Morada da Deusa escrita por Last Rose of Summer


Capítulo 2
Quatro




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— Dizem que ela pode se comunicar com a Deusa, que foi tocada por Ela na infância.

— Eu ouvi que a Deusa em pessoa deu a ela a habilidade de curar pessoas.

— Não, isso não! A Deusa deu a ela o conhecimento das plantas que ela usa para curar pessoas. A Deusa não transformaria ninguém em um Sobrenatural, isso é coisa do Outro.

Todos concordaram veementemente, e o burburinho diminuiu até parar quando ela chegou perto.

— Bom dia, Senhor Valente, Senhora Cordeiro, Senhor Junípero, Senhorita Oliveira.

— Bom dia, Mãe — foi a resposta em uníssono. E, depois de um momento, a Senhorita Oliveira perguntou — Vai rezar?

Era uma pergunta estúpida. Íris usava seu vestido azul característico e levava em seus braços uma cesta com frutas frescas e vegetais da estação.

— Vou, sim. — Ela respondeu, porém, com um sorriso no rosto. — Vou pedir à Deusa que nos dê bom tempo para a temporada de plantio. E sabedoria para lidar com o filho da Senhora Ferreiro.

— Ouvi dizer que está bem doente.

— Está, sim. — Íris respondeu, sem querer fazer fofoca. A família Ferreiro era uma família mais ou menos rica e mais ou menos poderosa na vila, o que significava que tinham dinheiro o suficiente para pagar por médicos. Que tivessem pedido ajuda a Íris, uma curandeira, significava que estavam absolutamente desesperados. Só os desesperados recorriam a ela.

E ela, por sua vez, fazia seu melhor para conseguir lidar com toda essa confiança que lhe era depositada.


A floresta já lhe parecia mais ou menos conhecida, depois de quase dez anos aprendendo a se movimentar por entre suas árvores sem perturbar os animais. Já lhe parecia um pouco mais como um lugar seguro — não tanto como um refúgio, como Amarílis a encarava — e menos como a casa de lobisomens, ghouls e outros seres perigosos.

Bem, talvez fosse um refúgio, sim. Um lugar distante dos olhares questionadores, das más línguas. Longe da frustração e da preocupação que era ser responsável pelo bem estar de várias pessoas. Longe da pressão de ser requisitada, benquista e um exemplo para as criancinhas.

Perto de uma certa mulher.

E, claro, perto de si mesma.

O que a levava à impressão de que o que era seu refúgio não era bem a floresta, mas a pessoa que vivia ali. A pequena casa de madeira malcuidada, o sorriso raro, os belos olhos castanhos, a textura da pele...

Íris balançou a cabeça para espantar os pensamentos e se concentrou em achar o caminho para o lugar onde Amarílis decidira construir seu chalé. Ainda se perdia, às vezes. Naquele dia, porém, achou-o com facilidade. Alguma coisa na luz, talvez, que iluminava a clareira com mais intensidade que o resto da floresta.

— Olá? — Íris chamou. Não teve resposta.

Não era a primeira vez que ela chegava e Amarílis não estava por perto. Íris colocou a cesta que trazia na mesa de madeira que ela tinha ali do lado de fora e sentou-se em uma das cadeiras. Não conseguia não apreciar o fato de que, apesar de ser mulher, Amarílis sabia esculpir na madeira e que, apesar de ser mulher, ela caçava e que, apesar de ser mulher, sobrevivera sozinha por tanto tempo.

E, ainda assim, não parecia masculina.

Dos longos cabelos castanhos ao corpo farto, tudo nela exalava uma mistura de feminilidade com sobrenatural. Mesmo que ela não estivesse ali na sua frente, Íris não precisava nem fechar os olhos para evocar sua imagem. Ela se perguntava se fora enfeitiçada, se o fato de voltar sempre que podia para aquele lugar era o resultado de uma maldição, perguntava-se se as reações de seu corpo e de sua mente eram fruto de maquinações sobrenaturais; mas, lá no fundo, não se importava.

Amarílis fizera mais por si e por sua vila em alguns meses do que a deusa fizera em vários anos. Se o fato de ficar com ela e ser feliz enfurecia a deusa, então que fosse. Estava disposta a pagar o preço. Tinha medo, sim, mas mais que isso, tinha a esperança de que a deusa fosse entender porque ela fazia aquilo.

Porque o motivo pelo qual ela continuava voltando mesmo depois que descobrira que Amarílis não era humana e o motivo pelo qual não acreditava que realmente estava enfeitiçada era o mesmo motivo que a fazia conseguir trazer a imagem tão vívida de Amarílis em sua mente. Amor. Ela amava Amarílis mais do que se amava uma mãe, e ela agira como sua mãe em muitas ocasiões, amava-a mais do que se amava uma mentora, e Amarílis o fora por diversas vezes.

