Águas Obscuras escrita por Alph


Capítulo 9
Noites Escuras


Notas iniciais do capítulo

Desculpa pela demora para atualizar, sei que foi mais de um mês. Desculpe-me gente.
MUITO OBRIGADO PELOS 100 COMENTÁRIOS.
OBRIGADO A TODAS SEREIAS E TRITÕES QUE AJUDARAM NOSSA TRIBO A CHEGAR ESSE NÚMERO. AMO VOCÊS.



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A escuridão da noite dificultava um pouco minha visão, mas Héclyro havia trazido consigo aquele mesmo objeto brilhante envolto em uma redoma de vidro e metal que iluminava o ambiente. Ele estava montado naquela mesma criatura que havia rugido e me encarava, não tive palavras para descrever que tipo de animal era aquele. O bicho empinou as patas dianteiras e Héclyro se segurou, era uma cena linda e assustadora. Escondi-me atrás de uma rocha apenas observando de longe.

— O quê... — minha voz saiu falha enquanto minhas brânquias moviam-se rapidamente, aflita. Aquele ser era estranho, ele tinha um couro de cor preta, possuía quatro patas e sua cabeça era triangular e cheia de pelos, diferente do corpo. Ao lado de suas orelhas ele tinha dois grandes chifres que mais pareciam galhos de árvores de tão grandes que eram. — O que é isso, Héclyro?

— Isso é um Hyfiros — sua voz grave se espalhou pelo ambiente enquanto aquele bicho virava a cabeça olhando de um lado para o outro. — Eu sei o que estás pensando. Fique calma. — Héclyro passou a mão nele. — Isso é uma espécie de cavalo muito rara. Ela é passada de geração em geração na casa Lavyrio. Se aproxime, não precisa ter medo, não deixarei te machucar.

Aproximei calmamente, passei pelas rochas observando aquele animal que tinha uma respiração pesada e trotava com as patas me encarando. Sentei-me em uma pedra e notei o tanto que Héclyro ficava charmoso em cima daquela criatura. Minhas brânquias em meus pescoços se acalmavam gradativamente.

Héclyro passava a mão no longo pescoço do animal fazendo carinho. Julguei que ambos pareciam ter uma relação amigável. Héclyro usava aquela capa azul, e tecidos negros mais pesados devido ao frio. Meu olhar foi até sua cintura observando que não havia nenhuma lâmina consigo. Ele deixou aquela redoma de vidro com luz em uma rocha e se aproximou de mim.

Suas roupas molhavam-se a cada passo que ele dava até subir em frente à pedra e ficar de frente a mim. Novamente minhas brânquias começaram a subir e descer mais depressa. Olhei novamente ao corpo de Héclyro, que era muito bonito e não havia necessidades de tantas roupas. Sua face estava séria como desde que eu o conheci, suas bochechas estavam rosadas. Seus lábios róseos umedecidos abriram-se para falar algo, mas eu o cortei.

— Esse animal brilha ou voa? Nunca vi nada parecido. — Desviei meu olhar do seu rosto para que ele não notasse que eu olhava para sua boca, então encarei o Hyfiros dele que havia se deitado na areia observando nós dois.

— Não, ele é um animal terrestre. — Héclyro conteve um sorriso. Talvez minha pergunta tenha soado muito idiota. — Esses Hyfiros são do outro continente, vieram com as primeiras gerações da minha família na colonização daqui. — Ele suspirou e encarou seu animal. — Por isso que você não deve ter visto algum animal parecido como Elis.

— Elis? — perguntei. Quando ele falou da geração de sua família, vieram recordações de que talvez alguma mulher de sua família possa ser uma sereia, logo uma aflição subiu em minha mente.

— Elis é o nome dele. — Héclyro esboçou uma minha linha curvada em seus lábios semelhante a um sorriso fechado. Ele falava com muito orgulho de Elis e de sua família.

— É bravo?

— Apenas com pessoas que ele não gosta. Uma vez, enquanto eu andava pela floresta com ele e meus irmãos, ele me salvou de um animal nativo. Elis perfurou o bicho com seus chifres. — Héclyro até colocou uma de suas mãos em minha cauda enquanto dizia sobre Elis.  Olhei para sua mão, aquele contato mexeu comigo, mas não consegui ter uma expressão que demonstrasse o que eu sentia. Porém ele a retirou calmamente quando notou o contato sorrindo envergonhado. — Me perdoe. Geralmente temos o hábito de demonstrar afeições com toques, mas compreendo que tu... Bem, que vós... — Ele coçou seus cabelos enquanto falava.

