Morada da Deusa escrita por Last Rose of Summer


Capítulo 3
Zero




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Era final de tarde. Íris estava nos jardins do Templo, sentada em um dos bancos, observando o céu azul escurecer. Havia muito em sua mente, muito que ela precisava pensar; uma decisão que ela precisava tomar que mudaria sua vida para sempre. Ela suspirou.


Mais cedo, naquele dia, os sinos do Templo tocaram anunciando que a Sacerdotisa Chefe chegara de sua reunião importante com outras Sacerdotisas da nação, na capital. Ninguém sabia o motivo da reunião. Então, quando ela anunciou, na frente de todo mundo, que Íris havia sido escolhida como aprendiz de Segunda Sacerdotisa, ninguém ficou mais surpresa do que ela. Ou mais feliz.

Isso significava, porém, mudar-se para a Capital do Império, porque o Templo Principal ficava por lá. Significava, também, mudar-se para longe da floresta... e de Amarílis. Deixá-la sozinha, mais cedo do que esperava, e não vê-la pelo resto dessa vida, a não ser em sua própria mente. Não sabia se seria capaz.

— Parabéns, Irmã. — Uma das meninas, Jasmim, aproximou-se, e Íris respondeu com um sorriso automático. — Para ser honesta, não fico muito surpresa. A Deusa a abençoou com um talento para a medicina, e a Ordem se beneficiará imensamente. Segunda Sacerdotisa é uma honra imensa, e não duvido que você chegará ter uma cidade importante para velar. Sua mãe vai ficar orgulhosa.

O sorriso de Íris foi um pouco mais genuíno, dessa vez. Sim, sua mãe ficaria muito orgulhosa. Diria, em alto em bom som, para quem quisesse (e não quisesse) escutar, que sua filha mais velha recebera uma honra imensa. Mandaria cartas para todos os membros da família, mesmo os que ela nunca vira, e faria questão de lhe comprar roupas novas para seu primeiro dia na Capital.

— Eu ficaria honrada, claro. Mas sou só uma aprendiz.

— Por enquanto. — Jasmim riu. — Eu estou com tanta inveja! Duvido que um dia eu consiga chegar a tamanha honra. Me escreva uma carta contando sobre como é a capital. Sobre como é a moda, são os prédios... e os homens.

— Não deixe que Mãe Rosa a escute.

— Oh, ela está tão ocupada escrevendo cartas... e escolhendo alguém pra tomar o seu lugar. Sabe, como assistente... e enfermeira.

Íris assentiu. É claro que estava. É claro que agiria como se ela já tivesse aceitado, já que, para ela, toda a sua vida fora dedicada a Deusa. Não havia motivo aparente para que recusasse, e nem ela sabia se o queria. O dinheiro, o status, tudo o que viria com a posição eram tão... chamativos.

— Acho que vou meditar, Irmã.

— Oh? Acho melhor não, Irmã. Sei que a presença da Deusa é forte para você, mas há um aviso de atividade sobrenatural. Havia, hoje de manhã, pegadas de lobisomem na fazenda do Junípero. Talvez fosse melhor deixar o perigo passar.

Íris pesou a informação. Soubera do aviso, é claro, mas supusera que o aviso se devia a algum descuido de Amarílis. Estivera errada.

— Oh, bem, se esse é o caso, acho que vou meditar no jardim.

— Vou pedir para não te incomodarem.

— Obrigada. — Íris sorriu.


E então lá estava ela, sozinha, fingindo que estava meditando e conversando com a Deusa, enquanto, na verdade, pensava em Amarílis. Olhava para o céu e a lua que surgia, lembrando-se das muitas vezes que a observara preparar alguma coisa dentro de seu círculo. Sabia que, no futuro, seria a única coisa que a ligaria a Amarílis. Não havia florestas na Capital, nem pequenas casas de madeira, nem teares do século anterior.

A noite desceu devagar e, antes que pudesse perceber, algumas Irmãs vinham acender as lanternas do jardim. Ela devia entrar, mas não tinha vontade de encarar ninguém.

