Déjà vu escrita por Paulinha Almeida


Capítulo 25
Capítulo 25




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/687490/chapter/25

Próximo da hora do almoço, no dia seguinte, minha agenda de consultas estava vazia e a emergência também não tinha nenhuma entrada em que minha atuação fosse necessária, então aproveitei o tempo livre para ir até o shopping na rua de trás fazer algo em que estava pensando há alguns dias. Me troquei rapidamente, peguei apenas o necessário, avisei na recepção que me ausentaria por alguns minutos e soltei o cabelo enquanto cruzava as portas de entrada do hospital.

Menos de dez minutos de caminhada e eu já estava debruçada sobre o balcão do chaveiro, pegando a cópia que pedi que fizesse e que escorregou para dentro do bolso da minha calça assim que finalizada. Comi um lanche rápido por ali mesmo e voltei para o trabalho com a mesma rapidez.

No fim da tarde, faltando menos de duas horas para o fim do meu turno, fui chamada na emergência junto com mais dois cirurgiões, que eu reconheci como sendo de trauma e cardiologia, para a informação prévia de que havia um paciente chegando, provável hemorragia interna e múltiplas fraturas em ambas as penas e que deveríamos ficar a postos para iniciar o atendimento o mais rápido possível.

Assim que a enfermeira que comanda o pronto socorro informou tudo o que sabia e saiu para se ocupar com outras coisas, eu tirei o celular do bolso e mandei uma mensagem para o Harry:

"Pode me ligar?"

Menos de um minuto depois meu telefone tocou e seu nome surgiu na tela.

—Oi, atrapalho? - Atendi perguntando.

—Não, estou sozinho. Tudo bem?

—Sim, só queria perguntar se eu por acaso esqueci na sua casa a roupa que usei no sábado a noite.

—Esqueceu. - Confirmou o que eu já suspeitava.

—Você lavou?

—Nossa, mas que abuso. - Comentou indignado, mas riu ao final. - Lavei, por que?

—Se importa de trazer para mim e irmos direto daqui? Tem uma emergência chegando, provavelmente é grave, e eu sou a única ortopedista disponível, então com certeza vou sair mais tarde. Se eu ainda tiver que passar em casa para me trocar vou me atrasar muito para o nosso jantar.

—Tudo bem, eu levo para você. - Confirmou no momento exato em que a ambulância estacionou à nossa frente.

—Obrigada. Preciso desligar agora. Beijos.

—Ok, até mais tarde. Beijos, Ratinha.

Enquanto meus colegas escutavam as informações passadas pelo médico do resgate, me apressei em checar o pulso do paciente, muito mais fraco do que seria o ideal, e olhar rapidamente seus membros inferiores, completamente distorcidos do ângulo considerado saudável.

—Obrigada, assumimos daqui. - Escutei o cardiologista agradecer e empurrar a maca para a sala de trauma mais próxima.

Parei no balcão da recepção tempo suficiente para dizer:

—Vamos precisar de ajuda, provavelmente será um caso de múltiplas cirurgias. Se o Colin estiver livre, diga que é uma preferência. - Pedi e corri atrás deles.

Encontrei o paciente já despido quando cheguei e sem a manta térmica que o mantinha aquecido, e assim o estrago parecia ainda maior. Havia inchaço no abdome, algumas escoriações e sangue escorrendo de um dos cantos da boca. Sem contar uma fratura exposta em uma das tíbias e o joelho certamente deslocado na outra perna, assim como o quadril. Há muito já não me chocava, mas também não é uma visão que agrade.

Me aproximei e examinei previamente os ferimentos, notando com alívio que estavam limpos, o que diminuía consideravelmente o risco de amputação. O deslocamento no quadril era um problema, porque havia o risco de que interrompesse o fluxo sanguíneo para a perna, então deveria ser corrigido rápido.

A porta se abriu e por ela passaram Colin e uma enfermeira com quem ele sempre andava. Ele se apressou em calçar as luvas e começar a introduzir todos os acessos intravenosos que seriam necessários durante a cirurgia, enquanto ela parou atrás de nós anotando os nomes de exames ditados e para os quais ela emitira os pedidos enquanto o procedimento já estivesse sendo realizado.

—Nossa, o que aconteceu com ele? - Meu amigo perguntou olhando o corpo a frente.