— Afeição?  — Tentei usar minhas lembranças para criar uma idéia do que seria um significado mais fácil dessa palavra para mim.  Levantei meu rosto encontrando o dele, fitei seus olhos. Franzi a sobrancelha curvando-a tentando entender o que ele queria dizer.

— Licença — falou engasgando-se junto às palavras. Héclyro levantou a mão calmamente até meu rosto. Esquive-me a princípio, mas logo consenti com seu toque. Ele passou levemente seus dedos úmidos sobre minhas bochechas acariciando-as. — Assim...

Quando sua mão pairou sobre minha face foi como se aquele toque me despertasse sentidos adoráveis. Meu corpo pedia por mais então deixei com que meu rosto deitasse sobre sua mão fechando meus olhos. Ele continuou com a afeição até quando eu abri meus olhos fitando o cenho dele.

— Me perdoe. — Ele recolheu sua mão de minha face sorrindo, suas bochechas estavam avermelhadas.

Calmamente segurei os dedos deles e entrelacei minha mão na dele posicionando-a em cima de minha cauda. Tentei demonstrar minha afeição a ele. Levantei meu olhar até Héclyro e percebi que ele sorria novamente.

Dessa vez Héclyro não se sentiu embaraçado, ele apenas me observava e mantinha um sorriso de lábios fechados. Tentei manter uma conversa, mesmo que fosse com um diálogo banal qualquer.

— Quantos anos você tem? — Ele pareceu surpreso com a minha pergunta. Héclyro me fitou enquanto seus ombros caíam lentamente. Seus olhos negros brilharam como os de uma criança.

— Eu tenho vinte e cinco. E você? — Ele se inclinou um pouco mais próximo a mim. — Não me diga que tu és imortal e tens mais de mil anos. — Héclyro ironizou.

— Tenho vinte anos. Está louco? — Sem querer deixei um sorriso escapar, mas logo me fechei meus lábios. — Nós não somos imortais, apenas vivemos mais do que vocês, humanos. Bem... Mais. Nosso envelhecimento é lento.

Héclyro olhou para meus lábios após o sorriso e arregalou os olhos surpreso. Em minha mente eu estava pensando em milhões de formas de como não ser tão tola. Era incrível como essas barreiras que eu impus em mim mesma estavam se quebrando.

Ele ficou calado por um breve momento, o tempo fui suficiente para que eu novamente lembrasse-me de meus problemas lá em baixo. Encarava toda a extensão do corpo de Héclyro, cada músculo e fio de cabelo. Ele arqueou seu pescoço mostrando a pequena rosa dos ventos.  A pulsação de seus batimentos cardíacos parecia mais forte.

— Tu estás bonita. — Aquela frase aleatória me pegou de surpresa, não pensei que ele diria isso. — Quero dizer, tu és bonita, mas eu quis... — Ele estava se embaraçando com as palavras totalmente, aquilo era cômico.

— Obrigada, Héclyro — interrompi o que ele dizia evitando um possível constrangimento. Minha vontade foi de sorrir novamente, mas me contive. Eu sei que era linda, mas é engraçado quando isso vinha de outra pessoa.

— Tu tens algum talento especial, fora curar pessoas? — Héclyro passou as mãos em seus cabelos escuros embaraçados umedecidos pelas gotas das águas salgadas que açoitavam as rochas. Seu rosto estava mais vermelho que o comum. — Digo, talento como tocar algum instrumento musical, pintar, esculpir ou algo do tipo.

— Existem sereias e tritões talentosos, algumas sabem esculpir e pintar algas, outras sabem tocar instrumentos musicais, mas eu sou horrível em tudo isso. — falei enfatizando a palavra horrível. — Porém sou ótima cantando, mas isso é algo que todas nós sabemos.  — Referi-me as sereias. — Mas por que a pergunta?

— Bem... É que eu queria realmente saber qual o significado desses sinais desenhados em tua cauda. Pensei que fosse tu que tivesses feito. — Ele já havia feito aquela pergunta anteriormente, mas fui grossa com ele. Mesmo que eu não devesse obrigações de dar essa resposta, eu não iria ser rude novamente sendo que agora ele estava me tratando melhor. Soltei a mão dele da minha e olhei para o horizonte.

