Águas Obscuras escrita por Alph


Capítulo 6
Descobertas




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A forma particular que Héclyro me observava era devastadora, seus traços de expressões se formavam em uma testa franzida, escurecendo o olhar que refletia certa loucura, a boca apertada em uma fina linha. Usava tecidos grossos negros mesclados com cinza sobre seu corpo. Dava para escutar as batidas de seu coração e seu peito subia e descia pesadamente, deixando mais que óbvio que estava transtornado em estar ali, talvez tanto quanto eu.

Eu realmente queria muito ter a capacidade de ferir ele, mas eu simplesmente não conhecia. Minha mente estava entrando em um equilíbrio e comecei a questionar meus erros.

Eu era muito impulsiva e queria fazê-lo pagar por causa de seus guardas ter me pego, mas quando eu o vi tão passivo a minhas ações, senti que uma barreira minha foi quebrada. 

Nos últimos dias, minha vida tinha virado de ponta à cabeça, meus sentidos estavam perdidos em um mar denso e escuro. Era estranho estar sentindo algo, principalmente de forma tão assoladora. Toda vez que eu ficava perto dele me sentia sufocada, meu estômago se embrulhava e meus sentidos aguçados ficavam mais fracos. Meus lábios sempre pareciam secos demais quando eu o via por perto, meu corpo se manifestava de uma forma intrigante. A noite passada fora estranha para mim. O olhar que havia me desarmado estava, novamente, tendo o mesmo efeito.

Conseguia escutar a respiração dele ficar cada vez mais ofegante. Senti-me incapacitada de me mover. Sabia que não iria ser capaz de machucar ele, pois eu iria me culpar para o resto da minha vida. Minha única reação foi submergir meu corpo com vontade de voltar para o Santuário, local de onde eu não devia ter saído.

— Espera! — Ele tentou descer das pedras quase caindo e sua voz saiu grave com um tom de desespero. Ele passou as mãos em seus cabelos esfregando eles com grosseria. — Não tem ninguém aqui além de mim.

— Como me garante que posso confiar em ti? — Apenas minha cabeça estava do lado de fora da água, e o prateado das minhas madeixas era refletido à luz da lua, espalhando-se na água ao redor do meu corpo. Sua voz grave me acalmava lentamente, mas minha cabeça estava ainda tentando acabar com aquele conflito.

Em um movimento brusco, o braço de Héclyro pairou sobre sua bainha em sua cintura. Recuei-me mais um pouco das rochas que eram chicoteadas pela água salgada, deixando as ondas movimentarem meu corpo.

Ele encarou-me e retirou uma longa espada prateada, era curvada e seu brilho era intenso. Seu cabo era cheio de, julgo eu, pedras preciosas e no início dela havia um dragão de metal esculpido descendo do final do cabo até o começo da lâmina. Héclyro jogou-a na areia bruscamente e levantou suas mãos demonstrando redenção.

— Desde o final da noite de ontem eu não parei de pensar em você — as palavras saíram como sussurro de sua boca, causando-me um puxão sufocante dentro do meu peito. Seus ombros caíram e ele franziu a testa, encarando-me.

Era difícil de acreditar no que eu acabava de ver. O corpo dele estava curvado de forma sutil e sua pele brilhava com a luz da lua e do que ele trouxe para iluminar o local. Não sabia como responder, então fiz algo que se remetesse a uma resposta. Larguei o chicote de algas que estava em minha mão até ver as ondas o engolirem completamente.

Héclyro arregalou os olhos e balançou a cabeça em claro sinal de resignação, assentindo. Ele forçou um pigarro com a mão fechada na frente da boca, e levou as duas para o bolso em seguida. Um vento frio passou entre nós que estávamos distantes, eu na água e ele na terra. A corrente de ar fazia o tecido nas costas dele tremular, então reparei que Héclyro estava com a capa que ele usou na noite passada para me levar até o mar.

— Bem... Isso me parece um bom começo — Héclyro deixou sua voz sair como um sussurro deixando um silêncio constrangedor surgir. Então pigarreou e completou: — Ao menos, melhor que os últimos que tivemos.

Assenti com a cabeça, aproximando-me das rochas que ficavam mais perto da areia da praia. Era estranho quando me aproximava dele, sentia que ele encarava meu corpo de uma forma que ninguém jamais fez.

Apoiei meus cotovelos em cima de uma rocha ficando com a cintura exposta sobre a pedra enquanto a cauda permanecia dentro da água. Héclyro deixou seus lábios entreabertos.

