O Vendedor de Relógios escrita por Jeniffer


Capítulo 1
O Vendedor de Relógios


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem! ♥

Trilha sonora sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=QB0ordd2nOI



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Fingi acordar, mesmo que não tenha dormido durante a noite. Era importante agir normalmente neste dia, eu sabia. Precisava me esforçar para que nada de estranho ou incomum acontecesse. Abri a janela do quarto e protegi meus olhos do sol da manhã. Fiquei ali por alguns minutos, sentindo a brisa gélida arrepiar minha pele, quase conseguindo ver a renovação do ar no ambiente. Fui até o pequeno rádio sobre a mesa e coloquei uma música suave para tocar enquanto tomava banho.

Em frente ao espelho, ajustei a gravata, tentando ignorar o relógio em meu pulso, como se não conseguisse ver a contagem regressiva de apenas algumas horas. Eu não estava enganando ninguém, tenho certeza. Eu só tinha olhos para o meu relógio.

Todos nasciam com um relógio daqueles, algo tão simples, mas que fazia parte de você tanto quanto seu coração. Ele se moldava ao seu corpo, se desenvolvia de acordo com a sua personalidade e era quase como uma versão metálica de você. O meu tinha engrenagens à mostra, um modelo difícil de ser encontrado por aí. “Um modelo raro,” dizia minha mãe, “quer dizer que você é transparente, que demonstra seus sentimentos.”

Contudo, este não é um relógio comum, ele não serve para contar o passar do tempo ou quantos minutos você ainda tem para dormir antes de estar oficialmente atrasado para o trabalho. Estes relógios, desde o começo de sua vida, estão em uma constante contagem regressiva, antecipando o momento em que você vai encontrar o amor da sua vida.

Quando eu era criança, este era um conceito bem abstrato, e eu costumava pensar que eu encontraria uma pessoa idêntica a mim, como um irmão gêmeo perdido, que me acompanharia para sempre. Mas, quando se é criança, é muito mais fácil de esquecer aqueles números gigantes em seu pulso, que demoravam a mudar e pareciam contabilizar uma eternidade inteira. Fora meu pai quem me ensinara a interpretá-los. “Vinte e três anos”, ele me disse, “é o que está mostrando aqui.”

“Isso é quase... pra sempre!”, eu resmunguei. “Não é para sempre, filho”, ele ria calmamente, “é o tempo certo.” Então, para me distrair, ele chamava minha mãe e, juntos, me contavam sobre o dia em que se conheceram. Como ele esbarrou nela no metrô, como a bolsa dela caiu e quase derrubou uma mulher distraída que passava ali. Contavam como seus olhos se encontraram e não mais se distanciaram. Como parecia que o universo tivesse dado a volta que faltava para que tudo finalmente encontrasse o seu lugar, e por instinto, olharam para seus relógios, mesmo sabendo que ambos estavam zerados.

“É como mágica.”, minha mãe sempre dizia. “É como encontrar por acaso algo que você procurou por muito tempo.”, meu pai completava. E me deixavam ali, encarando a pequena eternidade em meu pulso, pensando em qual metrô eu deveria estar dali a vinte e três anos, ou me perguntando se ainda existiriam metrôs em um futuro que me parecia tão distante.

Como deveria ser, o tempo passou e os números ficaram menores, cada vez mais compreensíveis, e agora eu me via encarando a última hora que ele contabilizava. Entrei no elevador, que parecia se mover muito mais lentamente do que de costume. Cumprimentei o vizinho do andar de baixo que entrou logo depois de mim e comecei a batucar os dedos com impaciência.

— Boa sorte hoje. – ele disse, com uma voz desprovida de emoção, logo depois de ver meu relógio.

— Obrigado. – respondi, enquanto as portas se abriam. – Tenha um bom dia!

Saí na portaria, aproveitando minhas últimas palavras como desculpa para olhar para ele novamente, percebendo o pulso vazio que ele se apressava em esconder com a manga do casaco.

— Bom dia! – eu falei para o porteiro, com uma animação contida.

— Bom dia! – ele respondeu, então vendo meu relógio. Era algo automático nas pessoas, quase como reparar no cabelo de alguém. – Hey, que sorte a sua! Boa sorte hoje, senhor.

