Águas Obscuras escrita por Alph


Capítulo 8
Sangue Fresco


Notas iniciais do capítulo

Desculpa a demora para atualizar, tive alguns problemas pessoais.
O capítulo é grande como vocês podem ver. Preferi fazer eles desse tamanho, pois ficar dividindo eles em várias partes fica muito picotada a história.

Espero muito que gostem desse capítulo. Fiz tudo com muito amor e me dediquei ao máximo para que todas as cenas sejam reais o suficiente para transmitir as emoções que eu pensei.
Comente aí em baixo, não custa nada, e ainda ajuda a fic que você está lendo a ter uma visibilidade maior. Feedbacks legais fazem escritores felizes.
Tentarei postar o próximo capitulo o mais rápido possível.
Tem um flash back na história, porém não avisei, pois acho ridículo isso de " início do flash... fim do flash.. "

Enjoy!



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Para mim foi um alívio poder entrar novamente na água. Eu queria ter dito tudo de uma vez para ele que sua mãe possivelmente pudesse ser uma sereia. Queria não ter mentido quando falei que o nome "Talísya Fahíerys" estava riscado na lista em que mostrei a ele. Porém tive receio de que se eu contasse, causaria problemas em sua vida.  De alguma forma cada minuto que eu passava com Héclyro me fazia sentir repulsa de mim mesma, pois sentia que estava traindo minhas raízes. 

O seu olhar conseguia me desarmar de todas as formas, e meu estômago sempre se revirava quando lembranças de Héclyro vinham à minha cabeça. Era incrível a capacidade que ele tinha de me deixar irritada e aérea. O jeito singelo e educado dele me deixava tensa. Era para eu me sentir nervosa, ou pior, com vontade de matá-lo, mas eu simplesmente não conseguia nem levantar a mão para ele.

Era tão agradável a forma com que a água gélida tomava conta de todo o meu corpo quando eu mergulhava no mar. Os tons de azul escuro inundavam minha visão. Apertei aqueles pergaminhos em minha mão e nadei rapidamente para voltar à tribo antes que o mar se iluminasse por completo com a luz da aurora.

 

 

Ao passar sobre a Vala do Exílio novamente escutei rugidos fortes, como se estivessem mais próximos a mim. Os sons que saíam daquele ambiente eram graves e fortes. Minha curiosidade novamente me atiçava avassaladoramente, era um chamado para mim. O proibido sempre me chamava mais atenção.

Deixei que minha cauda se movimentasse enquanto eu observava aquele buraco escuro enorme abaixo de mim. Pensar duas vezes nunca foi uma das minhas atitudes. Afastei algumas mechas do meu cabelo que fluía sobre minha face e com todas as forças de minhas barbatanas eu desci sobre aquela escura imensidão. Bolhas e cardumes de peixes subiam enquanto eu descia para a o interior da fissura gigantesca.

A cada centímetro que meu corpo adentrava naquela escuridão, eu conseguia sentir o calor, um calor ardente, mas suportável. Parecia que cada vez que eu descia, mais longe era o fim daquela vala, porém depois de um tempo nadando, eu atingi o final daquela fenda, e meus olhos foram tampados por um breu assustador.

Depois de tempo parada no meio daquele ambiente estranho e quente, eu conseguia ver alguns pequenos feixes de luz, um brilho azul. E aos poucos aquela luminosidade se espalhava, mas não era um ponto só, eram vários agora.

Aqueles pontos brilhosos haviam aumentado e agora parecia que estavam me cercando. Tentei desviar, mas então as luzes deles aumentaram e todo o local foi iluminado. Com o intenso clarão vi que aqueles pontos de luz eram pequenas flores marinhas da árvore de Zérys, as mesmas que eu havia visto quando encontrei os pergaminhos.

A vala começou a ganhar uma iluminação azulada com roxo, e vi algumas criaturas se arrastando pela vegetação marinha que também brilhava no escuro. Algumas anêmonas começavam a surgir nas fendas das paredes, uns bichos com formas de cones exalavam uma luz amarelada e algumas águas-vivas transmitiam um brilho azulado enquanto flutuavam.

A Vala do Exílio não era tão amedrontadora como as sereias mais velhas falavam. Ela era diferente, mas não feia, o lugar era bastante bonito e cheio de coisas que eu nunca havia visto antes. Porém eu sentia uma forte pressão sobre meu corpo naquela profundidade.

Enquanto eu olhava aqueles seres estranhos, ouvi um barulho diferente e a água ao redor havia esquentado bastante. Virei meu rosto de soslaio e me deparei com dois olhos enormes que pareciam refletir a luz do ambiente como um espelho no meio de uma brecha escura afastada da iluminação de onde eu estava.