Eu nem tinha lembrado de perguntar qual foi o acidente, então apenas dei de ombros indicando que não sabia e ditando para a enfermeira que precisava de um doppler de quadril para verificar se o fluxo sanguíneo para as pernas estava sendo obstruído por algum motivo, mas a responsável por trauma o respondeu:

—Tentativa de suicídio, pulou do sexto andar.

Estaquei diante da frase que nem havia sido dirigida a mim e dei um passo atrás sem perceber, me chocando com o carrinho de instrumentos e fazendo um barulho estridente quando alguma coisa metálica caiu no chão. Senti a cabeça girar por um segundo e mordi o lábio inferior para conter o turbilhão de lembranças e pensamentos desagradáveis que me acometeram de uma vez, com uma força quase capaz de derrubar.

Todos me olharam interrogativamente, mas apenas Colin percebeu que havia alguma coisa errada com a minha reação.

—A Dra. Lovegood já chegou, Kate? - A pergunta era para a colega, mas ele me olhou o tempo todo.

—Ainda não.

—Você precisa de mais algum exame, Ginny? - Perguntou sugestivo, transmitindo claramente a informação de que eu não tinha escolha, então era melhor não surtar na frente dos outros.

Sacudi a cabeça dando um passo a frente novamente e respondi tentando soar o mais normal possível.

—Não, é só isso.

—Ótimo, podemos levar? - Perguntou para os outros dois médicos.

—Sim. - Ambos confirmaram.

—Vou esperar no pré operatório. - Informei me virando e saindo dali o mais rápido que pude.

Ninguém estava na sala quando cheguei, então não me preocupei em disfarçar meu desconforto nem o tremor nas minhas mãos enquanto as higienizava. Ajudar as pessoas era tudo o que eu sabia fazer da vida, mas toda minha vontade agora estava concentrada em sair correndo daquele centro cirúrgico. Eu queria conseguir ignorar e não dar a mínima para o cara que não se incomodava em morrer, mas que a minha obrigação mandava fazer o possível para salvar, no entanto tudo o que eu conseguia era me perguntar quem será que ele amava tanto e pensar, com uma dose pouco saudável de sarcasmo, em quem ele não amava o suficiente.

A cirurgiã de trauma parou do meu lado e eu me forcei a fazer a melhor expressão que consegui enquanto ela dizia:

—Ele já está preparado.

Agradeci com um sorriso pouco convincente e entrei no centro cirúrgico com uma quantidade muito grande de força que não sei de onde saiu.

A máscara no meu rosto impedia que a equipe ali dentro percebesse o quanto eu estava mordendo o lábio para conter a vontade de fazer comentários nada pertinentes e totalmente descabíveis à pessoa que deveria estar apenas cuidando do paciente, mas eu não conseguia evitar os pensamentos de chegarem a todo instante.

Sem dizer uma palavra sequer, me forcei durante quase quatro horas a fazer meu trabalho da melhor forma que consegui, dando o meu melhor para que ficasse perfeito.

Deixei o centro cirúrgico um segundo depois de terminar minha parte, sem me preocupar em aguardar a traumatologista ou querer saber se o paciente estava estável, e fui o mais rápido que pude ao vestiário me preparar para ir embora. Sentei no banco para trocar de sapato e por um segundo afundei o rosto nas mãos para tentar controlar o fluxo de emoções e reprimir as lágrimas que eu não deixaria cair aqui.

Saí dali a passos largos e só me lembrei que Harry estaria me esperando quando o vi sentado no hall de entrada, perto da recepção. Foi só nessa hora que me lembrei também que tínhamos um compromisso, mas por mais que eu quisesse não conseguiria ser eu mesma agora.

Havia apenas uma pessoa que eu queria ver nesse momento e que me entenderia sem que eu tivesse que explicar, e não era ele.

—Ei, está tudo bem? - Perguntou parando na minha frente e me prendendo quando tentei passar reto por ele.

—Sim, só quero ir embora. - Tentei soar normal ao responder, mas seu olhar mudou na mesma hora para aquela mesma concentração avaliadora que eu já tinha visto antes, e que nunca tinha terminado de forma muito amigável.

—Ok, vamos. - Concordou segurando minha mão e andando rápido para acompanhar minha pressa.

Tentei caminhar na direção do meu carro, mas ele me puxou e falou sem dar margem a contestações:

—Eu te levo.