— Héclyro, isso é pessoal... — Passei minhas mãos sobre meus cabelos jogando-os para trás deixando minha clavícula e meus seios mais visíveis. Tentei selecionar as palavras adequadas para explicar a ele sobre o festival.

— Me conte. Por favor. — Héclyro se inclinou para frente, pude ouvir as batidas aceleradas do coração dele e sua respiração tensa.

— Tudo bem. — Fitei seu rosto que ansiava por uma continuação das minhas palavras. — A cada quatro anos, ocorre um evento chamado de Festival da Colheita. E lá em baixo é escolhida uma das quatro tribos femininas para sediar esse festejo, e nessa edição a minha tribo foi escolhida. Geralmente ele tem duração de uma semana ou mais dependendo das provas... — Comecei a explicar tudo o sobre o festival. Falei a ele que fui a escolhida e de meus deveres e obrigações.

Héclyro parecia incrédulo a tudo que eu dizia. Ele me perguntou se podia passar a mão nos desenhos em minha cauda e eu consenti. Senti que sua aproximação era mais voraz.

— Como assim terá de ficar com um homem que tu não conheces? — Ele demonstrou uma indignação estranha. Héclyro passou a mão em sua testa esfregando-a.

— É um dever, não preciso necessariamente ter algo a mais com ele. — Olhei o horizonte evitando um contato visual com Héclyro. — Após o tritão selecionado, tenho até três meses para procriar. Os anciões esticaram esse prazo para que a sereia possa conhecer melhor o parceiro.

— Isso não é estranho para ti? — Ele parecia tentar entender e respeitar minha cultura e estilo de vida. — Esse festival não é meio controlador?

— Já vi esse festival acontecer quatro vezes, desde quando eu era criança até minha maturidade, e agora eu fui a escolhida na quinta vez. É comum eu achar isso normal, Héclyro. Nós, sereias, crescemos nos preparando para isso. — A segunda pergunta dele me fez refletir sobre algo que eu já vinha pensando há certo tempo. — É uma forma de controlar a natalidade das sereias e tritões. A religião é fria nesse sentido.

Héclyro trincou o maxilar franzindo as sobrancelhas. Ele olhou de soslaio para as ondas que batiam sobre as rochas. Suas mãos coçavam a nuca e seus dedos assolavam os seus cabelos grosseiramente.

— Que foi? — perguntei.

— Entendo que isso seja de tua... Tradição, mas... não consigo aceitar esse fato.  Tu... tu pertences a outra pessoa. — Héclyro se embaralhou nas palavras.

— Héclyro, não pertenço a ninguém. — Observei o rosto dele e esbocei um sorriso. Héclyro consentiu com minhas palavras me entendendo e deixou com que eu prosseguisse.

— Fico bastante contente em ouvir isso. — Ele sorriu.

Dei continuidade ao dialogo sobre o festival, ele tentava compreender e aceitar nossa cultura totalmente diferente. Elis, o animal de Héclyro dormia sobre a areia com sua respiração extremamente pesada enquanto eu conversava.

Héclyro não me julgava como errada, e nem devia, e sua forma de engolir tudo que eu dizia era engraçada. Sempre as pessoas entravam e saiam na minha vida com propósitos e razões absolutas, mandando fazer isso, desfazer aquilo, mas Héclyro era a liberdade de todos os propósitos e razões que eram impostas a mim. Ele conseguia ser a liberdade que nunca tive, pois ele entrou na minha vida sem propósito, espontaneamente.

Ele conseguia me destravar, seu jeito mais aberto e atencioso me levava a caminhos que nunca havia chegado antes, conseguia me distrair de meus problemas. As olheiras ao redor de seus olhos demonstravam que as madrugadas em claro o afetavam mais do que a mim.

A presença dele me fazia bem, vir para superfície era com uma distração, uma válvula de escape. Eu e Héclyro conversávamos bem mais do que nas últimas vezes. As horas foram se passando rapidamente, como se tudo tivesse acelerado.

 

 

Héclyro bocejava e espreguiçava seus braços enquanto sua capa voava ao vento com a brisa marítima. Sua respiração lenta denunciava o cansaço. Coloquei minha mão em seu ombro, no momento ele se assustou, então falei:

— Você tem que dormir. — A luz daquele negócio que ele havia trazido que iluminava o ambiente estava apagando aos poucos e a maré abaixava lentamente com a chegada da manhã.

— Não... Conte-me mais do seu mundo — disse ele enquanto esfregava seus olhos cansados.