Afastei-me bruscamente contra as paredes rochosas da fenda espantando alguns bichos que estavam rastejando nela. A face dona daquele olhar espelhado apareceu. Quando a luz dos seres ia contra a face daquele ser, ele mostrou que seus olhos eram completamente negros e não espelhados.

A face daquele bicho parecia ter várias escamas se acumulando formando uma dura pele. As luzes roxas e azuis refletiam na sua pele e nos seus grandes dentes. Sua cabeça era quatro vezes maior que eu. Aquele monstro veio se aproximando e minha única opção foi nadar para cima, mas agilmente ele ficou sobre mim mostrando toda a extensão de seu corpo.

Ele parecia uma serpente gigante, mas possuía patas dianteiras. Tinha barbatanas que mais pareciam asas. Aquele ser era maior que alguns templos da tribo. Ao mesmo tempo em que ele me causava medo, também conseguia me causar surpresa com todo seu resplendor.

O monstro parecia pesado demais até para a própria água. Claramente se ele quisesse ter me comido viva, já teria feito, porém eu já estava criando consciência de que talvez eu não fosse sair com vida daquela vala.

Como não tive escapatória, nadei para baixo debatendo-me contra o solo. Em um impulso feroz, o monstro desceu no chão fazendo a areia subir gradativamente na água. Todo o peso daquele ser era estranho e majestoso. Com suas barbatanas ele agarrou as paredes, ficando em uma posição semelhante às das sereias de ataque: peito estufado e a cabeça de frente à presa.

— O que tu fazes por aqui, garota? — Para meu espanto, que não foi pouco, ele falava. Sua voz era muito grave, ele conseguia roubar minha atenção total com toda sua força que demonstrava.

Não consegui respondê-lo devido ao medo que acumulava em todo o meu corpo, fiquei imóvel perante toda aquela força e agilidade daquele monstro. Porém ele repetiu a pergunta grosseiramente.

— Não sei. — Tentei levantar-me calmamente, mas parecia que cada músculo de meu corpo estava paralisado. Minhas brânquias estavam com movimentos acelerados e meu coração batia mais rápido.

— Garota desprovida de inteligência — o monstro falou enquanto ferozmente mudou sua posição de ataque indo rapidamente para a escuridão, novamente batendo suas longas barbatanas contra a água. Não consegui acompanhar sua mudança de movimento e minha única ação foi virar o rosto para tentar localizá-lo.

Permaneci calada, então me levantei aos poucos e continuei a procurar ele pela vasta escuridão da vala que era iluminada apenas com os animais que viviam ali. Eu queria sair daquele buraco, porém depois que eu descobri que aquele monstro falava, minha curiosidade foi nas alturas, principalmente por ter me lembrado que ele havia matado minha mãe.

— Não irei lhe matar, garota tola — disse o monstro no escuro enquanto sua voz grave ecoava pela minha audição sensível. — Deve ter entrado nesse local inóspito por algum motivo. Diga-me qual foi.

— Eu... Eu escutei alguns barulhos vindos daqui. — Tentei não parecer fraca perante a presença do monstro, mas minha voz falhava. Deixei meus ombros caírem e minha visão buscava pela face daquele grande ser.

— Então resolveu descer? — O monstro completou minhas palavras com uma pergunta. — Faz dezessete anos que eu não vejo nenhuma sereia. — Sua voz áspera ecoou pela vala.

— Sim. Eram seus os rugidos? — perguntei mesmo que a resposta fosse óbvia.

— Claro — disse o monstro.

— E por que estava rugindo? Era para mim? — Minha voz parecia falhar gradativamente ao terminar a frase.

O monstro rapidamente saltou parando na minha frente, suas barbatanas seguravam seu corpo nas paredes da vala e seu peitoral estava ereto mostrando todo seu resplendor. Minhas brânquias moviam-se tensamente e eu estava para fugir de qualquer forma dali.

— Rugindo para ti? Óbvio que não, garota. — Ele aproximou sua face de mim e claro que eu havia recuado.

— Então qual o motivo? — Tentei não demonstrar fraqueza enquanto movimentava minha cauda afastando-me do monstro.

Ele levantou o pescoço deixando seu peitoral novamente à mostra e rugiu, meus ombros estavam tensos e minhas barbatanas nos braços que desciam como véus pela água estavam ouriçadas. O monstro deitou na areia deixando toda a extensão de seu corpo negro estirado para mim. E quando seu corpo caiu no solo, seu peso estrondou o ambiente. Os bichos que brilhavam no escuro flutuaram junto à poeira da terra. Olhei para todas aquelas escamas até encontrar perto de seu longo pescoço suas brânquias que agora, com uma iluminação melhor, eu conseguia ver que estavam feridas com muitos cortes.

