Um Rei para Hawktall escrita por Loba Escritora


Capítulo 9
Capítulo VIII




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Marey

Hawktall foi o primeiro reino dos homens, criado para exilar os traidores de Prussiya, mas salvo dez mil anos depois pela própria deusa e contemplado com seu perdão e misericórdia. Era uma bela terra, banhada pelas águas do Grande Oceano. A Fortaleza dos Caillot, que outrora pertencera aos Arundel, ficava na encosta das montanhas da Nascente do Cavalo Marinho, a construção negra destacava-se entre os salgueiros dourados à beira mar.

Enquanto esperava o Rei, Princesa Marey admirava a ampla sala de pedra negra. Nas grandes janelas, esvoaçantes cortinas de seda cinzenta emolduravam a paisagem lá fora, fazendo com que se parecesse uma bela pintura, tão bela quanto obra de arte que tomava quase toda a parede central do cômodo. Um enorme retrato de tinta a óleo da família real.

Nele estavam ela e seu irmão, Príncipe Lenber, deitados em seus suntuosos berços, cobertos com o manto branco ornamentado com o bordado do enorme lobo dos Caillot. Ao lado de cada um deles estavam o Rei Aloys e a Rainha Aldith. O pai vestia um gibão branco e sem grandes adereços, com um colar de ombros cheio de rubis de modo a combinar com a majestosa coroa, enquanto a mãe trajava veludo negro, sua delicada coroa em ouro salpicado com pequenas pérolas e segurava nas mãos um ahdrak de esmeraldas.

O ahdrak era um cordão religioso, usado em orações para Prussiya, sendo cada uma de suas contas, a representação de uma graça almejada. Se deu conta de que nunca viu a mãe sem estar segurando um, o medo a havia dominado tão fortemente que era como se vivesse seus dias em oração. “Tudo por ter perdido você”, pensou, ao tocar o rosto do irmão na pintura. “Como seria se você tivesse crescido?”, sentia um enorme vazio se fazendo notar em seu peito.

— Vocês eram lindos bebês — disse o pai ao entrar, fazendo-a sobressaltar-se.

— Quanto tempo tínhamos quando o retrato foi pintado? — Marey perguntou, afastando-se do quadro.

— Você estava presenciando sua segunda estação, seu irmão já havia retornado aos braços de Prussiya — respondeu o pai, abaixando a cabeça para evitar encarar o quadro. — Vocês nasceram idênticos, então foi possível retratá-lo através de você.

— Será que seríamos parecidos ainda hoje? — perguntou a princesa, esboçando um sorriso cabisbaixo.

— Certamente — respondeu Rei Aloys. — Para sorte dele — sorriu enquanto lhe afagava os cabelos com ternura.

Retribuiu o sorriso de todo o coração, em todos esses anos o pai fora um estranho para ela, sempre muito ocupado regendo o reino, quase não aparecia para visita-la em seus aposentos, a mãe costumava aparecer sozinha, e quando ele a acompanhava, pouco falava e sequer a olhava. Parecia sentir vergonha por permitir que ficasse ali, por ser incapaz de contrariar a esposa.

— Marey... — o pai falava pausadamente, como que escolhendo as palavras. — Temo que não gostará do assunto que vamos tratar, mas peço que procure compreender. É sobre o baile de abertura do torneio.

— Oh! Como não gostaria? — um brilho de excitação iluminou sua face. — Cecil e eu não falamos de outra coisa! Será uma grande festa e eu pretendo usar meu vestido de pedrarias azuis...

— Escute-me, filha — Aloys a interrompeu. — Não usará nenhum vestido nessa ocasião, pois não estará presente nela — virou-se para a janela sem conseguir encarar o descontentamento em seu olhar. — Ainda não sabemos o perfil dos cavaleiros que se apresentarão para a disputa, temo por sua segurança. Além do que mantermos sua aparência em segredo, aumenta a euforia dos súditos e...

— A euforia dos súditos? — era a vez dela de interrompê-lo, imersa em uma raiva surda. — Toma-me por uma atração de seu evento idiota? Não bastava ser o prêmio?

— O evento não é idiota, Marey. Tampouco você é um prêmio...

— Ah, não? — sentia vontade de gritar. — Até aonde sei, todos julgam que o vencedor se casará comigo.

— O vencedor não a desposará, minha filha — notou no rei uma leve impaciência. — Ele será agraciado com honrarias que o tornem digno para tal, caso seja de seu desejo e também do meu.

— Se isso não é ser um prêmio, não sei do que devo chamar.

— Chame de dever. Uma princesa tem vários deles, acostume-se — o semblante do pai se tornou duro e agora a encarava sem pestanejar. — É a Princesa de Hawktall. Minha única herdeira. A linhagem dos Caillot depende de você, já que não tenho filhos homens. Sou seu pai e seu Rei, e esta não é uma negociação. Estou lhe comunicando que não participará do banquete e que só poderá ser vista em público no final do torneio.

— Como queira, vossa majestade — tentava com todas as forças impedir que as lágrimas lhe molhassem a face. — Só espero que se lembre que o que matou meu irmão, seu precioso herdeiro, foi a febre e não eu. É injusto que eu seja punida todos esses anos.

Saiu antes que o pai pudesse responder ou ver seus olhos transbordarem.