— Não acha perigoso ficar aqui fora, Irmã? — Alguém veio em sua direção depois de terminar o trabalho de acender a lanterna. Íris não sabia seu nome.

— Acho melhor entrarmos, não é mesmo? Com o aviso de lobisomem, todo cuidado é pouco. Não queremos ninguém amaldiçoado nessa noite feliz.

— O que me lembra... Parabéns, Irmã.

— Obrigada. — Íris riu, mas seu riso foi abafado por um grito.

Ela virou na direção de onde ele viera, só para se deparar com a imagem de dois seres deformados — uma mistura malfeita de humano com lobo, peluda e suja, com dentes afiados, andando sobre duas pernas — e muito, muito sangue. No chão, jazia o corpo de uma das irmãs.

— Mas... nós estamos longe da floresta! — Íris sussurrou, incrédula. — É impossível... como eles chegaram aqui? Como passaram pelos caçadores? A vila...

Nesse momento, um dos lobisomens virou o rosto em sua direção, e deu um sorriso cruel. Íris segurou na mão da garota que estava consigo, e puxou-a enquanto começava a correr. O lobisomem era rápido, mas ela tinha a vantagem de conhecer o lugar e estar distante. Apesar do medo, do coração batendo forte, da vontade de sentar e chorar, continuou correndo.

O outro lobisomem, que ficou para trás, pegou uma das lanternas e passou a atear fogo no jardim, começando pela árvore mais velha. Íris, porém, estava ocupada demais correndo por sua vida para se condoer pela destruição que aquilo causaria no Templo.

— Não deveríamos ver se há alguém lá dentro? Se é possível salvar alguém? — A garota perguntou de repente, diminuindo o passo.

— Não com um lobisomem ao nosso encalço. Tenho certeza de que as pessoas do templo prefeririam morrer queimadas a se transformar.

A garota ficou quieta, pesando as palavras. Íris tinha razão, claro. Entre morrer e ir para o lado da Deusa e virar uma daquelas criaturas vis, que se divertiam com tanta destruição, ela preferiria morrer.

As duas finalmente abandonaram o Templo, só para se depararem com uma cena muito pior. A vila inteira em chamas, pessoas correndo para um lado e para o outro, corpos no chão, crianças chorando, mordidas. Era cruel, muito cruel, e lágrimas lhe vieram ao rosto instintivamente.

— Oh, Deusa, não! Como pode algo assim acontecer? Como pode deixar algo assim acontecer?

— Irmã... — Íris respondeu. — Ela sente, como nós sentimos, Ela chora, como nós choramos. Mas isso não é obra d’Ela. Vamos, acho que conheço um lugar onde podemos nos esconder.

E puxou-a pelo braço, correndo na direção da floresta. O lobisomem, que antes as perseguia, já desistira da perseguição e fora atrás de uma presa mais fácil. Assim que percebeu, a menina parou.

— Irmã, ele já foi embora. Não devíamos nos fazer útil? Seus talentos medicinais serão muito úteis, agora.

Íris mordeu o lábio. Não queria ser útil. Queria ver se Amarílis estava bem, olhar nos olhos dela e sentir aquele medo desaparecer. Queria ouvi-la dizer que os lobisomens e toda aquela destruição — tudo — iria embora ao nascer do sol. Mas, em vez disso, parou e olhou em volta.

— Vamos levar todo mundo para um lugar que possamos proteger. Precisamos de Sálvia.

— Sálvia?

— Se colocarmos nas portas e nas janelas, impediremos que os lobisomens entrem. Mas não podemos colocar lá dentro ninguém que tenha sido mordido, ou não vai funcionar.

— Como você sabe disso?

— A Deusa — Amarílis.

— Ela falou com você?

— Eu te disse, irmã. Ela sente. A Deusa está conosco.

A garota sorriu, um pouco mais calma, mais confiante. Todo o peso que saíra dos ombros dela, porém, foram parar nos seus. Era mentira, a Deusa não lhe dera sinal algum. Mas Íris tinha uma responsabilidade, como Mãe e Irmã.