Assim que as portas foram destravadas, me sentei no banco do carona, afivelei o cinto de segurança e apoiei o rosto nas mãos para não ter que ver o jeito que eu sabia que ele estava me olhando, sem entender nada e ao mesmo tempo querendo saber de tudo.

—Me leva para a casa do Ron. - Falei assim que o carro começou a andar, e soou mais como uma ordem do que como um pedido.

—Não quer ir para a minha casa ou para a sua? - Perguntou tentando não parecer contrariado.

—Não, quero que você me deixe na casa do Ron. - Reafirmei e fiquei quieta pelo resto do caminho, falando apenas o suficiente para indicar as ruas em que ele deveria virar para chegar ao meu destino.

Harry com certeza seria parado na portaria, mas antes mesmo que ele pudesse falar algo para o porteiro eu me debrucei sobre ele e disse o meu nome, fazendo com que nada mais fosse questionado, e voltei ao silêncio de antes enquanto ele dirigia pelo condomínio até a casa do meu irmão.

—Obrigada. - Agradeci rapidamente e abri a porta.

Antes que eu descesse ele segurou meu braço e eu me virei.

—O que aconteceu? - Perguntou preocupado e confuso.

—Nada. - Menti descaradamente.

—Nada? - Questionou com a sobrancelha erguida em desafio e passando o polegar embaixo do meu lábio, fazendo arder onde eu provavelmente tinha mordido forte demais durante as últimas horas.

—Não foi nada, Harry. Obrigada. - Encerrei o assunto e soltei meu pulso da sua mão antes de sair e bater a porta.

Ouvi seu carro ir embora antes mesmo de chegar à porta, mas nem me importei com isso.

Toquei a campainha com um pouco de impaciência e ouvi a voz do meu irmão gritar que já estava vindo, segundos antes da porta se abrir. Ele tinha um olhar de pura expectativa e confusão quando abriu a porta, mas rapidamente se transformou em alerta quando viu minha expressão.

—Gin? Tudo bem? - O tom de surpresa era notável ao dizer o meu nome.

Reparei que ele olhou em volta para ver se eu estava sozinha.

—Você está esperando alguém? - Perguntei com o resto do auto controle que precedia o momento em que eu desabava.

—Não estou esperando ninguém. Está tudo bem? - Repetiu a pergunta, me olhando preocupado.

—Não. - Assumi deixando uma lágrima rolar e a secando antes que chegasse ao meu queixo.

—O que aconteceu? - Questionou me puxando para dentro e me olhando com atenção da cabeça aos pés.

—Eu estou bem, mas não está tudo bem. - Expliquei e esperei que ele entendesse.

—Certo, me conta o que aconteceu.

—Eu acabei de operar um paciente que fez uma tentativa mal sucedida de suicídio.

Terminei a frase e dei dois passos para frente para afundar o rosto em seu peito, quem sabe isso impedisse que eu pensasse tanto?

Não era a primeira vez que isso acontecia a infelizmente não seria a última, e era sempre para esse abraço que eu corria, porque o Ron sabia que não havia nada que ele pudesse me dizer e sabia também que eu não queria responder a nenhuma pergunta agora, então, como sempre, ele só se acomodou encostado no aparador ao lado da porta e me abraçou pelo tempo que eu precisei desabafar do meu jeito.

Senti seu queixo apoiado no alto da minha cabeça e um carinho reconfortante, até que me soltei espontaneamente e sequei o rosto.

—Posso dormir aqui com você?

—Claro, menina. Quer comer alguma coisa? - Perguntou tirando meu cabelo do rosto e colocando atrás da orelha.

—Não, mas já quero ir me deitar.

—Ok. - Concordou e me acompanhou com o braço ao redor dos meus ombros.

Ele passou direto pelo quarto que eu normalmente usava e entrou no dele, ao fim do corredor. Aceitei a camiseta limpa que ele me entregou e a vesti por cima da lingerie antes de me acomodar sob seu edredom.

—Ron, aconteceu alguma coisa? - Perguntei após secar mais uma vez o rosto. - Você parecia meio ansioso quando abriu a porta.

—Não aconteceu nada, Gin, deixa isso pra lá. - Me tranquilizou e apagou a luz, deixando o quarto iluminado só pela luz que vinha da sala.