O silêncio estava predominado, só se escutava o barulho das ondas açoitando as rochas. Ele engoliu em seco e olhou de soslaio para a floresta ao seu lado. Héclyro deixou seus ombros cair e suspirou. Encarei a marca vibrante em seu pescoço. Ela levou meus pensamentos ao dia em que eu o salvara. Grande erro. Ele pigarreou, quebrando meu fluxo de memórias, e colocou a mão em cima da marca, massageando o local.

— Algo me diz que aquele chicote... Você pretendia me matar? — Ergui o rosto com feições duras, sem afirmar ou negar nada. A resposta era mais que óbvia. Héclyro parecia envergonhado. — Tudo bem, não te julgarei, você está... Em pleno direito de... — Héclyro parecia procurar as palavras certas, começando e deixando sem complemento frases que colocariam à prova seus valores. Ele soltou um suspiro, desistindo de tentar. Ergueu o olhar até o meu. — Eles te machucaram muito?

— Homens não me machucam, eu que os machuco. — Recebi uma brisa fria em meus seios enquanto eu conseguia manter o olhar de Héclyro fixo aos meus. — E o guarda que me chutou morrerá em dois dias.

— Sereias duronas — sarcasmo saía de sua voz. — Teve uma coisa que eu não deixei de notar — completou falando pausadamente, respirando fundo como se a cada palavra tivesse um enorme peso. — No dia que você me salvou... Eu não vi essas marcas em sua cauda.

Ele apenas sentou-se na areia e ficou me olhando. Eu queria ir embora, mas algo me prendia ali. Uma força impedia de sair. Héclyro abaixou sua cabeça, respirou fundo e novamente eu consegui escutar as batidas do coração dele se acelerarem vorazmente. Tentei encontrar os olhos dele e encará-los para entender o que estava acontecendo.

— Isso não é da sua conta, humano. São alguns problemas que estou lidando. — Olhei de soslaio para o horizonte.

— Esses problemas envolvem salvar um humano? — Héclyro indagou rapidamente, palavras que tiveram um peso enorme para mim.

Não consegui respondê-lo, por mais que ele não fizesse parte de todo o festival e o que acontecia, cada vez mais eu percebia que estava me afundando em algo que não tinha volta. Era incrível como olhar para ele me deixava mais leve, mas minha consciência estava em conflito interno.

Encarei Héclyro, seu maxilar quadrado com barba por fazer dava um longo contraste com seus lábios rubros, e suas sobrancelhas cheias fechavam todo o seu olhar sério. Seu cheiro era ardente, olhar para a pele dele e seus músculos parecia como mil adagas cortando minha garganta. Ele me fitava esperando uma resposta.

— São piores do que isso — minha voz saiu grave e com um timbre encorpado.

Queria ter dito que sim, mas tive tantos medos e incertezas. Meus pensamentos começaram a atormentar minha cabeça. Parecia que tudo estava se embolando em problemas e mais problemas. Héclyro falou algo, mas não entendi, estava perdida em meus devaneios e vendo que tudo estava se acumulando em minhas costas. A face do homem que estava a certa distância de mim demonstrava dúvidas, sua testa estava franzida e seus lábios comprimidos em uma linha reta que parecia tentar me entender. De repente, pensei, lidar com Héclyro parece muito mais fácil que lidar com as responsabilidades do festival. 

Meu estômago se embrulhava só de pensar que em breve eu teria que escolher um tritão para acasalar. Era estranho pensar que, entre uma coisa e outra, a ideia de ficar com o humano parecia mais tentadora.

 A água salgada açoitava as rochas com voracidade. Era possível escutar o barulho das ondas se quebrando com maestria, esse som substituiu o vazio de meus pensamentos. Encarei toda aquela paisagem, evitando o contato visual de Héclyro.

Ainda era madrugada. Era para eu estar dormindo, porém dormir se tornou algo difícil já que sempre meus sonhos se remetiam a pesadelos ou a insônia consumia meu corpo. Notar que todo um peso estava se formando para mim, era difícil ter que lidar com tanta coisa ao mesmo tempo. Senti meu rosto queimar, e notei que logo meus olhos iriam ficar marejados. Então cortei meus devaneios e voltei à realidade.

— Tenho que ir. — Levantei-me da rocha onde eu apoiava meu corpo e virei de costas para ele.

