Rear View escrita por Eduardo Mauricio


Capítulo 1
Capítulo Único




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Abro meus olhos e encaro o deserto à minha frente. O sol está se pondo, colorindo o céu com um belo laranja.

Confuso e cansado, me esforço para conseguir levantar.

Meus pés descalços tocam o asfalto áspero e aquecido. À minha frente, uma estrada que parece não ter fim, estendendo seu corpo negro ao longo do horizonte. Atrás, a mesma coisa.

Não consigo lembrar como vim parar aqui ou mesmo quem eu sou. Mas a pergunta que ecoa inexoravelmente nas paredes da minha mente vazia é outra: quem sou eu?

Eu não sei. Ainda não sei.

Meus pés finalmente sentem a necessidade de fugir dali e começo a dar passos lentos, olhando ao meu redor. Nada além de arbustos mortos, areia e montanhas longínquas.

Não, não. Há mais alguma coisa. Algo pequeno e abandonado no horizonte. Não consigo identificar bem o que é, mas me parece ser uma pequena cabana. Um pequeno ponto de madeira pintado em uma tela amarela e desértica.

Na tentativa de conseguir alguma informação, começo a caminhar até lá. Meus pés doloridos pedem por um descanso, mas estou andando há pouco mais de 30 segundos. Ou seria mais?

Olho para trás, não sei se estou a metros ou quilômetros de onde estava agora há pouco. Tudo parece o mesmo. Cada passo que dou parece ser uma repetição do anterior. Minha mente não consegue processar o que estou fazendo ou há quanto tempo estou fazendo. Eu poderia estar caminhando ali por anos.

Não, é claro que não.

Volto a olhar para frente. A cabana agora parece mais longínqua do que antes. Eu estou regredindo?

Quem sou eu? O som da minha mente gritando por uma resposta volta a ser mais alto do que meus outros pensamentos.

Que pensamentos? Não há nada, apenas o desejo de encontrar alguém que possa me explicar o que está acontecendo.

Olho para meus pés, estão sujos e machucados, com feridas ardentes e vermelhas. Que dor!

(Quem sou eu?)

Ouço alguém chamar meu nome e viro-me. Que nome? Eu não tenho nome, não por enquanto.

Não era ninguém. Acho que minha mente está começando a entrar em colapso. Preciso encontrar alguém rapidamente. Talvez essa pessoa esteja naquela cabana. Ah sim, a cabana.

Ela parece ainda mais longe agora, mas há algo saindo de suas pequenas janelas, uma luz vermelha, que se perde no ar sem nada para iluminar. Há algo ali, mas parece cada vez mais longe.

(Quem sou eu?!)

Uma sensação de que estou sendo observado passa a crescer gradativamente, me fazendo suar. É como se eu estivesse sendo perseguido. Observado por quem? Perseguido por quem? Não há ninguém aqui.

Me viro mais uma vez, por instinto, e percebo que estou errado. Meus pés param de andar. Há alguém a alguns metros, parado no meio da pista deserta, totalmente coberto com um manto negro. Como saber se é uma pessoa? Não dá.

Mas se não for, alguém tem que tê-lo colocado ali.

— Oi — falo alto e espero uma resposta, a qual nunca vem.

Começo a caminhar em direção a ele e, para a minha surpresa, a pessoa também vem em minha direção. Paro e espero, mas ela faz o mesmo.

— Oi — digo novamente e aceno com uma mão, confuso. Para a minha surpresa, ela também acena, exatamente da mesma forma.

Volto a caminhar até ela e a pessoa também vem em minha direção.

— Quem é você? — pergunto. — Eu acho que estou perdido e...

Paro ao perceber que há algo de estranho ali. A pessoa também parou, mas agora estamos a poucos metros um do outro, muito poucos. Ela continua parada, com a cabeça baixa.

Dou mais alguns passos e ela também, é quando sua mão toca meu braço e o aperta com força. Tento me soltar, assustado, mas ela ergue sua cabeça e revela seu rosto. Um calafrio corre por minha espinha quando percebo que aquele é meu rosto, sob o capuz negro. É como olhar em um espelho.

(Quem sou eu?)

Quem é ele?

Vejo um sorriso abrir-se no rosto dele, um sorriso grande e de dentes podres. É aí que nos diferenciamos, aquela pessoa não parece viva.

Como assim aquela pessoa? Não, aquele sou eu! Como poderia?

Com a outra mão, ele abre o manto negro e revela um peito nu e pálido, com um enorme buraco na parte esquerda, um buraco escuro e ensanguentado. É uma cratera enorme em seu peito. Mas não há coração.

