho, então me soltei da mão dele e entrei na sala. As equipes de trauma e enfermagem já tinham iniciado os primeiros socorros e estavam todos amontoados ao redor do leito, o que era ótimo porque assim me tirava a obrigação de olhar para o paciente nesse momento.

—Desculpem a demora, são muitas fraturas? – Perguntei com a voz mecânica, completamente concentrada em calçar as luvas.

Minhas tentativas de não pensar em como aquela moça veio parar aqui se tornaram completamente inúteis assim que parei ao lado da maca onde o corpo quase sem vida repousava.

—Aparentemente apenas nos membros inferiores, mas não são prioridade agora, Weasley, o caso é bem grave.

Para ajudar, Anne Smith era a responsável pelo atendimento da paciente, e a voz desdenhosa dela no meu ouvido não me ajudou a sentir melhor. Eu não demonstraria fraqueza nenhuma em sua frente, por mais que isso me demandasse um esforço que eu nem sabia de onde tiraria, então me aproximei para fazer o meu trabalho.

Antes que eu alcançasse a paciente, o monitor cardíaco acusou a parada cardíaca, e mais do que em qualquer outro caso, senti o meu disparar no mesmo ritmo daquele barulho contínuo e, dessa vez, esmagador. Me mantive afastada enquanto a equipe inteira se dividia para fazer todos os procedimentos necessários, desde aplicar inúmeras substâncias reanimadoras até o uso incessante e cada vez mais forte do desfibrilador, mas nenhuma intervenção surtiu efeito dessa vez.

Quando o bipe contínuo era o único som possível de ser ouvido e Anne declarou hora da morte às duas e quatro da manhã, meu primeiro pensamento foi: “Parabéns, conseguiu.”. Quão doentio era da minha parte, eu não sabia dizer, mas tampouco conseguia me frear quanto a isso. Não era a paciente que me tirava a paz, era quem ela deixou, tomara que consigam seguir em frente também.

Sem esperar um segundo a mais, abri a porta da sala e saí o mais rápido que consegui dali de dentro. Colin estava no balcão e não perguntou nada quando o informei com poucas palavras que estava indo embora. Joguei as luvas no lixo ao lado dos armários e puxei de qualquer jeito minha bolsa de lá de dentro, eu precisava estar em apenas um lugar, e não era no trabalho.

Me virei com pressa para sair dali, mas estaquei diante do fato que invadiu minha mente sem pedir licença: o Ron estava na Austrália, a milhares de quilômetros de mim e muito feliz com a notícia que foi até lá apenas para compartilhar. O desespero me encobriu e eu reprimi a vontade de bater os pés igual a uma criança, a bolsa e a chave do carro nas minhas mãos não foram suficientes para impedi-las de tremerem, meu pensamento dando voltas ao redor de uma única pergunta: o que eu faço?


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal. Tudo bem?
O final desse capítulo quer dizer uma coisa: vida amorosa em ordem não apaga o resto dos problemas.
E agora que o motivo de todos os desentendimentos dos dois veio à tona outra vez, o que vai acontecer?
Ansiosa para saber o que acharam, não deixem de comentar.
Beijos e até o próximo.

Crossover: para ver a reação do Ron com a notícia da gravidez da Mione, não deixem de ler o próximo capítulo de Backstage, que será postado na próxima semana.



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