Entrou no quarto vazio e se jogou sobre a cama, afogando a cabeça em um travesseiro de penas para que ninguém a ouvisse soluçar. Foi quando Cecil entrou, com um pacote nas mãos e dizendo sorridente:

— Já lavei e perfumei o vestido, princesa! Não há mofo e nenhuma mancha, o banhei em alfazema e...

— Guarde-o, Cecil — disse Marey, levantando a cabeça para olhar a criada que há tanto tempo tornara-se uma irmã. — O Rei não permitiu que eu vá ao baile.

Cecil depositou o vestido sobre a poltrona de frente para a penteadeira e se dirigiu a cama, colocou a cabeça de Marey em seu colo e lhe acariciou a face avermelhada pelo choro.

— Todos estavam certos — prosseguiu a princesa. — Os prêmios não passam de honrarias para qualificar o vencedor. O verdadeiro prêmio sou eu. Por que ele deseja tanto um herdeiro, Cecil? Eu não basto?

— Seu pai teme que o Conselho aplique um golpe de estado caso sua única herdeira seja uma mulher — Cecil adotou um ar muito sábio. — Na história de Hawktall as mulheres com poder não costumavam durar muito tempo. Creio que os planos de Rei Aloys seja nomear seu filho como herdeiro, por isso precisa tanto que se case, Marey.

— Tornar meu filho seu herdeiro? Tomará de mim a minha coroa? — Marey empalideceu. — Ele não pode fazer isso! Se julga que vou aceitar...

— Deixe que julgue — a dama de companhia deu um sorriso sarcástico. — Deixe que pense que aceitará. Casar ou não... A escolha é sua. Procrastine o quanto puder, minha gentil princesa, e enquanto isso, tome para si o maior dos poderes.

Marey sentou-se e fitou Cecil, a princesa parecia confusa.

— De que poder está falando, Cecil?

— Do povo, é claro — Cecil se levantou e caminhou até uma das janelas. — Antes de sua mãe houve outra rainha. Conhece a história, não?

Marey estremeceu e tocou o próprio pescoço.

— Sim, conheço — respondeu com pesar. — Foi decapitada diante da Torre da Justiça, condenada por adultério.

— Não foi o suposto adultério que a matou, Marey — Cecil voltou a sentar-se e tomou delicadamente o rosto de Marey nas mãos. — Foi a dúvida inflamada no coração do povo. O mesmo povo que ganhou a guerra para seu pai. Não se engane, Komur Arundel contava com o apoio dos Arkalis, e o exército liderado por Theodard Arkalis esmagaria os homens unidos sob o estandarte do Lobo Caillot. Seus pais nunca lhe contaram a história sobre como derrotaram o bastardo de Dalah no Despenhadeiro de Rodeiky?

A Princesa balançou sua cabeça em negativa, e Cecil prosseguiu: — Por melhores posicionados que estivessem os arqueiros de seu pai, a cavalaria do inimigo esmagaria seus lanceiros antes de perder um número significativo de homens.  Mas os Arkalis não contavam com a reprovação do povo, que jamais aceitaria um bastardo no trono de Kahandre, o rei que tanto amaram. Homens comuns, vendedores, caçadores, construtores... todos escondidos sobre as colinas, portando enormes pedregulhos. Quando os cavalos marcharam contra os homens do rei, foram esmagados pelo ataque do povo, os que conseguiam prosseguir, eram abatidos pelas flechas e por fim, os poucos que conseguiram entrar em conflito direto com os lanceiros, ajoelharam quando seu pai atravessou a espada no coração de seu comandante.

— Sem o apoio popular, meu pai perderia a guerra?

— Certamente — Cecil beijou-lhe a face. — Por isso, conquiste-os. Quando estiver livre para sair, visite as vilas, a feira, deixem que a toquem, abençoe seus filhos... seja vista orando e fazendo oferendas. Cuide pessoalmente de alguns doentes... seja amada, Marey. Quando seu pai anunciar que planeja pula-la na sucessão, deixe o povo saber que não concorda com isso. Uma vez conquistados, eles não se ajoelharão para outra pessoa que não seja você.

Princesa Marey fitou as próprias mãos por um momento, pensativa.

— É realmente uma pena que não possa ir ao baile, eu gostaria tanto — disse por fim.

Cecil pareceu entender que a gravidade do assunto a assustara e que era preferível que voltassem às amenidades.

— Sinto muito, minha princesa — o pesar na voz da moça mostrava que ela realmente sentia. — Ficaremos aqui e jogaremos um pouco, o que acha?

— Acho que deveria ir, doce Cecil — tentou sorrir para tranquilizar a amiga. — Não é justo que seja punida comigo. Além do mais, gostaria que me fizesse uma descrição detalhada de cada um dos participantes.

— Tem certeza? Não é punição nenhuma fazer-lhe companhia, bem sabes disso.

— Agradeço todo o carinho que sempre tem comigo. Mas realmente acho que será divertido saber como eles são, e quem mais além de você me contaria? — o ar alegra voltou ao semblante de Marey.

— Está bem. Buscarei todos os detalhes que puder. Quando voltar, decidiremos para quem vamos torcer. O mais bonito ou o mais forte, o mais galante ou o mais imponente... — soltou um risinho.

— Esperarei ansiosa! — era verdade, Cecil sempre conseguia melhorar as coisas.

Adormeceu no colo da fiel companheira, enquanto recebia carinhos em seus espessos cabelos negros.


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Notas finais do capítulo

Gostaria de agradecer a minha grande amiga Elaine pela sugestão do nome "ahdrak" para nosso ornamento religioso. ♡



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