Agradeci, fingindo não ver o relógio em seu pulso, tão cheio de números quanto a minha pequena eternidade costumava ser. Decidi não pensar nos cabelos brancos, na postura frágil dele ou em como aquela tosse violenta o assaltava de vez em quando. Ou em como, se carregássemos um relógio da vida, seus números seriam infinitamente menores do que aqueles. O relógio dele continuaria contando, até mesmo quando ele não mais estivesse aqui.

Eu sabia que não deveria falar sobre essas coisas com as pessoas, pois as deixariam desconfortáveis. Soube disso quando perguntei a um homem na rua, quando era criança, o porquê de ele não ter um relógio também. Vi o olhar de espanto por alguém estar falando com ele, então a compreensão o atingindo e deixando uma tristeza quase palpável. Minha mãe me afastou dali e se desculpou com o homem, então me disse que não devemos falar sobre isso.

“Mas ele não tinha relógio, mãe.”, tentei argumentar, “e todos nós temos um relógio.”

“Algumas pessoas não tem relógio, docinho.”, ela disse. “Algumas pessoas nascem sem relógio. É muito raro, mas acontece, às vezes.”

“Ele nasceu sem relógio?”

“Não sei... Talvez ele tenha visitado o Vendedor de Relógios.”

Meu pai dizia que quase todos os lugares do mundo tem um vendedor de relógios. Eu sabia que era verdade, pois passava por um no caminho para o trabalho. Era um estabelecimento tão pequeno e antigo que dava a sensação de ter se encolhido com o tempo, tentando não ser esmagado pelos prédios altos e modernos que o cercavam. Uma placa corroída e tão antiga quanto o mundo exibia, em letras descascadas, as simples palavras “Vendedor de Relógios”. E lá dentro, às vezes eu via um senhor tão velho quanto a eternidade, com uma expressão tão séria e introspectiva que me fazia pensar que, se a tristeza se transformasse em uma pessoa, seria nele.

Hoje, passei por ali e o vi limpando alguns relógios de aparência antiga. Queria ter utilizado outro caminho, talvez contornado a quadra e evitado aquele lugar, mas eu não podia mudar minha rotina, não hoje. Então continuei, sorrindo para as pessoas que me olhavam com surpresa, inveja, ternura e esperança.

Quando estava próximo ao trabalho, passei na frente de um pequeno café. Eu já havia tomado café da manhã, mas o aroma que emanava dali me enfeitiçava. Algo dentro de mim me disse para entrar, como se eu precisasse estar ali. Olhei para meu relógio, que agora marcava menos de dez minutos. Eu sabia que podia correr por duas quadras e encontraria o metrô, mas ri de meu próprio pensamento.

Entrei no café e me sentei em uma mesa de canto, surpreso em como o mundo era silencioso lá dentro, ao contrário da rua agitada e barulhenta. Pedi um café para a garçonete no balcão e ela trouxe uma xícara quente prontamente. Cumprimentou-me e então viu meu relógio.

“Que sorte, senhor!”, ela disse, com olhos gentis. “O meu ainda tem alguns meses.”

“O tempo voa...”, falei, com um sorriso. “Ontem eu tinha uma eternidade, hoje tenho apenas alguns minutos.” Ela sorriu e se afastou, como se não quisesse atrapalhar o momento. Então decidiu limpar o balcão, inventando uma desculpa para poder observar o que aconteceria em seguida.

Dois minutos. Eu me senti entorpecido, como se pudesse sentir a terra se movendo, o universo se alinhando e as estrelas me observando. Como se toda minha vida até então fosse como um borrão desfocado e estivesse prestes a se fazer compreensível diante dos meus olhos.

Um minuto. Minha respiração se acelerou e meu coração ameaçou sair de meu peito. Tamborilei os dedos na mesa e esqueci completamente do café. Esqueci até das pessoas que ali estavam e deixei meus olhos correrem pelo ambiente, enquanto os últimos segundos escorriam de me relógio de engrenagens.

Parei de procurar quando ela entrou.

O tempo parece desacelerar, cada milésimo de segundo durou horas, e eu senti como se já a conhecesse há uma eternidade. Fiquei hipnotizado pelo modo como o seu cabelo esvoaçava ao vento, como seus olhos verdes pareciam brilhar como constelações e seu sorriso... ah, seu sorriso. Ele brilhava como o sol.

Ela era o sol, e eu um mero planeta qualquer orbitando ao seu redor. Levantei-me desajeitado, sem ver as lágrimas discretas da garçonete, e me aproximei dela. Eu sabia o que aconteceria agora. Sabia que seria como ver meus pais juntos novamente, com amor transbordando de seus olhos, uma atração irresistível como um campo gravitacional que não permitia que suas mãos se afastassem umas das outras por mais do que alguns segundos.