Amava-a como quem ama uma amante, uma parceira...

... e sabia que seria só um pontinho na linha do tempo dela. Amarílis vivera mais que uma centena de anos. Amarílis era imortal. Amarílis tinha habilidades incríveis que a permitiam fazer coisas que Íris jamais sonharia que fossem possíveis, se não a conhecesse.

E, ainda assim, Amarílis suportava sua presença semanal sem reclamar. Ensinava-a detalhes sobre esse animal ou aquela planta, sobre suas propriedades curativas ou mágicas. Deixava-a assistir enquanto testava uma ou outra teoria sobre sua própria magia. Ela era incrível, absolutamente incrível.

— Uma cara tão triste já a essa hora da manhã! O que houve? O garoto não sobreviveu?

— Oh, não, o garoto está bem! Quero dizer, não está bem, mas está vivo. — Sorriu. Ela nem conhecia o garoto, mas se preocupava com ele.

— Isso é bom — ela respondeu, colocando as ervas que trazia em seus braços em cima da mesa de madeira, ao lado do cesto que Íris trouxera. — Eu estive pensando, e acho que tenho uma solução para o problema dele. Uma infusão com essa planta aqui, fervida durante a lua cheia, depois misturada diante dos primeiros raios da manhã...

E, como se tivesse acabado de perceber que Íris estava por perto, deixou as ervas para trás e se virou na direção dela.

— É bom te ver. — Foi a vez de Amarílis dar um sorriso. — Já comeu?

— Não — mentiu. Íris sempre comia antes de sair de casa, mas sempre mentia quando Amarílis perguntava. Adorava observá-la enquanto preparava o café da manhã, movendo-se pela cozinha como se fosse uma humana normal, cantando alguma coisa ou conversando com ela sobre como fora a semana. Fazia com que Íris se sentisse diferente, leve. Permitia que imaginasse que aquilo acontecia todos os dias, que as duas moravam juntas, que eram um casal em um momento doméstico banal.

Amarílis pegou a cesta de frutas que ela trouxera e colocou diante da bancada de madeira. Assim que começou a cortar uma das frutas, começou também a cantar uma canção antiga, que Íris nunca tinha escutado.

— Que música é essa?

— Oh, minha mãe costumava cantá-la enquanto cozinhava.

— E como ela era?

Amarílis não respondeu. Nunca respondia nada quando o assunto era sua família ou o lugar de onde viera, o que a fazia imaginar se algo muito trágico não acontecera para trazê-la até ali. Afinal, ela vivera por quase cem anos no meio da floresta, longe de qualquer contato humano, até ela aparecer.

As duas ficaram em silêncio por um longo tempo, até que Amarílis voltou a cantar. Uma outra música, dessa vez.


— Por que lua cheia?

— A lua cheia faz a magia ficar mais forte.

— Mas não é a lua dos lobisomens?

— Também. — Amarílis respondeu. — Tem certeza de que não tem problema você passar a noite aqui? As pessoas não vão desconfiar?

— Eu vou dizer que a deusa requisitou minha presença por mais tempo. Se eu voltar com uma cura para o garoto, eles não vão duvidar.

— Você confia demais na credulidade das pessoas. O que aconteceria se eles duvidassem? E se alguém te seguisse e descobrisse que eu sou imortal? Que eu pratico magia? Eles te queimariam junto comigo.

— Eles não arriscariam heresia ao queimar uma Filha da Deusa.

— Sua posição na igreja não é intocável.

Íris sorriu. Mais por causa da preocupação de Amarílis do que qualquer outra coisa.

— Eu vou ficar bem. — E, depois, completou — mas meu paciente não ficará se eu não levar o remédio para ele logo.

— Muito bem — respondeu, um pouco contrariada. Então, com a ponta do dedo, ela fez um círculo no chão e marcou os pontos cardeais. Depois, sentou-se exatamente no centro, com o material que precisaria, e pôs-se a trabalhar ao som de uma canção. Não era uma canção mágica, Íris sabia, era apenas uma canção normal, que a ajudava a trabalhar, mas dava um tom místico ao que ela estava fazendo.

Íris se sentou do lado de fora do círculo, para não atrapalhá-la, e observou-a praticar sua magia sob a luz da lua cheia — e do fogo que acendera. Era grande, poderoso, e fazia com que Íris se sentisse ainda menor em sua humanidade.

Ali, sentada, no escuro, desejou que pudesse ser como ela.

E não sabia que o Destino escutara.


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