Ele se deitou do meu lado, me deu um beijo carinhoso na testa e passou a mão no meu cabelo até eu dormir, como fez muitas e muitas vezes quando eu ainda era adolescente e as coisas ficaram quase insuportáveis. O gesto familiar e a sensação de ter alguém do lado me ajudaram a não ficar muito mais tempo acordada e ter uma noite tranquila de sono.

No fundo eu sabia que não poderia agir como uma criança para sempre, mas ao mesmo tempo era impossível não correr para onde eu me sentia amparada quando esse tipo de coisa acontecia, porque nada deixava mais evidente tudo o que eu queria esquecer.

Acordei alguns minutos antes do meu despertador tocar, deitada em um canto da cama e meu irmão de costas para mim do outro lado. Notei que ele não estava mais com a mesma roupa que usava quando cheguei, o que indicava que ele provavelmente me esperou dormir para depois tomar banho e se deitar também.

Levantei sem fazer barulho e tomei um banho rápido antes de vestir as mesmas roupas que estava usando no dia anterior, e as únicas que eu tinha comigo no momento, só então o chamei.

—Ron, você me leva no trabalho? - Pedi quando ele abriu os olhos.

—Que horas são? - Perguntou um pouco confuso.

—Cinco e meia. Meu carro ficou no estacionamento do hospital, Harry que me trouxe ontem.

—Tá, levo. - Confirmou meio a contragosto, mas se levantou de imediato.

Entramos no carro dele antes mesmo do dia estar totalmente claro, e alguns minutos depois estávamos cruzando os portões do hospital.

—Obrigada. - O agradeci com um abraço demorado quando estacionamos em uma das muitas vagas vazias ali, e ele soube que eu não estava me referindo à carona.

—Sempre que precisar. Quer ir para lá hoje de novo? - Ofereceu, afagando minhas costas.

A oferta era tentadora e em qualquer outro dia eu teria aceitado, mas havia um jantar a que não compareci e eu precisava compensar meu acompanhante pela ausência.

—Não, obrigada. Hoje vou para casa.

—Você que sabe. - Falou quando me afastei. - Se mudar de ideia é só aparecer.

—Ta bom. Obrigada pela carona.

—De nada.

Dei um beijo em seu rosto e desci do carro. A recepção estava vazia como de costume quando entrei, então ninguém além dos enfermeiros do plantão noturno me viram caminhar com calma até o vestiário para me preparar para o dia. Comprei um café grande para mim na lanchonete do hospital e só então fui para o meu consultório começar o dia.

A tranquilidade me permitiu encerrar o turno no horário correto, pouco antes do almoço. Estava distraída no vestiário me trocando para ir embora quando senti uma mão no meu ombro.

—Quer conversar, gata?

Colin nunca foi do tipo enxerido, mas sempre se preocupou com seu grupo particular de amigos. Eu achava isso louvável, mas hoje preferia não ter que encarar.

—Está tudo bem, gato. Eu só estava cansada. - Inventei uma desculpa e ele fingiu acreditar.

—Ok, vá para casa, então, aproveitar seu resto de dia livre. - Falou antes de me lançar um beijo e se virar para sair.

—Colin. - Chamei antes que ele chegasse à porta. - Você pode perguntar para Luna se ela se importa de acompanhar o pós operatório do paciente de ontem, por favor?

—Claro. E você sabe que ela não vai se importar. - Afirmou com um sorriso bondoso.

—Obrigada. - Sorri de volta, realmente agradecida, e ele me deixou sozinha novamente.

A tarde em casa se arrastou lenta e sem graça, com nada que prendesse minha atenção por mais do que dez minutos e cheia de lembranças indesejadas do atendimento do dia anterior.

Ignorei as embalagens de presentes jogadas no meio da minha sala, com a promessa de que arrumaria outra hora, e deitei alguns minutos no sofá sem me preocupar com a bagunça. Propositalmente preparei algo complexo para comer e passei um tempo desnecessariamente longo afundada na água quente da banheira, mas fora isso não tive muito o que fazer durante o dia.

No fim da tarde recebi uma mensagem do Harry, cujo tom não combinava em nada com o que eu estava acostumada:

"Está tudo bem?"

Digitei minha resposta sem levantar do sofá onde estava deitada e tentei quebrar o gelo com uma das inúmeras carinhas que eu costumava receber dele:

"Sim. Já estou em casa, quer passar aqui? :)"

“Sim."