— Por quê? Espera! — Ele se levantou rapidamente da areia, seu semblante era confuso. Seus ombros estavam caídos e ele gesticulava com a mão em súplica. — Espera, Allysa, não vá! — Héclyro corria rumo às ondas, então evitei olhar para ele e afundei meu corpo dentro do mar. Dava para escutar a voz dele diminuindo a cada metro de água que eu mergulhava.

 

 

Minha cabeça estava perdida em um turbilhão de sentimentos e pensamentos. Aquela frase que Héclyro disse para mim foi o suficiente para me deparar com uma enorme confusão em minha cabeça. Esses problemas envolvem salvar um humano? As palavras ficavam ecoando em minha mente. Eu precisava entender o que estava acontecendo comigo. Era estranho ficar perto dele. Era como se uma fonte magnética me chamasse de volta para a terra. Para Héclyro. Se por curiosidade ou ódio, eu não saberia dizer.

Ao chegar à tribo depois de passar pela Vala do Exílio, fiquei parada na frente de dois caminhos: o que levava para o Santuário de encubação e o Templo de Estudos. Minha cauda movia-se para frente e para trás junto às minhas barbatanas. Pairei minha mão sobre meu rosto. Ombros caídos e olhar tenso eram duas formas de me descrever naquele momento.

Algas gigantes balançavam-se ao ritmo da corrente cheia de bolhas. Estava tudo escuro e apenas os raios da lua brilhavam naquele ambiente. Precisava espairecer, tinha que refletir sobre tudo em minha vida. Eu necessitava entender o que estava acontecendo em minha cabeça, tudo o que estava me afligindo. Eu queria entender como um humano agia, o que ele pensava. 

Estava em um conflito interno querendo saber mais sobre os humanos, entender o motivo de eles serem tão estranhos, pois até antes de conhecer Héclyro, eu sempre matei humanos e nunca fiquei com dó de nenhum e ele mudou esse fato.

 

 

Nadei bruscamente para o Templo de Estudos, talvez na biblioteca devesse ter algo sobre isso que estou passando. Nós, sereias, nunca compartilhamos sentimentos, muito menos os expressamos, é difícil de entendê-los, principalmente para mim que não tive uma mãe que ao menos me auxiliasse em algumas das minhas escolhas. 

Novamente perdida em devaneios, entrei pela janela aberta do Templo, balançava minhas barbatanas azuis peroladas até uma grande sala de mármore branco cheia de ramas enroladas nas pilastras. Héclyro tinha um jeito peculiar e eu precisava entender como era isso. Sabia que era errado invadir os templos a noite, mas eu necessitava entender sobre ele, e seria de qualquer forma independente das punições.

A sala onde eu havia chegado era onde se armazenava os mais diversos tipos de escritas. O chão era de areia, algumas plantas se misturavam a decoração o ambiente. Estátuas e bustos de deuses davam um ar religioso ao lugar por mais que tivesse um pouco escuro. Além das esculturas de mármore, tinha grandes prateleiras com vasos antigos e longas listas de algas com escritas antigas.

Dei uma longa olhada naquelas imensas prateleiras que eram divididas em ordem alfabética do nosso idioma arcaico. Olhei para a estante que continha vários pergaminhos aquáticos que eram feitos de alga marinha. Alcancei uma escrita que falava sobre o corpo das sereias e como lidar com o aparecimento do seu dom, mas não era isso que eu queria.

 

 

Após alguns minutos desenrolando as algas para ler elas e ver se achava algo sobre humanos, nada adiantava, não tinha nada sobre eles. Então me lembrei que Marissa não iria deixar algo sobre humanos em uma sessão livre.

Quando eu era criança lembrei-me de Marissa trancando aquela sala com pergaminhos extremamente antigos. Ela dizia que sereias mais novas não têm direito de ver acervos tão antigos.

Na extensão final da sala havia uma dispensa sem janelas e com uma porta de gelo selada. Talvez o que eu procurava estava ali, tentei abrir a porta, em vão. Olhei para o chão, pegando uma pedra grande que ocupava minha mão por completo. É agora ou nunca. Com toda força que tinha, desferi a pedra contra o gelo que impedia a minha passagem, fazendo com que a porta se estilhaçasse e os pequenos pedacinhos de gelo quebrados fossem caindo lentamente. A água abafou parte do som emitido pela pedra, porém fiquei com receio das sereias escutarem devido as nossas hipersensibilidades auditivas.

Entrei na sala escura. O lugar seguia o mesmo padrão da área maior, porém, estava cheio de corais cobrindo as paredes. Comecei a vasculhar todos os pergaminhos ali presentes. Passou mais alguns minutos até que finalmente achasse algo sobre humanos. Desenrolei o pergaminho de alga e comecei a ler com um pouco de dificuldade devido à falta de luz.