— Não se force a ficar acordado, podemos conversar mais vezes. — Deixei que meus lábios se formassem em uma linha curvada semelhante a um sorriso amarelo.

— Podemos? — Ele arqueou sua sobrancelha.

— Sim, só à noite.

— Por quê?

— Tenho obrigações lá em baixo e tenho que segui-las à risca. — Coloquei uma mecha de meu cabelo para trás da orelha devido a ventania que se formava e meu cabelo estava virando uma esponja.

— Tudo bem então. — Ele sorriu expandindo seus lábios que subiam de orelha a orelha marcando suas bochechas róseas com pequenas covinhas.

Héclyro puxou minha mão se que apoiava a pedra, permiti o toque sem recuar. Ele a beijou sem sentir nenhum tipo de nojo das membranas que havia entre meus dedos ou das minhas longas e afiadas unhas escuras.  Fiquei sem nenhuma reação e nem sabia o que dizer.

— Eu já vou indo, Allysa. Boa noite. — Héclyro levantou-se da rocha e pegou seu objeto que transmitia luz.

— Boa noite — respondi. Desci para as águas que estavam cobrindo meu corpo. Vi ele se distanciando aos poucos enquanto acordava calmamente Elis.

 

 

Quando submergi meu corpo totalmente na água e nadei um pouco para mais perto da tribo encontrei Tamara de braços cruzados me fuzilando com um olhar severo. Meu coração parou naquele instante.

— Um humano? Isso é sério, Allysa? — Tamara continuou sua pose autoritária.

— Quê? — Houve uma aceleração cardíaca em meu seio. Óbvio que Tamara já estaria escutando o som acelerado do meu coração. Meu corpo denunciava minha negligência.

— Não se finja de estúpida, Allysa. — Ela passou as mãos em suas têmporas faciais. — Eu sabia... Sabia que você daria um jeito de estragar tudo. — Ela não gritava, não fazia escândalo, muito menos demonstrava estresse. As emoções totalmente controladas de Tamara me assustavam, sua falta de sentimentos ou seu silêncio ao extremo era pior do que uma agressão física.

— Eu... — De repente as palavras fugiram de minha mente. Deixei meus ombros caírem e reclinei minha face observando a profundeza das águas.

— Vou contar da sua inadvertência para Marissa. Pergunto-me como Amidh te fez escolhida nesse festival. — Tamara virou-se de costas nadando em direção a tribo.

Meu estômago embrulhou, meu corpo ficou estático. Minha mente planejava uma explicação convincente para meus erros. Tamara estava em sua razão, mas não seria hoje que eu iria me ferrar assim.

— Tamara, não faça isso! — Cheguei próxima à ela e toquei seu ombro usando toda minha persuasão que tinha.

— Você sabe que não podemos ter contato com humanos, Allysa! — Suas palavras secas perfuravam meus ouvidos. — Me diga um argumento que me faça não ir te denunciar aos anciões. Prove-me que você tem alguma razão sobre essa situação flagrante.

— Tamara... Sei que estou errada, cometo erros. Esse talvez seja um dos maiores erros que já cometi, mas eu não pedi para ser escolhida. — Coloquei minhas mãos em seus ombros.

— Ninguém pede, Allysa, mas a partir do momento que isso acontece... Você tem que arcar com as consequências e aprender a lidar com sua maturidade. — Tamara me reprovava com seu olhar e elevou seu tom de voz.

— O humano é diferente, ele é... — Comprimi meus lábios e franzi a testa. Imagens dele vieram na minha mente. — Sei das regras, mas, Tamara, por favor... Não me entregue. Irei prosseguir com o festival e cumprir todas as regras.

Tamara ficou calada por alguns segundos, ela parecia colocar minhas palavras em uma balança e tentava estabelecer um equilíbrio. Ela nunca gostou de mim, porém sempre me ajudava de forma indireta. Torcia para que naquela vez ela me ajudasse também.

— Se você parar de se relacionar com o humano e focar apenas no festival eu não irei te denunciar. — Ela me encarou séria.

— Não me proíba de falar com o humano... — respondi sem pensar.

— Allysa, não terei escolha se você quiser seguir esse caminho. Você é muito egoísta. — Ela novamente equilibrava as palavras. — Você sabe o quanto minha mãe ficaria orgulhosa se eu fosse a escolhida? Eu traria honra ao nosso sobrenome! Eu faria desse festival memorável e você... você tem essa chance e está estragando tudo! Bem na minha cara!