— Consegue ver agora? — Sua voz saía feroz.

— Esse é o motivo de tua dor? — Apontei com meu dedo indicador para os ferimentos. Ele levantou o pescoço encarando-me com seus olhos totalmente negros e selvagens, sua presença emitia um calor absurdo em todo o local.

Ele apenas rugiu como se confirmasse minha pergunta. O monstro não parecia tão assustador como as sereias falavam de perto, ele conseguia ser bem pior e aterrorizante, mas explosões de sentimentos negativos veio à tona só de pensar no fato dele ter matado minha mãe, aquilo me consumia por dentro desde toda minha existência.

— Pois bem, espero que essas suas feridas infeccionem — falei sem pensar e tentei nadar com todas minhas forças para fora daquela vala. Meu rosto ardia e minhas forças estavam a todo fervor. Eu queria me vingar, queria o fazer pagar.

O monstro conseguiu me acompanhar, parou na minha frente abrindo seu grande peitoral e rugiu para mim. Os sons ásperos de sua voz eram acompanhados de um calor que se eu estivesse mais perto de sua boca era capaz de me despelar totalmente.

Cerrei os punhos e senti que deveria sair dali urgentemente, mesmo que ele me atacasse eu não iria permanecer dentro daquele buraco de forma alguma.

Com toda a minha agilidade tentei fugir daquele local. Deixei que meu lado selvagem fluísse em minhas veias e rugi um som extremamente agudo. Nadei por baixo da cauda do monstro desviando-me de seu corpo. Seu rabo tentou me chicotear, mas eu consegui ser mais rápida. Logo em seguida, com toda minha velocidade nas minhas barbatanas, já eram visíveis alguns feixes de luz.

Quando eu já estava quase saindo eu escutei um barulho ensurdecedor, porém não era um rugido, mas sim algo comparado a um impacto. Olhei para baixo e vi o monstro encarando-me e me perguntei o motivo dele não poder continuar. Ele novamente tentou me seguir, mas algo barrava seu corpo de atravessar a vala.

O Monstro da Vala do Exílio tentou novamente me acompanhar, mas foi impedido. Quando ele impactou contra a barreira, uma onda azulada que mais parecia com cristais diminuía a força da batida. Então me lembrei que a vala foi selada com magia e impedia que o monstro saísse da fenda.

Ele rugiu, dessa vez muito alto. Olhei para baixo e o vi com sua boca aberta exibindo seus dentes gigantescos. Então ele me encarou.

— Volte aqui, garota tola! — seu rugido foi avassalador.

— Não. Você atacou minha tribo e matou minha mãe. — Minha voz fraquejou ao lembrar-me dessa terrível lembrança fazendo alguns devaneios obscuros voltarem a minha cabeça.

 

 

O dia do ataque do monstro foi horrível. Eu estava com as outras sereias que tinham menos de cinquenta anos nos templos de estudos estudando sobre o nosso corpo. As torres de vigilância que ficavam localizadas nas quatro regiões dos territórios da nossa tribo começaram a soar o barulho das conchas.

Os búzios foram soados três vezes e isso era raro de acontecer, mas significava ataque. A nossa instrutora que dava aula no horário do ocorrido mandou nós irmos para os portais de segurança. Eles eram valas dentro da terra no meio da Floresta das Algas.

Quando a instrutora mandou a gente ir para lá, as sereias mais velhas que estavam com a gente nos levaram para o meio da floresta. Antes de chegarmos às valas, vi um batalhão de sereias nadando rumo ao horizonte com algumas lanças.

Com todo aquele alvoroço de algumas sereias mais velhas gritando com seus barulhos agudos e as poucas garotas mais novas não querendo ficar longe de suas mães. Tudo parecia ficar lento demais e eu fiquei imóvel sem pensar. Meu estômago estava embrulhado, e eu não conseguia mover um braço. Tamara, que era mais velha do que eu, me segurou e tocou minha face tentando manter um contato visual, mas não conseguiu, pois eu estava olhando para baixo.

Sempre fui uma criança muito desobediente, e Tamara estava se estressando e ia me levantar no colo, mas foi impedida por alguém, e esse alguém era minha mãe. Ela me pegou pelos braços e olhou nos meus olhos. Fitei as expressões jovens de minha mãe, seus olhos de tons cinza iguais aos meus estavam semicerrados para mim, então encarei seus lábios e eles formavam um sorriso. Minha mãe era uma mulher muito linda e seu cabelo era cinza como o meu.

Coloquei uma de minhas mãos em seus lábios e apertei. Ela apenas posicionou sua face ao lado de meus dedos os acariciando com a bochecha e depois beijando minhas pequeninas mãos. Seu jeito amoroso foi o que mais marcou na minha vida de uma forma indescritível, por mais que meu período de convivência com ela fora pouco.