— Podemos levar todo mundo para a casa dos Ferreiro. É a mais protegida, e uma das pouco que não está pegando fogo.

Um pensamento lhe ocorreu. E se os lobisomens colocassem fogo na casa, com todos lá dentro?

— Não. Leve todos para os campos. Faça um círculo no chão. Faça com que cada pessoa dentro do círculo segure um pouco de sálvia. Não deixe ninguém sair, nem deixe que nenhum lobisomem os atraia para fora.

— Mas-

— Não questione, faça. Quanto mais rápido fizer, mais gente será salva. Procure Sálvia nos jardins, nas hortas, em qualquer lugar que você talvez vá achar. Não fique muito tempo em cada lugar, pode ser perigoso, e-

— Mas Irmã, você soa como se não fosse fazer comigo.

— Tem algo que eu preciso fazer.

— O quê? Mas se você for embora, como vou saber o que a Deusa quer que eu faça? E se eu esquecer?

— Muito bem — Íris respondeu, contrariada. Amarílis era capaz, ela sobrevivera por muitos anos, certo? E era imortal. — Vamos.


Íris evitava olhar a destruição, o fogo, as pessoas mortas e mordidas. Faziam seu estômago revirar, suas pernas tremerem. Ela não podia ceder, porém, tinha que continuar indo em frente. A menina já fizera o círculo num dos campos e estava lá dentro. A senhora Valente (que matara o próprio marido, para evitar que fosse transformado por causa da mordida) plantava Sálvia no quintal, e arrancara cada pedaço dele para dividir entre as pessoas do círculo e, naquele momento, Íris levava duas crianças consigo para lá.

Achara-as, sozinhas, chorando sobre o corpo sem vida da mãe, que tinha um punhal na mão, um corte no pescoço e uma mordida na perna. Íris podia imaginar o que acontecera ali, quase vividamente. A mãe fora mordida e se matara, na frente das crianças, antes que pudesse se transformar. Ela não conseguia imaginar o quão terrível seria ter assistido àquela cena.

— Vamos, vocês vão ficar bem — Íris disse suavemente. — Mas precisam fazer silêncio, ou vão nos ouvir. Vocês não querem isso, certo?

Não deu muito certo, mas ela continuou correndo. Suas pernas queimavam. Seu vestido estava rasgado, e, em algum momento, ela perdera um dos sapatos. Mas estava bem, estava viva, e estava ajudando. Além de toda dor e tristeza, havia algo dentro dela, uma coragem recém-descoberta, quase gloriosa.

Ela estava quase chegando lá. Faltava pouco. Já olhara quase toda casa não destruída da vila, e os lobisomens ainda não tinham descoberto o círculo que fizera. Se continuassem assim, talvez não perdessem mais ninguém, se continuassem assim...

Ela tropeçou e uma das crianças gritou. Em pouco tempo, um dos lobisomens estava em seu encalço. Íris tentou correr mais rápido, apertar o passo, mas era difícil sem um dos sapatos e tendo que puxar duas crianças. Mas conseguiria, estava conseguindo. Depois de tanto sucesso, quase acreditava que a Deusa estava consigo.

Já conseguia ver o círculo, as pessoas. A senhora Valente lançava-lhe um olhar angustiado, dúbio, e a Irmã gritava seu nome, pedia para que fosse mais rápida, para que pegasse força com a Deusa. E ela estava tentando.

Foi quando, mais uma vez, deu tudo errado.

Uma das crianças caiu.

O lobisomem riu, deliciado com sua presa.

Íris gritou. A Irmã gritou. Uma outra voz gritou, ainda mais angustiada...

E Íris se jogou na frente da criança.

— Corre — pediu, enquanto sentia as mandíbulas do monstro se fecharem em seu ombro. A criança correu, e ela ficou.

Então, tão rápido quanto tudo deu errado, algo deu certo, e o lobisomem caiu morto no chão, a boca cheia de sangue, os olhos com o resquício da diversão cruel que sentira ainda pouco.