— Isso é uma vingança pessoal? Eu já te disse. Por mim, você seria a escolhida. Não há ninguém mais qualificada para isso do que você. — Segurei as mãos de Tamara e ela se espantou. Afeição. — Eu continuarei o festival, tentarei de todas as formas seguir tudo certinho, mas não me denuncie para Marissa e não me proíba de falar com o humano. Você sabe quais são as punições para sereias que mantêm contato com humanos... — Abaixei a cabeça.

Isso não foi o suficiente para que Tamara se convencesse, ela tornou a nadar para tribo soltando minhas mãos. Ela tinha que entender o meu lado. Tamara podia ser fria igual as águas dos oceanos do Norte, mas tinha compaixão.

— Você sempre me protegeu. Não faça isso comigo. — Meu tom de voz foi baixo, mas audível para ela.

Tamara parou de nadar ficando imóvel. O silêncio predominava o mar e aos poucos os raios de sol invadiam as águas. Meus sentimentos estavam me deixando aflita, uma confusão estava se estabelecia em minha cabeça. Sabe quando muitos problemas se acumulam e você não tem com quem compartilhar, pois nunca confia nas pessoas, devido ter medo de errar? Então, era isso que estava acontecendo comigo.  Por mais que eu e Tamara não fossemos amigas como eu era amiga de Damysis, ela sempre me ajudava indiretamente.

— Não confio em Marissa, então guardarei teu segredo. Só lhe peço uma coisa, apenas continue com o festival. Não estrague tudo! — disse Tamara. Milhões de hipóteses vieram a minha mente quando Tamara disse que não confiava em Marissa, mas nenhuma era cabível o suficiente para que eu entendesse o motivo.

— Por que não confia em Marissa? — perguntei a Tamara enquanto franzi a sobrancelha.

— Tenho meus motivos, Allysa — respondeu ríspida. — Apenas faça o que lhe pedi.

— Sim. — Preferi não estender o interrogatório, Tamara já estava sendo bondosas demais comigo.

Nadei ao lado de Tamara, ela ficou em silêncio e evitava me olhar. Fiquei envergonhada, talvez pelo fato de que eu estava completamente errada e Tamara como quase sempre, portava a razão.

— Como você me achou com ele? — perguntei tentando quebrar a morbidez que estávamos.

— Você se esquece muito fácil das coisas. — Ela balançou a cabeça negativamente. — Basicamente nossa anciã não confia em ti e me mandou vigiar você. Já te falei isso.

Contar com o silêncio de Tamara era entender que mesmo não nos falando ou tendo uma relação próxima, eu sabia que ela iria manter uma cumplicidade comigo e tentaria me ajudar. Quando eu era criança, Tamara era mais velha do que eu e sempre me ajudava nos estudos e nas caçadas, mas no futuro nós nos afastamos devido a competitividade que o festival gerava nas sereias.

Quando estávamos passando sobre a Vala do Exílio, uma onda fria percorreu em meu corpo e lembranças ruins vieram à tona no dia que eu vi o monstro, mas minha curiosidade necessitava de respostas, pois o bicho havia dito que não foi um ataque a tribo.

Fiquei parada novamente em frente a fissura no chão e sua tremenda escuridão me assustava. Segurei o pulso de Tamara e ela me olhou como se eu estivesse louca. Talvez aquele ato de loucura fosse a maior idiotice da minha vida, mas eu precisava disso.

— Está louca, Allysa? — Ela fuzilou minha mão que estava em seu pulso com um olhar incrédulo. — Me solte agora!

— Não, você precisa vir comigo. — Apertei mais ainda minha mão no braço dela e comecei a nadar para dentro daquelas águas escuras.

Tamara se contorcia de todas as formas, me chamava de louca e de outras palavras. Novamente as forças das profundezas atuavam sobre nossos corpos, senti aquele peso enorme em minhas costas dificultando minha chegada até o fundo daquela vala. A temperatura subia e estava ficando mais quente que o normal.

Aquelas mesmas luzes dos bichinhos que brilham no escuro começaram a iluminar o local com a nossa chegada. Anêmonas e águas-vivas iluminavam o ambiente. Tamara parecia ter ficado chocada com a beleza daquele lugar, as luzes roxas e azuladas predominavam nossas visões.

— Vamos sair daqui logo — sua voz fraquejava. Agora era Tamara que apertava meu pulso, ansiosa. — Você sabe o que vive aqui.