Ela me abraçou, um abraço muito forte. Senti como se fosse um aperto de despedida e aquilo partiu meu pequeno coração. Nós éramos muito apegadas, e a ver partindo daquela forma era horrível. Retribuí o abraço forte e alguns ruídos agudos baixinhos fluíam de minha voz, franzi minha testa e senti um ardor em meu rosto. Ela beijou minha bochecha e olhou nos meus olhos.

— Tudo vai ficar bem, meu amor. Não se esqueça, eu te amo — ela falou com sua voz suave e sorridente demonstrando que tudo iria dar certo. Seu olhar me fazia sentir como se ela fosse única para mim e queria passar a todo custo que nada de ruim iria acontecer comigo. Apenas confirmei e posicionei minha cabeça na curva de seu pescoço fechando os olhos e sentindo o corpo dela me abraçando. Esse curto momento que tivemos foi interrompido quando uma sereia do batalhão chegou.

— Vamos, Bélyra — falou uma sereia que estava com uma lança em mãos. Ela era muito bonita, tinha longos cabelos loiros e olhos azuis, seus traços condiziam com a nossa região. Ao seu lado estava Marissa junto ao batalhão de sereias que estavam esperando minha mãe retornar.

— Já estou indo, Vinérya. — Minha mãe me soltou de seus braços e me entregou para Tamara. Então eu apenas a vi partindo para o horizonte enquanto Tamara me levava para a floresta. Meu mundo havia parado e só conseguia escutar grunhidos de sereias pelo ambiente.

As algas eram tão grandes que ficava difícil de ver o brilho dos raios solares na água. Nós tínhamos parado em uma clareira, e foi a Tamara que estava ao meu lado. Naquela época ela não me destratava, mas não chegávamos a ser amigas. As garotas mais velhas auxiliaram as mais novas, no caso eu que tinha três anos, e outra garota a entrar nas valas. 

O escuro predominava naqueles buracos onde as sereias com menos de cinquenta anos estavam presas. Muitos barulhos estrondeantes de templos quebrando e rugido de um monstro vinha da vila para nossos ouvidos sensíveis. As sereias que estavam nas valas sendo protegidas dos ataques grunhiam um som agudo, selvagem e triste.

Era de partir o coração saber que as sereias mais velhas junto a minha mãe poderiam perder a vida lutando contra algo desconhecido que estava destruindo nossas casas. Tamara e Damysis estavam ao meu lado abraçando suas próprias caudas com os braços. Suas brânquias no pescoço estavam subindo de descendo rapidamente a cada barulho.

Quando todos os sons que vinham da vila cessaram após um dia, sereias que estavam confrontando o perigo chegavam até as valas e davam alguns toques nas portas sinalizando que já podíamos sair.

As sereias mais novas estavam se misturando com as outras. Muitas estavam feridas, mas a maioria se abraçava e estavam felizes por reencontrar suas mães e amigas. Procurei em todo lugar minha mãe e não a vi. A tribo estava quase toda destruída, muitos pedaços de mármores e pilastras estavam derrubadas no chão. Algumas das paredes e estátuas pareciam que estavam derretidas.

No meio da multidão eu estava perdida olhando para o todas as outras garotas, comecei a grunhir baixinho e sentir meu estômago embrulhando-se. Marissa se aproximou e me levantou no colo acariciando meus cabelos com sua mão enquanto as palavras de minha mãe estavam ecoando na minha cabeça. Tudo vai ficar bem meu amor. Não se esqueça, eu te amo. 

 

 

Queria me lembrar mais de minha mãe, porém minha memória não era tão ávida aos três anos e hoje com os meus vinte eu queria ter ficado mais perto dela. Ela não sabe o tanto que eu sinto falta do seu amor, sua presença, seu carinho e abraços.

— Não fui eu que ataquei sua tribo — o monstro falou friamente quebrando meus devaneios de dezessete anos atrás. — Foram vocês que me atacaram.

Não o respondi, apenas continuei a sair da vala. Tentei evitar que minha curiosidade novamente tomasse conta de mim, então foquei apenas em sair daquele lugar. Eu precisava tomar conta das minhas outras responsabilidades, e ignorar o perigo poderia ser a forma mais fácil de evitar mais um problema.

 

 

O dia na tribo passou calmamente, mas minha cabeça estava parecendo um mar agitado e turbulento. Às vezes minha cabeça ficava presa em três problemas diferentes. Eu conseguia pensar em Héclyro, o monstro e esse maldito festival. Tentava entender o motivo de muitas sereias quererem participar dele, pois você é utilizada apenas como um objeto de reprodução e é obrigada a ficar sorrindo o tempo todo, e isso não me fazia alegre de nenhuma forma.