A escrita do pergaminho era grosseira, os símbolos eram feitos com corais rústicos. Fora a língua antiga que era de difícil compreensão. Mais um tempo se passou e eu continuava lá, lendo aqueles enormes textos. Era sucinta a forma como as sereias antigas falavam sobre humanos como seres tão frágeis e necessitados.

Os humanos são criaturas fracas e emotivas, incapacitados de pensar com racionalidade, o que torna suas decisões confusas de serem estudadas. A espécie é dotada de particularidades que ainda são um mistério para as raças evoluídas, embora sereias e tritões antropólogos já tenham chamado atenção para a cultura. Pouco se sabe quanto sua origem, embora a tradição mística afirme que eles vieram do leste pelo Arquiteto Profheus, 1000 mil anos antes do surgimento dos seres do oceano, logo após a divisão do continente de Tarfarem. Constituindo assim uma raça particularmente ainda jovem e não-evoluída, pois são inferiores aos seres do mar. Suas articulações não são resistentes, possuem limitações na locomoção, o que eles chamam de ‘andar’. A anatomia é extremamente limitada, onde o osso da bacia é dividido em dois estreitos, que os facilitam de ficar em pé, mas retardam seus movimentos na água. Eles envelhecem rapidamente, muito mais rápido do que as sereias e tritões, suas peles ficam frágeis e postura perde a resistência.

 Os indivíduos dessa sociedade são obcecados por rituais de algo que chamam de ‘sentimentos’, e todos acreditam que os órgãos do coração e cérebro podem guiar suas ações com base em sensações físicas. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo sob os pesados fardos que eles impõem sobre si mesmos, como sacrificar-se em nome de ‘amor’ ou ‘tristeza’, e que até mesmo os leva a sacrificar outros seres da própria raça com o que eles chamam de ‘raiva’.

Tinha um desenho mal feito no final do pergaminho de um corpo humano e um pouco mais abaixo havia algo escrito como uma pequena tabela descrevendo quais eram os principais sentimentos que eles sentiam: medo, raiva, alegria, tristeza e amor. Cada um desses nomes tinha uma pequena descrição na frente. Li o de todos, mas quando cheguei em amor, a parte da descrição estava borrada e me impossibilitava de ler.

Agora compreendia um pouco do que Héclyro sentia a respeito da morte dos seus marujos e quando me viu pela primeira vez. Sua forma de entender o que era sentimentos era bem diferente da minha. Nós nos privávamos de ter um lado emocional mais aflorado, principalmente eu, que tive minha mãe morta e fui criada pela Marissa que sempre me tratou com indiferença. Os humanos têm essas emoções mais fortes, e isso os cega em suas ações. Descobrir coisas sobre humanos nunca foi tão importante para mim até aquele dia que salvei Héclyro.

Ao terminar de ler o pergaminho, enrolei-o de volta e coloquei em cima mesa de mármore que havia do lado da estante coberta de corais. Mesmo após ler todos aqueles textos, eu me sentia vazia, era como se aquilo não fosse suficiente. Queria entender o que era o amor. Passei minhas mãos sobre meus cabelos tirando-os da frente da minha visão deixando algumas bolhas se dissiparem pela sala.

Quando fui me retirar da sala, desajeitada, bati minha cauda contra a estante e um bloco de pergaminhos amarrados foi caindo lentamente até o chão e, de repente, uma corrente do mar passou pela sala trazendo algumas flores marinhas. A princípio, assustei-me com aquela movimentação nas águas.

Coloquei apenas minha face para fora da porta olhando para a outra vasta sala, vendo se tinha alguém me observando, mas não havia ninguém. Ao voltar para dentro da salinha, encarei o bloco de pergaminhos amarrados que agora estava aberto no chão com algumas folhas dispersas sobre a areia.

Observei que uma flor ficou em cima de uma escrita em particular, ela começou a brilhar levemente e depois apagou. Cheguei mais perto do pergaminho e encarei aquela luz que se apagava. Tirei a flor de cima do pedaço de alga com escritas, e ao tocar nela, suas pétalas transparentes com brilhos e seu fundo amarelo começaram a derreter em minha mão virando um líquido viscoso que logo se dissipou na água salgada. Arqueei minha sobrancelha tentando entender o que tinha acontecido.