— Isso é tão típico de você —alguém disse, e Íris reconheceu a voz. Amarílis. Ela vestia azul, prendia os cabelos escuros em um coque malfeito e trazia consigo um punhal de prata e uma pedra que brilhava. — Tão, tão típico. Arriscar a sua segurança para aprender medicina na floresta. Arriscar sua vida para salvar uma criança.

— Amaríl-

— Shh. — E, naquele momento, Amarílis era Mãe, Mentora, Amante, Deusa. — Está tudo bem, agora. Vai ficar tudo bem. Não vou perder você, também. Ele não vai me tirar isso. Não se atreveria.

Íris piscou. Amarílis pegou-a no colo, com mais dificuldade do que Íris achou que ela sentiria.

— Minha mãe...

— Salva.

— As pessoas...

— Não me importo. — Amarílis sorriu, amarga, e começou a andar devagar na direção da floresta, como se não houvesse fogo, vila, lobisomem, mordida. Só as duas, o silêncio. Não fosse a dor, o cheiro de sangue, a sombra que pairava sobre a sua cabeça, Íris pensaria que tudo aquilo era um sonho. Ela pensou em dizer alguma coisa, mas não disse nada. O resto do caminho foi feito em silêncio, quebrado apenas por sua respiração ofegante e o barulho dos passos pesados de Amarílis contra o chão.

Quando, por fim, chegaram na clareira em que Amarílis morava, Íris foi colocada no chão, no meio do círculo. Então, Amarílis falou.

— Eu não vou perder você. Mas vou te dar uma escolha. — Amarílis pegou o punhal de prata e colocou na mão dela. Seus dedos eram quentes contra os seus gelados. — Você pode reencarnar. E eu vou encontrar você, onde quer que você renasça, quem quer que você seja... — e, então, Amarílis colocou a pedra brilhante que trazia consigo em sua outra mão —... ou eu posso te fazer ficar como eu sou. Sobrenatural.

Íris sorriu, um pouco amarga, enquanto via sua vida passar diante de seus olhos. Não chegaria a Segunda Sacerdotisa. Não faria sua mãe orgulhosa. Mas, diante daquelas alternativas, não tinha dúvida de qual escolheria.

— Precisa perguntar?


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Notas finais do capítulo

Só pra explicar, "Mãe" é uma pessoa hierarquicamente mais alta que você na religião. "Irmã" é uma pessoa hierarquicamente na mesma posição. Uma "Mãe" pode chamar qualquer pessoa abaixo dela de "Filha" ou "Filho".

A vila de Íris é uma vila pequena e desimportante, mas por causa da influência de Amarílis e tal, ela aprendeu a lidar com ervas medicinais e outras coisas que não precisam de magia, então o talento dela ficou famoso. Ela é bem jovem, maaas como é famosinha, fizeram ela virar aprendiz de Segunda Sacerdotisa, que é a posição mais alta que uma pessoa não-nobre pode ter. Segundas Sacerdotisas são responsáveis por uma cidade/vila. Tem as Arqui-sacerdotisas, que são responsáveis pelas Segundas Sacerdotisas de uma região/distrito (mais sua própria cidade/vila), e tem a Primeira Sacerdotisa, que é a responsável pela capital + a pessoa para quem todas as outras sacerdotisas respondem. Abaixo disso, temos as sacerdotisas normais, que é o caso de Jasmim, Íris e a outra que não tem nome.

No caso do Império onde Íris mora, as sacerdotisas são politicamente importantes, inclusive gozam de alguma liberdade política. Pensa na França antes da revolução, em que o clero tinha lá seus privilégios. Além disso, elas lidam com os órfãos, cuidam da caridade e, na maioria das vilas e cidades menores, também são responsáveis pela educação e pelo cuidado médico.

Sobre os lobisomens: nossa, ser lobisomem é bad. Ninguém gosta deles. E eles são bem selvagens nesse estilo que cês viram. No império de onde a Íris vem, eles são particularmente muito odiados, por serem vistos como criaturas do Oculto, e não da Deusa. Enfim, é isso, espero que tenham gostado.