Não deixei de estranhar o tom seco da confirmação, mas respondi com outra carinha sorridente e esperei mais meia hora até a campainha finalmente tocar. Levantei do sofá com um pulo e corri até a porta sem me preocupar com o fato de estar descalça.

—Oi! - Cumprimentei animada, prendi meus braços em volta do pescoço dele e roubei um selinho.

Harry não parecia muito empolgado, mas passou um dos braços pela minha cintura e fechou a porta atrás de nós com a outra mão. Dei um beijo em sua bochecha enquanto ele olhava para o lado e trancava a porta, mas ao invés de se virar e me beijar quando terminou, como sempre fazia, ele se desvencilhou do meu abraço e me puxou para o sofá.

—Você está bem? - Perguntou sentado ao meu lado com os cotovelos apoiados nos joelhos e a expressão muito menos receptiva do que de costume.

—Estou. - Afirmei me encostando na almofada atrás de mim.

—Ok. - Respirou fundo antes de me encarar e exigir. - Então quero saber o que aconteceu.

—Não aconteceu nada, Harry. - Repeti a mesma resposta do dia anterior e cruzei os braços na defensiva, o bom humor de segundos atrás fugindo de mim lentamente.

—Pare de mentir, Gin, não combina com você. - Pediu antes de repetir. - Quero saber o que aconteceu.

Levantei inquieta e virei de costas para ele, tentando não sentir toda a irritação que se aproximava e respirando fundo para tentar controlar a voz e não ser rude ao responder.

—Eu atendi um paciente que não gostei, só isso.

—E o que mais? - Insistiu, me encarando profundamente.

—Não tem "mais". - Afirmei, devolvendo seu olhar sério.

—Tem sim, o que mais aconteceu?

—Já disse que não tem mais nada, Harry, que saco. - Meu tom de voz saiu um pouco mais alto do que eu pretendia.

Para evitar mais perguntas que provavelmente viriam e as respostas pouco ou nada legais que eu provavelmente daria, entrei no meu quarto e me joguei de bruços na cama, propositalmente de costas para a porta e sem me importar em deixá-lo sozinho no cômodo ao lado.

Mas dessa vez Harry parecia decidido a não manter mais aquela curiosidade inconveniente só para ele, então é claro que ele veio atrás de mim.

—Não estou falando de ontem, estou de falando de antes. De bem antes, de quando a gente provavelmente não se conhecia. Quero saber que aconteceu. - Falou calmamente, e mesmo sem me virar eu sabia que ele estava encostado no batente da porta com os braços cruzados. - Já chega de negar, não é? Você já deve ter reparado que não adianta.

Sua insistência em falar disso me irritou e eu me virei para ele enquanto dizia, visivelmente exaltada, o que eu esperava que fosse o ponto final dessa conversa:

—Para que você quer saber? Que diferença faz o que aconteceu antes?

—Não faria diferença nenhuma se não te afastasse de mim por qualquer coisa que eu nem sei o que é. - Explicou também alterado. - Eu nunca sei o que não posso falar, o que não posso perguntar, ontem mesmo eu não fiz nenhuma dessas coisas e olha o que aconteceu.

—Aconteceu que eu quis ir ver meu irmão, qual o problema? - Desafiei petulante.

—Ah, pelo amor de Deus. - Desdenhou minha resposta antes de continuar. - Tem hora que você é toda receptiva, como quando eu cheguei, mas olha agora. - Falou apontando para minha postura defensiva. - Você se fecha, ou foge, e eu nunca sei o que fazer.

—Porque você não precisa fazer nada. Não sou alguém que você tem desesperadamente que ajudar. - Cuspi as palavras com os olhos semicerrados em sua direção.

—Pode não ser, mas é alguém que me deixa sem nenhuma resposta quando bem entende e isso não é o que eu espero de você. E se eu estou aqui é porque eu quero ajudar se você precisar, mas para isso você tem que me contar o que aconteceu, Gin. - Argumentou como se fosse óbvio. - Está na cara que você tenta enganar até a si mesma quando diz que não aconteceu nada, e eu quero saber o que foi.

—Então você transa comigo algumas vezes e já acha que eu tenho que te contar toda a minha vida? - Debochei com sarcasmo, tentando a todo custo deixar esse assunto de lado.