— Calma, Tamara. — Olhei ao redor para ver se achava o monstro. — Cadê você? Apareça! — Minha voz saiu aguda e estridente.

Um som de algo pesado levantando das areias era audível para mim. Tamara encarava todo o local, ela estava muito aflita e era notável como ela se sentia estressada quando não estava no controle da situação.  O grande Monstro da Vala do Exílio ficou de frente para nós e abaixou a cabeça até meu encontro.

— Sabia que você iria voltar — falou o monstro com sua voz áspera. O calor emitido da sua face era agonizante. Meu estômago estava embrulhado, mas eu não queria demonstrar fraqueza. — E ainda trouxe uma amiga.

— Sim, mas eu vim aqui para te ajudar se você me ajudar. — Mantive minha voz firme, queria ter o controle da situação mesmo sendo do tamanho de um camarão comparado a uma baleia perto do monstro. Tamara estava imóvel, seus olhos arregalados mostravam um medo que nunca vi no rosto dela.

— Já imagino do que se trata, garota. — Ele nadou ao redor de nós duas nos cercando. Uma poeira e alguns seres que brilhavam no escuro flutuaram quando ele deitou-se. O seu peso parecia estar pesado demais para a própria água.

— Me conte sobre o dia do ataque na tribo que eu curarei tuas brânquias. — Tamara agora me olhava abismada com o que acontecia, minhas brânquias moviam-se rapidamente iguais as dela. Eu estava nervosa, e o pior, eu estava com medo do que iria saber.

— Primeiro você, garota. Cure-me que te contarei. — Sua voz feroz furava minha audição sensível.

— Não. Primeiro você — falei ríspida mantendo minha pose. Não era tola de curá-lo e depois ele não me contar. Tamara estava encolhida atrás de mim. Por incrível que pareça, eu também estava assustada, porém não queria transparecer isso.

— Sua falsa confiança só demonstra quanto medo tu esconde por dentro. Porém, irei te contar caso isso te faça se sentir melhor. — Sua boca rígida cheia de dentes movia-se lenta com as palavras. Sua calma era amedrontadora.

— Fale de uma vez. — Aquelas palavras saíram de minha boca sem ter um filtro para me podar. Sabia que meu temperamento explosivo iria me matar algum dia.

— De tempos em tempos minha espécie faz migrações de oceanos para oceanos. Porém eu sou o único sobrevivente, pois meus irmãos entraram em extinção e eu porto dois ovos que deveriam ser chocados. — Sua voz áspera ocupava todo o meu corpo e eu o escutava atenciosamente. — Então eu deveria ter chegado aos mares do Sul para chocar esses ovos, pois a temperatura das águas de lá favorecem o nascimento dos meus filhos.

Tudo o que ele falava passava em minha cabeça, tentava assimilar um fato com outro, mas eu não tinha sucesso, talvez porque Tamara apertava tanto o meu braço que começou a doer.

— Enfim, em uma dessas viagens a águas do Sul eu queria pegar um atalho, então passei nos arredores de tua tribo. Lembro-me de um barulho de conchas que foi ecoado, então várias sereias começaram a me atacar sem motivos, pois eu só queria continuar meu caminho e chocar meus ovos. — Ele soltou um rugido que se assemelhava, imaginava eu, a desgosto. — Aquele ataque que vocês fizeram, quebrou um dos meus ovos que eu carregava na barriga. Depois várias de vocês que pareciam controlar água me aprisionaram dentro dessa vala e selaram a saída. Passou-se dezessete anos e conto todos os dias que estou aprisionado aqui me alimentado desses bichos imundos que ficam iluminando essas pareces cheias de rochas que me cortam.

Em minha mente eu comecei a notar que o errado da história não era ele, mas sim as sereias que distorciam as histórias sem saber do que realmente aconteceu.

— E tudo isso aconteceu porque eu queria chegar mais cedo nas águas do sul para chocar meus filhotes. — Ele novamente fez aquele mesmo rugido de desgosto. — A raça de vocês não protege os mares, elas poluem!

— Peço desculpa pela minha tribo — falei. Vi Tamara aterrorizada com tudo que acontecia.

— Agora é sua parte do trato, cure minhas brânquias. Cadê as ervas mágicas para fazer as feridas cicatrizarem? — Ele ergueu seu longo pescoço e seu tórax deixando elas bem expostas.

— Não preciso usar da minha magia, eu tenho o dom de curar pequenos e médios ferimentos.