O que o monstro tinha dito para mim ficou perturbando meu consciente por horas tediosas. Como assim não foi ele que atacou nossa tribo? Isso era incabível. Minha raiva sempre me fazia querer descer lá naquela vala novamente e ter uma conversa esclarecedora, porém nas circunstâncias que eu estava vivendo minha cabeça estava totalmente embaraçada.

Héclyro. Esse era o nome que ecoava no meu subconsciente por trás de tudo. Lembrar de seus traços faciais, das suas batidas do coração e sua respiração era de certa forma reconfortante, por mais que às vezes eu sentisse indignação dele por me lembrar dos guardas me capturando.

O tempo passava vagarosamente e parecia que não iria haver nenhuma prova de desempate e eu iria ter que escolher a dedo o ganhador, mas isso não aconteceu. Eu estava sentada na minha cama no Santuário de Encubação quando Tamara e Lyria chegaram e logo atrás vinha Damysis.

— Então, vai ter prova ou terei de escolher o ganhador? — perguntei olhando para Tamara. Damysis deitou-se ao meu lado na cama sorrindo como de costume.

— Vai sim — falou Lyria que estava com os braços para trás com os seios para frente impondo respeito. Seus cabelos estavam trançados com algumas pedras brilhantes. — Fale a ela, Tamara.

— É... Também achamos que você iria escolher a dedo, mas Marissa foi avisada por duas sereias mais velhas amigas dela que dois navios pequenos estavam se aproximando das rotas do Sul. — Tamara estava na mesma posição que Lyria. Seus cabelos esbranquiçados estavam soltos e cheio de pequenas flores que desciam em toda sua extensão.

— E? — indaguei. Sabia que aqueles navios não estavam na rota para o reino onde Héclyro morava e isso me deixava aliviada psicologicamente de alguma forma.

— Algumas sereias foram cantar para os marinheiros dessas embarcações para que sejam atraídos para um círculo de rochedos antigos. Então Marissa disse que cada um dos dois finalistas montarão dois time com cinco rapazes em cada e os tritões ganhadores serão os líderes deles...

— Então cada finalista liderará um time de cinco tritões para derrubar os navios pequenos. E o time que derrubar a sua embarcação primeiro será o vencedor e consequentemente o líder vai ser coroado como o ganhador do festival — Lyria completou o que Tamara falou.

— Isso vai ser interessante — Damysis disse virando seu corpo para mim apoiando sua mão no queixo.

— Isso é apelativo, não precisamos comer carne humana mais do que duas vezes ao mês — falei levantando-me da cama. — Marissa não pode destruir duas embarcações assim.

— Não sou eu que faço as regras do festival, Allysa. — Tamara se direcionou até a porta do segundo cômodo do santuário. — Agora vamos, teremos que lhe arrumar.

 

 

Tamara, após me produzir, guiou-me junto as Lyria e Damysis para a praça da tribo onde todas as sereias nativas e visitantes estavam junto aos tritões. Tamara junto a Lyria fizeram uma maquiagem pesada em minha face com tons de escuros na minha pálpebra superior e na minha linha da água elas passaram uma tinta avermelhada destacando a cor cinza de meus olhos. Elas colocaram um pesado colar de ouro branco e vários tecidos de cor azul cobalto que adornavam minhas curvas e caíam sobre meu corpo, depois puseram uma tiara cheia de correntes que descia ao longo de meu cabelo trançado.

Todos estavam de frente a um pequeno palanque feito de gelo com detalhes em ouro onde tinha uma enorme estátua de Amidh.  Marissa estava à frente dela junto aos outros anciões, ela estava linda com uma maquiagem azul em seus olhos e joias enfeitando-a.

Novamente eu estava atrasada, as minhas damas de companhia e Damysis se misturaram com a multidão enquanto eu estava seguindo meu caminho até Marissa, que sorria para mim.  Todos abriram espaço enquanto eu estava passando, os tecidos que estavam em meu corpo flutuavam sobre a água como ondas enormes e muitas sereias o tocavam e beijavam-no.

Eu estava me sentindo estranha. Aquilo de fato não era para mim. Era difícil de acreditar que tudo estava acontecendo comigo. Ao chegar em frente a Marissa, sorrindo, ela estendeu a mão para mim para que eu ficasse ao seu lado, então consenti. Olhei para baixo e vi toda a multidão, na frente estavam as sereias mais velhas da nossa tribo e Tamara, que sempre foram bastante próximas de Marissa, e mais no fundo o resto.