A expressão dele se fechou como nunca antes eu tinha visto, o olhar ameaçador era intimidante, mas o sustentei no mesmo nível.

—Para de falar isso! - Exigiu enfático, com um grito que me surpreendeu ao ponto de me fazer calar e dar um pulo. - Para de falar que isso aqui é só sexo, porque não é. Não é para mim e eu sei que não é para você também. - Finalizou apontando para mim, a fúria estampada em seu rosto.

Ele ainda me encarou por alguns segundos, depois se virou e voltou para a sala. Mas dessa vez fui eu que não consegui deixar para lá, os gritos e o tom de voz agressivo ainda ecoando nos meus ouvidos.

—E como é que você sabe o que isso aqui é para mim? - Desafiei a poucos centímetros das costas dele, que se virou assim que me ouviu.

Mantive o rosto erguido em uma postura confiante, embora a proximidade agora hostil e a raiva naqueles olhos verdes faiscantes não fossem convidativos. Ele soltou uma risada sarcástica antes de dizer rudemente:

—Você acha que eu sou idiota, não é? Ou que eu sou o seu brinquedinho e que só você sabe o que está fazendo e que pode fazer o que quiser. Mas sabe o que eu acho? Que você se afasta e se esconde assim porque gosta de mim muito mais do que quer admitir. Não adianta olhar com essa cara de deboche agora, Ginny, porque eu sei que você é louca por mim. Você não é boa em tudo, e do mesmo jeito que é ótima em negar, você é péssima em esconder. - Terminou dando um passo a frente e me fazendo recuar a mesma distância. - Mas você é egoísta demais, não é, doutora? Aliás, você é a pessoa mais egoísta que eu conheço, porque não te interessa nem um pouco como eu me sinto quando você decide virar as costas e me mandar embora ou ignorar minha presença, nem muito menos quando você volta fingindo que nada aconteceu, porque você sabe que eu vou estar esperando do mesmo jeito.

Eu odiei ser chamada de egoísta, mas ao invés de demonstrar e prestar atenção na súbita vontade de chorar que senti, eu decidi reagir à altura e não deixá-lo sair dessa como campeão invicto.

—Você parece gostar muito quando eu volto fingindo que nada aconteceu, nem se incomoda em esconder que sua primeira preocupação é tirar a minha roupa. - Ele me olhou cético, porque ambos sabíamos que não era completamente verdade, mas isso não importava agora. - Nunca  te ouvi reclamar de fazer exatamente isso toda semana nos últimos meses, nem de nada que a gente faz, do meu ponto de vista, aliás, você parece muito satisfeito depois.

—Isso não tem nada a ver com o que eu estou falando, mas se é a única coisa que você me dá eu deveria me sentir feliz com o que mais? - Perguntou com a expressão clara de quem não abriria mão da resposta, os braços cruzados de forma irredutível.

—O que é que tem a ver com o que você está falando, então? - Ignorei de propósito e adotei a mesma postura.

—O que você não dá, o que você ignora e o que eu tento mostrar de todas as formas. - Afirmou com a voz mais alta do que a minha.

—E por que você está reclamando disso só agora?

—Porque eu já reparei que só tocar no assunto te faz correr para o outro lado. - Gesticulou exasperado.

—E do que é que você está reclamando? - Continuei como se ele não tivesse interrompido. - Eu nunca te pedi nada! Para mim está tudo muito de acordo com o que é isso aqui.

—Você nunca pediu mesmo, isso eu tenho que concordar, eu que sempre tentei dar mais do que você quer. - Começou exaltado, mas pareceu hesitar um segundo antes de continuar, e quando o fez foi com o mesmo tom confiante. - Mas eu cansei de me frear e tentar sozinho, então agora você aceita tudo o que eu quero compartilhar, e isso inclui o que te deixa como ontem, ou eu vou embora.

Abri a boca para responder sem pensar, mas ele levantou o dedo em riste e me interrompeu:

—Mas pensa bem, Ginny, porque se eu for embora é sabendo que não tenho mais chance. Se eu for embora é porque eu desisto e não vou fazer plantão na porta do hospital atrás de você de novo. - Afirmou como um aviso.

Travei uma batalha interna por alguns segundos, encarando seu olhar com tanta intensidade quanto ele encarava o meu, e que me parecia quase um pedido, mas por fim a raiva venceu e eu me vi dizendo:

—Tchau, Harry.