Tamara soltou meu braço e deixou que eu fosse. Aproximei-me do monstro com uma dificuldade absurda devido ao calor que ele emitia. Ele me observava curioso com o que eu iria fazer.

Ao colocar minhas mãos sobre suas brânquias, o calor da pele dele queimava a palma de meus dedos e minhas membranas. Tentei tirar o foco da dor e me concentrei em liberar todo o meu poder naquele local. 

Apaguei qualquer pensamento de minha mente, fechei meus olhos e absorvi toda a concentração de meu dom que percorria minhas veias até a palma de minhas mãos, meu corpo estagnado deixava todo aquele poder fluir saindo de meu corpo ligando ao outro.

O que saía de minha mão era uma pequena quantidade de sangue misturada ao poder e ao abrir meus olhos, toda a extensão das brânquias do monstro estava lentamente se curando. Meu sangue concentrado ao poder se misturava nas veias do monstro.

Eu conseguia sentir aos poucos as feridas dele se cicatrizando e a dor de se corpo se dessedentar. Nunca usava o meu poder em mim mesma, pois para que ele pudesse sair do meu corpo e ter ação fora de minhas veias, eu precisava deixar meu sangue ir junto e isso me deixava estagnada. Porém desta vez eu usei para curar as os machucados que se formavam em minhas mãos. 

Ao terminar de curá-lo, meu corpo estava fraco, pedia por descanso e aos poucos fui fundando até a areia. Tamara agarrou minha cintura e puxou-me. Ainda estava consciente, porém cansada. Apoiando-me nos ombros de Tamara eu olhei para o monstro e perguntei:

— Por que teu corpo é tão quente? — falei calmamente, quase que em sussurro.

— Minha defesa é o calor ardente que consigo soltar pela boca.  É uma auto defesa para manter-me aquecido. — Ele balançou seu pescoço e moveu sua cabeça em minha direção sentindo o efeito da cura.

Olhei para o monstro e toda sua extensão corporal, toda vez que eu olhava para ele, minha mente se remetia ao meu passado. Talvez ele soubesse quem era minha mãe, mas ao mesmo tempo era bem fácil de confundi-la com qualquer outra sereia da tribo, já que nossas características eram bastante similares às demais.

— Por acaso você viu alguma sereia parecida comigo naquele dia? — perguntei desacreditando em qualquer possibilidade de reconhecimento da minha mãe.

— Além de todas? — Ele ironizou minha pergunta. — Especifique mais, garota.

— Alguém que fosse similar a mim. Alguém com meu corpo parecido, rosto ou qualquer coisa que lembre a mim.

— Acho que sim... Talvez um cheiro que meus sensores captaram semelhante ao teu. Você tem um odor muito parecido com o de uma se... — Tamara cortou o monstro falando nervosa enquanto olhava para os lados.

— Allysa, vamos! Você precisa ser arrumada a tempo da cerimônia. — Tamara apertou meu braço tentando nadar para superfície.

— O que você ia dizer sobre o cheiro? — perguntei ao monstro enquanto estava agoniada com Tamara.

— Allysa, vamos! — sussurrou Tamara para mim.

— Espera, Tamara! — Estava começando a me estressar com Tamara.

— Você prometeu que iria cumprir com o festival, e olha aonde viemos parar! — Ela conseguiu me atingir certeiramente com as palavras perfeitas. Um peso veio em minha consciência.

— Tudo bem — falei para ela enquanto nadávamos juntas. — Voltarei aqui novamente! — falei para a criatura gigantesca.

O monstro nada respondeu e deixou todo o seu corpo cair sobre a terra deitando-se. Eu e Tamara avançávamos para a superfície, ela me ajuda a nadar com mais velocidade.

Quando saímos da vala, fiquei parada perto de algumas pedras recuperando-me. Tamara estava nervosa comigo e me encarava incrédula com tudo que aconteceu.

— Allysa, nunca mais faça isso comigo. — Ela me soltou fazendo com que agora eu nadasse sozinha. — Saiba que você está na minha mão.

— Vai me chantagear, agora? — perguntei semicerrando os olhos.

— Não, mas se você fizer outra loucura dessas, eu irei usar esse nosso segredo ao meu bel prazer. — Ela me fuzilou com um olhar ameaçador. — Entendidas?

— Claro — respondi.

Prosseguimos caladas. Tamara ainda estava desacreditada, mas as vezes entrava em assuntos sobre a vala. Sabia que minha ação foi errada, mas ela iria me entender algum dia.