— Boa tarde a todos. — Marissa estampava um enorme sorriso e gesticulava bastante com as mãos. — Hoje é a nossa prova de desempate. Como todos sabem, provas de desempates não são comuns já que os ganhadores sempre ganham na segunda prova. — Ela olhou para mim. Marissa agora posicionou seus os braços para trás com as mãos cruzadas e seus seios estavam para frente. — Eu e nossos ilustres anciões estávamos a manhã toda pensando em uma prova rápida e fácil para nossos tritões.

Marissa explicou como as sereias acharam as embarcações enquanto todos a observavam atenciosamente a cada palavra que ela falava. Ver tantas sereias e tritões na minha frente era de certa forma constrangedor, mas eu não podia ficar olhando para baixo e demonstrar fraqueza. Das últimas quatro vezes que presenciei o Festival da Colheita de perto, eu sempre ficava na multidão ou nas arquibancadas das outras tribos, então era bastante difícil encarar todo aquele povo me olhando.

— Então o time que terminar primeiro vencerá, e o líder dele terá o prazer de ter a mão da nossa escolhida — Marissa continuou a falar e segurou minha mão levantando-a, interrompendo meus pensamentos, e as sereias urravam e balançavam os estandartes de suas tribos. — Peço que os líderes e seus times se apresentem!

Dois batalhões de cinco tritões começaram a surgir atravessando a multidão na praça. Conforme eles iam se aproximando do palanque, os povos se dividam para dar espaço à passagem deles. Eles eram grandes e fortes, e em suas mãos estavam seus tridentes que eram batidos no chão fazendo um barulho estrondeante.

Eles chegaram de frente ao palanque e ficaram batendo com mais intensidade seus tridentes ao chão. Os dois líderes que estavam em lados opostos da multidão nadaram até ficar um de frente para o outro. Ambos trocaram beijos em suas bochechas e um aperto de mão. Depois eles ficaram na dianteira de seus respectivos times esperando Marissa prosseguir com as palavras. 

— Ambos já podem levar seus times para superfície e ficar na espreita do rochedo preparando seus ataques. Apenas joguem os humanos nas águas para que possamos terminar o serviço. Vocês devem apenas destruir os navios. — Os líderes junto aos seus times nadaram em formação até irem para fora das águas. — Todos já podem subir para superfície se acomodem nas pedras dos rochedos na superfície. Após os navios se afundarem, vocês poderão se deliciar com o banquete.

O mar estava com suas típicas tonalidades escuras e aos poucos esses tons ficavam mais escuros ainda com a aproximação da noite. As sereias e os tritões grunhiam e gritavam levantando seus estandartes e tridentes. Aos poucos a grande multidão nadava para a superfície.

Quando movimentei meu corpo para ir junto a elas, uma mão me impediu que prosseguisse. Era Marissa. Ela posicionou sua mão em meu ombro sorrindo para mim.

— Deixe a multidão ir primeiro, querida. — Naquele momento eu não entendi sua colocação, mas eu olhei ao redor e notei que as sereias mais velhas, não só da minha tribo, mas também das outras esperavam todos saírem para ir depois. As sereias mais velhas pareciam mais civilizadas que as demais, e eu nunca havia notado isso dessa forma.

Abaixei minha cabeça e deixei meus ombros caírem, notei que até Tamara havia ido, mas os anciões e as outras sereias mais velhas ficaram. Após alguns minutos, Marissa foi para superfície, e eu a acompanhei junto às demais sereias.

 

 

O rochedo estava lotado de sereias, cada pedra espalhada pelas águas estava com alguém em cima. O céu estava mudando de cor para um tom avermelhado, e havia várias nuvens que se preparavam para chover. As rochas estavam sendo cobertas por uma neblina densa, e tudo estava ficando escuro. Em todo o ambiente, apenas um som era audível, a voz das sereias cantando que atraíam os barcos até nós.

No horizonte era possível se ver os navios se aproximando. As sereias estavam ouriçadas, e os times de tritões estavam esperando o ataque ao redor das rochas. Quanto mais as embarcações se aproximavam, mais neblina estava surgindo.

Sentei-me em uma rocha ao lado de Marissa, os tecidos que adornavam meu corpo caíam até tocar a água enquanto ficavam flutuando sobre ela. Marissa estava conversando com os anciões que estavam ao seu lado. As sereias mais velhas estavam escoradas nas rochas observando tudo.

 

 

Alguns minutos se passaram e o céu estava avermelhado fazendo um contraste com o mar que parecia estar negro. Os rochedos cobertos de neblina eram açoitados pelas ondas. Aos poucos uma chuva forte começou a cair sobre todos, atiçando as ondas enquanto os navios já estavam entrando no centro do círculo.