Quebrei nosso contato visual e virei de costas assim que as palavras saíram, porque eu precisava olhar qualquer coisa menos perturbadora do que aqueles olhos verdes magoados me engolindo. Quando olhei novamente para ele o vi passar a mão rapidamente no rosto para secar uma lágrima, isso aumentou o nó na minha garganta e demandou muito esforço para eu não chorar também.

Ele não falou nada e também não saiu de imediato, ainda me olhou por um momento como se duvidasse do que eu tinha dito, mas vendo que eu não me retrataria andou até minha estante e abriu a primeira gaveta, de onde tirou a cópia da chave da casa dele que estava ali há meses, exatamente como no dia em que ganhei.

—Você nunca pretendeu usar mesmo. - Falou colocando-a no bolso e andando até a porta.

Ouvi o barulho dos meus chaveiros quando Harry a destrancou, mas ao invés de sair ele se virou de novo com a minha chave na mão e perguntou, olhando para a minha caveirinha:

—Isso faz parte do que você quer ou devo levar também pra evitar o trabalho de se desfazer depois? - O tom usado foi cruel e propositalmente escolhido para atingir, e conseguiu.

Cruzei a distância entre nós com passos decididos e tirei minha chave da mão dele com um tapa que fez minha pele arder.

—Tira a mão dela. - Exigi com raiva.

—Olha, você sendo sentimental. Uma atitude quase inédita. - Debochou irônico.

—Cala a boca, Harry. - Mandei, mais uma vez magoada com as palavras dele, e o sorriso se fechou.

—Além de egoísta você é bastante ingrata também. Se cuide, doutora. - Tão diferente do tom que eu gostava de ouvi-lo me chamando assim, dessa vez pareceu uma ofensa.

Ele não olhou mais para trás e saiu, até o barulho da porta se fechando me pareceu um ponto final.

Por um tempo só fiquei parada olhando para onde ele estava antes, depois abaixei os olhos para a chave na minha mão e virei o chaveiro de todos os lados para ver se estava inteiro, a caveirinha sorriu para mim quando a olhei de frente e isso foi o suficiente para cair a primeira lágrima.

—Ai, que droga! - Resmunguei limpando o rosto e me encostei na porta fechada.

Me forcei a parar de chorar com o argumento de que era um cara indo embora, e não era o primeiro, que isso não deveria ser nada demais. Mas não me convenci nem por um segundo a acreditar em mim mesma.

Olhei em volta por um tempo sem saber o que fazer, e isso me irritou profundamente porque desde quando eu precisava de alguém para saber como agir? Escorreguei e me sentei no chão para esperar aquela sensação de perda ir embora, era o melhor que eu podia fazer por mim mesma nesse momento.

Rolei o chaveiro entre os dedos e encarei por minutos que me pareceram eternos aquele objeto tão bobo que eu não conseguia soltar. Não bastasse ele, o peso do colar no meu pescoço também parecia maior, mas estranhamente reconfortante.

Segurei o quanto consegui, mas foi inevitável que as próximas lágrimas caíssem, porque a cada minuto que passava aquele "tchau" me parecia mais real e presente. Com um suspiro de derrota, me dei por vencida e aceitei o fato de que tudo dentro de mim gritava para correr de volta ao meu conforto e chorar acompanhada de quem sempre me ofereceu colo. O motivo, pelo menos, era novo, não que isso me reconfortasse de alguma forma.

A blusa de moletom que eu usava em casa estava em cima da mesa, no mesmo lugar que o Harry deixou depois de tirar de mim antes de ontem, mas que parecia ter sido há anos. A vesti por cima da regata e do short que estava usando, puxei a bolsa de qualquer jeito e saí de casa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!
Eu estou esperando ansiosamente para postar esse capítulo desde o dia em que o escrevi, deve ter uns três meses...
Ele não ia aguentar ser para sempre o cara dos momentos legais, né? O momento do tudo ou nada chegou!
Aguardo as opiniões de vocês nos comentários.
Beijos e até o próximo.

Crossover: Ron e Mione também não terminaram muito bem a conversa do último capítulo postado, e o capítulo de amanhã complementa DV como nenhum outro antes. Não deixem de ler!
https://fanfiction.com.br/historia/692675/Backstage/capitulo/20/