 

 

Tamara já estava ficando mais calma e me encarava incrédula com tudo que aconteceu. Ao chegar no Santuário de Encubação, encontramos Lyria esperando por nós. Ela parecia estar impaciente com a demora, mas seu sorriso de sempre tentava disfarçar isso.

— Teremos de fazer tudo às pressas agora, Tamara! — Lyria falou com um tom de voz elevado e aquilo me assustou, pois ela sempre fora sorridente e calma e agora estava nervosa.

— Foi um erro meu — disparei contra Lyria. — Havia perdido um colar de ouro branco e Tamara foi me ajudar a caçar. Peço desculpas, Lyria.

— Tudo bem, é que o templo dos deuses já está sendo ocupado pelas sereias e não vai demorar muito para que as conchas soem chamando você para estar lá — ela falou disfarçando sua raiva com um sorriso amarelo.

Tamara me observou e ficou calada. Deixei que as duas me arrumassem para o evento. Lyria passava um pano com brilho de madrepérola em minha cauda.  Ambas limparam todo o meu corpo e colocaram jóias.

Enquanto elas me arrumavam no segundo cômodo do santuário, em uma das paredes de mármore eu vi três linhas azuladas brilhantes cortando a parede e, de repente, essas linhas abriram uma porta.

O interior daquele espaço que foi aberto mostrava algo semelhante à uma armadura vestida em um corpo de vidro, então eu lembrei que aquela era a roupa de encerramento do festival da nossa tribo, pois já tinha visto ela na sereia escolhida de uma das edições anteriores que aconteceram aqui na tribo quando eu tinha oito anos. Porém os trajes ficaram melhores em mim do que nela.

Cada tribo tinha sua roupa de finalização própria. A nossa era uma armadura negra que cobria apenas os seios e parte do tórax e em seu caimento havia muitos tecidos negros que flutuavam na água. Na cabeça do corpo de vidro havia uma coroa de gelo com cristais dos vulcões do sul, ela era o símbolo da nossa tribo.

Coroa de gelo era o brasão da tribo e a cor negra demonstrava o início de um ciclo, e ambos juntos representavam a maior potência dos mares: Neferice. Finalmente eu estava pronta para a cerimônia de finalização do festival. Aquela não parecia ser eu, já era linda naturalmente e depois de arrumada eu ficava extremamente maravilhosa. Meus olhos estavam esfumados com tons vermelhos escarlate e varias pedras brilhantes saíam de meu côncavo até minhas têmporas. Meu cabelo prata escuro estava trançado todo para trás. Meus lábios estavam com uma cor extremamente escura, quase um preto avermelhado. Todas essas cores ressaltavam o cinza de meus olhos.

Tamara e Lyria aproveitaram o momento e fizeram as típicas pinturas faciais e corporais que representavam o fim do Festival da Colheita. Todas as sereias também teriam de estar com essas pinturas, é uma regra, desde pequenas aprendemos a fazê-las. Cada tribo tem sua respectiva cor, a minha tribo, Neferice, é a cor preta. Tribo de Divitias é cor branca, tribo de Fertilitais é a cor salmão e a tribo Ferox é a cor vermelha.

 

 

Finalmente eu estava pronta, saímos do Santuário de Encubação e ficamos de frente ao Templo dos Deuses. Ele era um local fechado enorme com bastantes pilastras de mármores e flores ao redor. Várias janelas vazadas arredondadas e escultura de deuses por fora nos jardins e por dentro. Árvores aquáticas soltavam flores rosadas na água enquanto cardumes de peixes passavam por nós.

Fiquei de frente a porta do templo.  Antes que eu entrasse, eu olhei para Tamara que sorriu para mim com os lábios fechados. Talvez aquele sorriso fosse a motivação para que eu pudesse entrar de vez naquele lugar depois de tudo que eu passei e o que eu fiz ela passar. Aproximei da porta e o barulho de uma concha soou e tambores com sons tribais espalhavam seu som pelo ambiente e todos no interior olharam para mim.


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Notas finais do capítulo

Então????? Gostou? Comente aqui para eu ficar sabendo.

Cap: betado por Reet
Se verem erros, me avisem por favor.
Obrigado a todos que abriram o capítulo para ler.

Caso tenha gostado comente aqui em baixo.
Obrigado por estar acompanhando a história. Continue nadando com a nossa tribo!

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