Ambas as embarcações batiam nos rochedos, e de repente as sereias que controlam as ondas fizeram os dois barcos ficarem imóveis. Então o canto delas ficou mais forte. A chuva já estava extremamente agressiva, porém não atrapalhava a continuidade da prova. Os navios, mesmo que pequenos, tinham um tamanho considerável e os odores que exalavam eram extremamente desagradáveis.

— Ataquem! — ordenou Marissa.

Os líderes e seus times assumiram suas formas selvagens. Seus corpos se dilatavam, garras cresciam e suas presas também. As veias negras ao redor de seus olhos sobressaíam sob suas peles.

Ambos os times começaram o ataque, um em cada navio. Os tritões saltavam das águas em direção ao deque dos barcos. O barulho de madeiras se rachando era absurdamente alto. Gritos graves de socorro eram estrondeantes. Vários corpos eram arremessados nos rochedos, eles batiam contra as pedras que os perfuravam derramando o sangue ou às vezes cortando seus órgãos.

Para duas embarcações pequenas, havia muitas pessoas, muitas mesmo. Um tritão do time do líder moreno abriu um enorme buraco no casco do navio, e de lá uma mancha de sangue cobriu a água e vários corpos foram jogados para fora, principalmente pessoas com correntes nos braços como se estivessem presas.

Mais gritos sobressaíam os sons das ondas, e mais corpos eram arremessados nos rochedos. Um tritão do time do líder loiro estava com um humano espetado no tórax no seu tridente e com toda sua força ele arremessou com um impulso descomunal o corpo do humano contra uma das rochas espantando uma sereia que estava ali. Uma mancha de sangue saía daquele corpo derramando-se na água.

 

 

Um tempo se passou e enfim a carnificina teve fim, a chuva já estava grossa, e o navio do líder moreno foi o último a afundar Sendo assim, a vitória foi para o time do tritão Loiro.

Quando os dois navios afundaram, apenas alguns corpos boiavam sobre o círculo do rochedo onde os navios estavam. Havia humanos que estavam vivos e agonizando sobre as rochas. Os tritões aos poucos saíam das águas sujas de sangue e cheias de corpos com correntes formando novamente os batalhões, e mesmo feridos ainda mantinham suas poses.

A chuva forte se transformou em um chuvisco, apenas relâmpagos iluminavam bruscamente o local com uma leve garoa. Marissa chamou o tritão ganhador para perto de si e mandou virar-se de costas para ela.

— Deem aplausos para o vencedor do Festival da Colheita. — Marissa levantou as duas mãos sob a cabeça do tritão sorrindo. — Qual seu nome, querido? — sussurrou para ele.

— Hammys, Hammys Tamos, anciã — disse o ganhador. Sua voz era muito bonita e grave combinando com toda bravura que ele demonstrava ter.

— Hammys Tamos será o futuro pai da nossa esperança. — Marissa sorriu para mim olhando de soslaio. — E quanto aos tritões que tentaram, mas não conseguiram. Lembre-se que Amidh está com vocês e daqui quatro anos poderão tentar novamente, agora se acomodem nas rochas e esperem o banquete. — Ela olhou para os humanos boiando nas águas e para os que se agonizavam nas rochas. — Não se esqueçam que amanhã haverá o fechamento do Festival com a cerimônia de encerramento.

As sereias gritavam e balançavam os estandartes de suas tribos e muitas sereias arranhavam com as suas garras nas pedras como agradecimentos que eram dados ao tritão. Os humanos que se agoniavam nas águas não entendiam nada do que ocorria, apenas gritavam de dor devido nossa língua ser totalmente nociva para os tímpanos sensíveis deles.

— Parabéns Hammys Tamos. E parabéns para você também por ter competido vorazmente. — Olhei para o tritão moreno que havia perdido. Ele estava escorado junto ao seu time com pequenos ferimentos em seu corpo.

Ambos sorriram para mim. O tritão que perdeu levantou o tridente para mim como sinal de honra e todos os outros da tribo Niger Mare fizeram o mesmo, até o ganhador. As sereias se silenciaram e deixaram os tritões com o seu momento.

O silêncio predominava todo o rochedo. A chuva havia acabado por completo, e apenas uma neblina densa cobria as rochas. Todos olhavam para Marissa com ansiedade, agarravam as pedras com força enquanto salivavam as presas. As milhares de sereias pareciam estar ansiosas para atacar aqueles humanos que boiavam nas águas.

— O que estão esperando? O jantar está servido. — Marissa levantou as mãos sinalizando que as sereias estavam livres para o ataque.

De repente, as milhares de sereias e tritões que estavam no rochedo pularam na água agarrando o primeiro corpo que achassem. Eu me recusei a participar daquilo, apenas observei todo o ataque enquanto Marissa e as demais sereias mergulhavam no centro das pedras.