Ele guia minha mão até o buraco em seu peito e eu consigo sentir sua carne úmida e quente. Algo ainda pulsa ali dentro, mas não há coração. Tento me soltar, mas, apesar de sermos a mesma pessoa, ele parece mais forte. De repente, seu sorriso de dentes podres vira uma expressão de fúria.

Ele me olha com lágrimas nos olhos e se afasta um pouco.

— Como você pôde? — pergunta, chorando. — Covarde! — ele vocifera, avançando em minha direção. Segura meu pescoço e me derruba no asfalto. A dor se mistura à sensação de claustrofobia enquanto ele me estrangula. Tento me defender, batendo em seu rosto, mas ele parece decidido em querer me matar.

— Do que você está falando? — pergunto, confuso e assustado, quase gritando.

— Você a matou, covarde!!! — ele continua a gritar com ódio.

Em um ato de desespero, coloco minhas mãos em sua cabeça e enfio meus dois polegares em seus olhos. Ele não grita e nem sente dor, só continua a me estrangular enquanto sinto seus olhos explodindo em meus dedos como bolhas. O sangue começa a descer por suas bochechas e sua força vai diminuindo.

Eu o empurro para o lado e coloco as mãos no pescoço, tossindo e buscando por ar. Limpo meus dedos ensanguentados na camisa branca, ainda em choque, e encaro o corpo imóvel deitado no asfalto. Há poeira no ar, levada pelo vento, e o volume no manto negro agora é bem menor.

Curioso, me arrasto até ele e toco o pano com cuidado, rezando para evitar algum outro ataque. Ao puxar um pouco o manto, vejo uma caveira empoeirada. Revelando mais, percebo que tudo o que resta ali são ossos velhos e poeira. Me levanto assustado e olho ao redor. Ele não pode ter fugido tão rápido.

Talvez eu esteja ficando louco.

Olho para frente e percebo que a cabana agora está mais perto, muito mais perto. Então começo a correr até lá em desespero. Me aproximo rapidamente e percebo que há uma cerca com arame farpado ao redor da cabana. Na frente, há um portão aberto.

A porta de madeira está igualmente aberta e o interior da cabana está escuro, iluminado apenas pela luz de algumas velas. Consigo ver algumas pessoas lá dentro, elas estão vestindo mantos vermelhos.

Caminho até a varanda e entro cuidadosamente. O espaço é bem pequeno, só há uma sala. No centro existe um caixão aparentemente vazio e ao redor dele estão algumas pessoas, todas usando mantos vermelhos para se cobrirem. Cada uma segura uma vela com as duas mãos.

O silêncio é ensurdecedor.

— Com licença — digo, em um tom de voz baixo, mas ninguém me escuta, então repito um pouco mais alto.

Ninguém parece me notar.

Curioso, caminho até o centro, observando aquelas pessoas silenciosas e imóveis. Ao contrário do que pensei, o caixão não está vazio. Há algo no centro, algo pequeno e ensanguentado que eu não consigo identificar no momento, pois está escuro.

Ao me aproximar mais, arregalo meus olhos, pois o choque é inevitável. É um feto, um pequeno feto sem vida. Pobre coitado!

Olho ao redor, nervoso, e aquelas pessoas ainda parecem estátuas, com suas velas nas mãos.

— Covarde — escuto uma voz doce e feminina dizer em um tom baixo. Procuro a fonte daquela voz e não consigo encontrar. — Você a matou.

Meus olhos estão se enchendo de lágrimas, mas eu não sei o porquê. Na verdade, eu consigo sentir. Meu coração parece se contorcer dentro do meu peito. Aquelas palavras, que eu nunca pude ouvir antes. Quem é essa pessoa? Aliás, é uma pessoa?

Estou enlouquecendo novamente.

— Papai — diz a mesma doce voz, que parecia vir de todos os cantos.

Eu olho ao redor, mas não há ninguém. Seria uma dessas pessoas falando? É claro, tem que ser.

— Papai, por que você não me ama? — pergunta novamente. É uma criança? Papai? Não, eu não tenho filhos.

(Quem sou eu?)

— Quem é você? — pergunto, esperando uma daquelas pessoas se revelarem.

— Sou eu, papai — responde a voz angelical, que começa a assumir um tom fantasmagórico. Eu não estou me sentindo bem. — Por que você não me ama? Por que você foi embora?

Finalmente percebo o feto no caixão se mexendo, um corpo ensanguentado de pouco menos de vinte centímetros que agora se contorce. Ele está vivo? Sim, ele está.

Me aproximo, curioso.

— Papai — repete a voz, e finalmente percebo que está vindo daquele feto. É ele quem está falando.

Ela.

— Você a matou, seu covarde — ela diz. E as lágrimas em meus olhos começam a fluir mais intensamente.