Aquelas flores só existiam em um lugar na tribo: nos Arcos de Amidh. Um local sagrado para nós, sereias, é lá que enterramos as irmãs que já se foram e rezamos no templo de lá. Aquela flor é da árvore de Zérys, ela representava a vida na nossa tribo e dizem que quando elas aparecem em locais inusitados, significa que uma intervenção divina está acontecendo, segundo as sereias mais velhas.

Ao voltara encarar o pergaminho, vi alguns símbolos da língua antiga das sereias. Tomei-o em minhas mãos e comecei a lê-lo. Ele estava velho e gasto, sua coloração escura dificultava o entendimento da escrita. Pelo que vi, os textos se referiam às sereias de todas as tribos que foram exiladas com o passar dos anos, por isso aquele enorme bloco de pergaminhos amarrados. Meus olhos desciam a lista de nomes, alguns ilegíveis. Na frente de cada nome tinha o motivo do exílio da sua tribo.

Aquele pergaminho se referia as sereias exiladas da Tribo de Fertilitais. Não tinha muitos nomes, mas quando eu olhei um em particular me parecia bastante familiar, Talisya Fahíerys, não pelo nome em si, mas sim pelo sobrenome. Ele me recordava alguém, mas não me lembrava. Apanhei aquele pedaço de alga com escritas surradas e olhei para os lados. Ergui meu corpo até a mesa de mármore branco onde deixei o outro exemplar de escrita que falava sobre humanos. Juntei os dois em minhas mãos e saí daquela sala proibida.

Passei novamente pela sala maior, o mar estava em um silêncio total. Cardumes de peixes coloridos passaram enquanto bolhas subiam. Poucos raios de luzes da Lua chegavam até local. Quando me movi até a janela para sair da biblioteca, fui surpreendida.

—Olá! — Uma sereia que passava falou, me assustando. — O que faz acordada à essa hora, Allysa?

— Você é maluca, Damysis? — Olhei para ela com os olhos arregalados, quase desferi um tapa na face dela que parecia querer sorrir com minha reação. Damysis era uma bela sereia, seus cabelos grandes eram castanhos ondulados com tranças nas laterais da cabeça. Seu corpo era bem definido, sua cauda era bem grande com tons de azul pérola cheia de barbatanas que desciam como um véu.Possuía os típicos traços de uma sereia Nefericiana: pele quase transparente de tão branca e olhos azul-cinza. Traços naturais devido à falta de luz solar nas nossas águas, céu sempre nublado e a região ser fria.  — Não te devo satisfações de nada.

— Claro, claro. Perdão minha senhora. — Ela me ironizou curvando sua coluna em uma reverência forçada enquanto que, com as mãos, tocava as barbatanas da cauda. — Não era para vossa grandeza estar descansando para a segunda prova do festival?

— E você, também não era para estar descansando? — retruquei encarando-a.

— Não estou conseguindo dormir direito, então resolvi nadar por aqui. — Damysis gesticulava com as mãos enquanto falava.

— Então você me viu e resolveu espionar-me? — Encarei seu rosto enquanto escondia os dois pergaminhos atrás de minhas costas.

— Me poupe, Allysa. — Ela revirou suas íris azuis. — Eu estava andando por aqui e ouvi um barulho, achei que fosse um daqueles bichos das sereias de Ferox, mas era algo pior: você. — Sua piada foi sem graça, mas ela conseguiu retirar um sorriso meu. Damysis sempre foi muito irônica e piadista. Ela nasceu na antes de Tamara. Seu jeito extrovertido tampava sua frieza e isso incomodava muitas sereias. Ela era uma das mais próximas a mim, mesmo que não nos falássemos muito.

— Que engraçada você. — Sarcasmo foi minha saída. — O que você quer?

— Eu? Nada, pelo menos no momento. — Ela virou seu corpo horizontalmente jogando seus cabelos para o lado enquanto me observava. — O que é isso em sua mão escondida aí atrás?

— Nada. — Ela se aproximou de mim. Tentei esconder os pergaminhos atrás de minhas costas. Ela veio com toda velocidade em suas nadadeiras empurrando com uma das suas mãos meu rosto e com a outra tentava alcançar meus braços. Ergui minha mão direita evitando que ela pegasse as escritas, mas foi uma tentativa falha. Damysis as pegou e desenrolou-as começando a ler enquanto franzia a testa arregalando seus olhos. Coloquei minhas mãos em minha testa desaprovando a atitude dela.