Acompanhei toda aquela cena de longe. As sereias estavam com seus lados selvagens à flor da pele, vários grunhidos eram audíveis e agonizantes. Os sons das garras cortando as peles dos humanos e o barulho de seus dentes mastigando cada tecido carnal eram brutais.

Vi duas sereias brigando por uma criança que ainda estava viva e agonizando, ambas gritavam uma para a outra, até que suas garras cortaram a pequena garotinha no meio. Suas vísceras e órgãos foram espalhadas nas pedras e logo outras sereias apareciam para comer aquelas partes do corpo da menina que estavam jogadas nas rochas banhadas de sangue fresco, elas lambiam até a última gota do líquido vermelho.

Eu estava distraída vendo aquela cena e de repente algo me assustou. Um humano agarrava com força os tecidos que eram adornados em meu corpo. Ele tentava subir na rocha em que eu estava a qualquer custo. Puxei o tecido rapidamente de suas mãos e quando eu fui tentar ajudá-lo a subir, uma sereia agarrou as pernas do homem e afundou ele nas águas até as profundezas. Sua partida à força foi silenciosa.

Depois de toda carnificina, as sereias já estavam fartas e se escoravam nas rochas ou voltavam para a tribo. Aquelas águas estavam banhadas de sangue, e quando aparecia algum humano gritando, logo era silenciado com uma garra rasgando sua garganta.

 

 

Após todo o ocorrido, as sereias já estavam dormindo. A tribo estava calma e silenciosa, as luzes mágicas já haviam se apagado. Antes de dormir, as minhas damas de companhia haviam retirado todos os adornos de meu corpo. Não me sentia cansada, e dormir não era uma necessidade para mim.

Quando me deitei em minha cama, olhei para o teto do santuário, minha cabeça estava sempre voltando a devaneios passados e lembranças das falas do Monstro da Vala do Exílio e a minha insegurança para contar a Héclyro que sua mãe é uma sereia. Meu medo era de que ele ficasse revoltado com ela e eu fosse a culpada disso, pois eu realmente iria ser. Eu não o conhecia o suficiente para saber de suas atitudes a respeito disso, e esse foi um dos maiores motivos de eu sempre ter que ficar pensando bem nas palavras antes de conversar com ele.

Virando-me de um lado para o outro na cama, eu havia me lembrado que Héclyro tinha me chamado até a superfície. Era um dilema em minha cabeça se eu deveria ir ou não, mas algo me convidava. De alguma maneira eu não tinha controle suficiente de minhas ações e pensamentos perto dele e eu queria estar lá.

Provavelmente ele deveria estar me esperando, e eu me sentia na obrigação de ir. Porém dessa vez eu não iria usar minha magia para achá-lo; presumi que Héclyro estava no mesmo local que havíamos conversado ontem.

Levantei-me da cama e saí pela janela do segundo cômodo. Toda a tribo estava dormindo, e apenas pequenos cardumes de peixes passavam por mim. Desta vez eu tomava todo o cuidado evitando ser vista. Escorava-me em todas as pilastras e estátuas que via nos templos.

 

 

Ao chegar à superfície, fiquei de frente às rochas dos dois precipícios onde ficava o castelo de Héclyro que era cercado por muralhas banhadas pelas ondas do mar. O céu continuava com seus nuances avermelhados e o mar parecia estar escuro demais.

Aproximei-me do ponto onde eu e Héclyro havíamos conversado, porém ele não estava lá. Olhei para os lados e tentei ver sua silhueta no meio das rochas da praia ou na mata, mas não o enxergava. Eu poderia usar minha magia, mas não queria perder meu tempo com alguém que estava me deixando desvalidada na orla no meio da noite.

Minha mente novamente entrava no conflito e nos erros que cometi. Queria novamente tentar fazer que com houvesse um balanceamento em minhas decisões, porém as tentativas foram falhas. 

Virei de costas para a praia. Minha mente estava com milhares de pensamentos negativos e o principal era de como fui tola em acreditar em um humano. Senti novamente meu rosto esquentar. Passei minhas mãos sobre meu cabelo solto tentando amenizar a queimação em meu rosto, franzi minha testa e tentei controlar meus sentimentos. Então quando eu estava começando a mergulhar, um rugido intenso ecoou por todo o local me assustando.


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Notas finais do capítulo

Então????? Gostou? Comente aqui para eu ficar sabendo.
Desculpem pelas cenas fortes e espero que tenham gostado.
Esse capítulo eu quis trazer mais ação e descobertas, desculpe se desapontei alguns.

Cap: betado por Reyna Voronova
Se verem erros, me avisem por favor.
Obrigado a todos que abriram o capítulo para ler.

Caso tenha gostado comente aqui em baixo.
Obrigado por estar acompanhando a história. Continue nadando com a nossa tribo!

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