— Desculpa — digo, segurando-o com minhas duas mãos. É tão frio e... frágil.

Por que estou chorando? Eu não sei, é só um feto.

Largo aquela coisa no chão e limpo minhas mãos na camiseta. O feto continua a se contorcer e agora está chorando, um choro alto e estridente de recém-nascido.

Dou dois passos para trás, assustado, e esbarro em uma das pessoas naquela cerimônia. Ela está olhando para mim. A vela agora apagada e lábios tão vermelhos quanto seu manto. Todo o resto era uma superfície plana de pele. Não tinha olhos nem nariz.

— Você a matou — diz aquela mulher. — Você vai queimar no mármore do inferno, covarde.

— Covarde — diz outra daquelas pessoas, e de repente todos estão gritando aquela palavra.

Por favor, parem!

Saio da cabana e corro para o asfalto. Nenhum deles me segue, alguns estão na porta, me observando com seus rostos deformados. Outros na janela. Todos eles ainda seguram suas velas agora apagadas.

Começo a correr em desespero pelo asfalto, sem saber aonde quero ir. No horizonte não há mais nada além de areia, arbustos mortos e as montanhas. As lágrimas não param de cair e eu não sei porque.

De repente, meus pés resolvem se entrelaçar e eu tropeço. A queda é inevitável. Minhas mãos são as primeiras a atingir o chão, depois meus braços e pernas.

— Merda! — reclamo, enquanto me levanto e limpo minha calça. Olho para trás e a cabana está longe agora.

Quando meus olhos se voltam para a estrada à minha frente, vejo uma árvore. Seus galhos nus estão em chamas, com uma fumaça negra flutuando pelos céus. Me aproximo com curiosidade. Aquilo não estava ali antes.

O sol finalmente se põe e a escuridão chega, tudo muito rápido. A lua não veio, então toda a luz desse local vem das chamas.

Olho para trás novamente, não consigo ver nada, é como se meus olhos estivessem fechados. Não, eu ainda consigo ver um pouco da estrada, iluminada pelo fogo.

Isso está me assustando.

(Quem sou eu?)

Espere, há algo surgindo. (Estou enlouquecendo?)

Sim, há algo surgindo na escuridão. Duas pernas ensanguentadas. Não, uma mulher. Ela veste um vestido branco cheio de sangue na região da virilha. Está chorando, eu consigo escutar. Seus cabelos loiros molhados e seu rosto pálido se revelam.

Eu a conheço.

— Quem é você? — pergunto, com o coração batendo rápido. (Medo? Talvez)

Ela não responde, mas se aproxima, cambaleando e chorando, com as mãos sobre a parte ensanguentada do vestido.

Eu a conheço.

— Laura — digo. De onde vem esse nome? Eu não sei. Eu simplesmente a conheço.

Quem é essa mulher?

(Quem sou eu?)

Ela está soluçando, debilitada.

— Você precisa de ajuda? — pergunto. Mas como poderia ajudá-la? Eu também preciso de ajuda.

— Covarde — ela diz, baixinho, enquanto ainda chora. Está se aproximando.

A mulher avança com rapidez e me empurra. Sem nenhum apoio para me segurar, caio dentro do buraco. A queda dura poucos segundos, até que caio em uma superfície de madeira, batendo as costas e a cabeça com força.

É uma caixa grande. A árvore ainda queima mais ou menos dois metros acima.

O rosto pálido e triste da mulher surge me observando.

— Você me matou — ela fala, e depois some.

— Ei! — grito por ela, mas seus soluços ficam cada vez mais longínquos até sumirem.

Tento me levantar, mas não consigo, como se meu corpo não mais respondesse ao meu cérebro. É agonizante.

— Socorro! — digo alto, ciente de que não adiantaria.

De repente, vejo-me no escuro quando a caixa é fechada com violência, lançando um pouco de terra no meu rosto. Ouço um clique, como um cadeado travando, e entro em desespero. É meu limite.

Começo a bater na caixa e gritar por socorro. Não posso morrer ali. Não posso.

(Quem sou eu?)

Tudo está escuro e o ar que tenho para respirar parece se esvair aos poucos.

— Por favor, me ajude!

Ouço um ranger nas madeiras daquela caixa e sinto uma pele fria me tocar. Mas não vejo nada. A escuridão é total naquele lugar pequeno.

Há alguém comigo.

Uma mão segura meu pulso e ouço soluços. Alguém chorando.

— Quem está aqui? — pergunto. Meu coração subindo pela garganta.

Sinto a respiração ofegante e aquecida da mulher se aproximar do meu ouvido.

(Quem sou eu?)

— Covarde.


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