Então eu disse olá. Uma palavra tão simples e boba que me pegou de surpresa e eu soube, que se as engrenagens de meu cérebro talvez estivessem expostas, ela poderia vê-las falhando miseravelmente.

Ela olhou para mim e eu senti meu coração parar.

“Olá.”, ela disse, confusa. Seus olhos não se pareciam em nada com os da minha mãe, nem remotamente. Assim, de perto, eram como galáxias distantes, apenas pontos brilhantes na vasta escuridão. Seu sorriso se apagara e eu fiquei à deriva, vagando pela eternidade etérea de um universo sem vida.

Olhei discretamente para o relógio em seu pulso e vi os infinitos dias que ainda restavam ali.  Uma pequena eternidade que não me pertencia.

Meu relógio já não mais se movia e suas engrenagens pareciam ter envelhecido alguns poucos séculos. O dela continuava pulsando como um coração jovem, contando o tempo que ainda lhe restava. Movi meus pés sem muita certeza, me deixei vagar por aí, sem saber para onde ir.

Não mais sentia o mundo se mover. Era como se eu tivesse me movido muito rápido em direção a um buraco negro que sugou todas as cores e a luz do mundo, e tivesse deixado apenas a ausência. Apenas o vazio do não existir.

Acabei parando na frente do Vendedor de Relógios. Olhei para dentro do pequeno estabelecimento e vi o velho vendedor olhando para mim com seus olhos tristes. Entrei devagar, observando os inúmeros relógios que tomavam cada centímetro das paredes e do teto, que se acumulavam em pilhas e mais pilhas pelo chão, velhos e esquecidos.

“O senhor conserta relógios?”, perguntei, sem muita certeza na voz.

“Não.”, ele respondeu, com tristeza, como se já tivesse respondido aquela mesma pergunta diversas vezes. “Mas posso lhe vender um novo relógio, dependendo do seu estado.”

Estendi o pulso e deixei que ele retirasse o relógio, sentindo como se parte de mim estivesse sendo amputada com particular violência.

“Engrenagens à mostra, fios de ouro...”, ele pareceu lamentar, “Um modelo muito raro.”

“Ele está quebrado. Você pode tentar consertar?”

“Ele não está quebrado”, ele respondeu, rapidamente. “O que não está quebrado, não pode ser consertado.”

O Vendedor de Relógios o segurou entre suas mãos e fechou os olhos. Um breve sorriso surgiu em seus lábios, mas logo foi substituído pela tristeza. Talvez, se eu me olhasse no espelho agora, teria uma expressão parecida.

“Eles guardam sua história, você sabia? Cada segundo, gravado eternamente nestas engrenagens”, ele falou, mais para si mesmo do que para mim. “O seu tem uma constituição de estrelas, muito difícil de encontrar. Ouvi histórias sobre isso, há muito tempo...”

Com muita calma e cuidado, ele deixou meu relógio no topo de uma pilha ao seu lado, apenas mais um entre tantos outros relógios esquecidos. Procurou por entre as gavetas do balcão e me estendeu um relógio novo, preto e discreto, tão mecânico que parecia morto.

“Este não tem contagem nenhuma.”

“Tem, sim. Ele marca o tempo.”

“Como um relógio comum?”, eu questionei, surpreso com a tristeza que tingia minha voz.

“O que é comum?”, o Vendedor de Relógios olhou ao seu redor. “O tempo passa e merece ser contado, vivido e eternizado. Não há nada de comum nisso.”

“Mas eu tinha um relógio com uma constituição de estrelas, você mesmo disse isso!”

“Sim, eu disse.”, ele me dirigiu seu típico olhar triste. “Mas até mesmo as estrelas mais brilhantes, um dia, se apagam.”

Saí de lá caminhando vacilante, e percebi que mais nenhum olhar era lançado em minha direção. E cada olhar distraído que caía em meu pulso, se desviava prontamente, envergonhado. Não havia olhares de curiosidade, inveja, ternura ou felicidade. Não havia mais nada.

Percebi que, depois de tanto tempo sendo transparente, eu finalmente me tornara invisível.


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Notas finais do capítulo

Esta ideia surgiu magicamente e fluiu de mim como se já estivesse pronta.Espero que tenham gostado do resultado! ♥