— Nossa! O que temos aqui? Está planejando algo? Lista de exiladas e humanos? — Ela ficou de cabeça para baixo lendo. Damysis sorriu e me encarou com uma cara infantil. — Está querendo saber qual a parte dos humanos é melhor de se comer? Eu gosto daquela parte de trás, aquelas bem redondinhas...

— Damysis, cala a boca — a interrompi antes que completasse e tomei os pergaminhos de sua mão. — Não conte para ninguém sobre isso.

— Adoro segredos. Esse vai ser nosso segredinho. — Ela nadou para trás das minhas costas e colocou as mãos em meus ombros de completo. — Olha, eu pensei que você não batesse muito bem da cabeça por sempre ser calada, mas arrombar a sala proibida e pegar dois pergaminhos... Surpreendeu-me. — Seus lábios abriram em um sorriso alegre.

— Você me estressa, sabia? — Me afastei dela soltando uma risada, revirando os olhos. Damysis fez uma careta em resposta.

Desloquei-me até o Santuário de Encubação enquanto Damysis fazia milhares de perguntas irritantes e piadas sem graça. Ainda estava escuro e devaneios voltaram à minha cabeça me lembrando do dia em que salvei Héclyro. Queria voltar à superfície para terminar de falar com ele, ou matá-lo. É muito difícil balancear sentimentos. Para mim, me lembrar do dia que ele me capturou só aumenta minha raiva, porém me fez entender melhor o lado dele. Senti-me feliz em saber o nome dele. Seu nome ecoava em minha cabeça. Héclyro. De repente, fiquei estática no meio do caminho, fazendo Damysis bater em minhas costas por conta da parada brusca. Héclyro Lavyrio Fahíerys.

— Está louca, Allysa? — Damysis se queixava. — O que você tem?

Fahíerys. O nome ecoou na minha cabeça.

— O sobrenome! Por isso era tão familiar. Claro! — Arregalei meus olhos me refrescando minha memória.

— Hã? — Ela nadou até minha frente encarando-me. — Você é louca. Que sobrenome?

— Nada, nada! — Sorri como se aquilo fosse uma piada interna e voltei a olhar para Damysis que me fuzilava com olhar de curiosidade. — Só me lembrei de uma coisa importante.

Quando cheguei à porta do Santuário de Encubação, Damysis me enchia de perguntas e continuava com suas piadas.  Agora algumas coisas começaram a fazer sentido. No momento, Héclyro não saía dos meus pensamentos mais internos e a Damysis tagarelando me tirava a concentração. Apertei os pergaminhos em minhas mãos e olhei para a sereia a minha frente.

— Damysis, eu vou dormir agora — falei entrando no Santuário.

— Tudo bem. Posso dormir nesses corais no chão? Parecem muito confor... — Fechei a porta do Santuário na cara dela. — Grossa! Nem precisava, os Templos do Sono são melhores do que esse lugar horrível, mesmo abarrotado de sereias visitantes.

— Boa noite, Damysis, vai dormir. — Falei deitando-me em minha cama, deixei escapar um sorriso. Coloquei os pergaminhos sobre o chão com duas pedras em cima deles.

 

 

Acordei com o som de duas sereias entrando no meu quarto. Alguns peixes passaram pelo lugar enquanto a luz que era emitida iluminava o ambiente. Cocei meus olhos enquanto as duas pararam a minha frente. Sentei-me sobre a cama com a coluna ereta observando as garotas que me encaravam.

— Algo na minha cara incomoda vocês? — perguntei grosseiramente. Odiava ser acordada.

— Levante-se, precisamos arrumar você para a segunda prova do festival. — Tamara me encarava com as mãos atrás das costas e seios estufados com um olhar de superioridade. — Marissa mandou você ser mais pontual.

— Trouxemos acessórios novos e melhores do que os desse baú antigo para a senhorita usar. — Lyria trazia consigo um sorriso e apontava para o baú antigo no canto do cômodo, enquanto esticava uma bolsa feita de algas que aparentava estar cheia.

Não me queixei, apenas levantei-me da cama espreguiçando minha cauda. Movi-me até o segundo cômodo do Santuário onde deixei meu corpo disposto nas pedras termais. Tamara entrou em seguida com Lyria atrás. Sentei-me e deixei que elas me arrumassem. Tamara começou a pentear meu cabelo grosseiramente com uma escova feita de espinhos de estrela. Virei meu rosto para encará-la com raiva.

— Bata em si mesma se estiver com raiva de alguém, Tamara! Pare de descontar no meu cabelo! — Grunhi, puxando-o de volta para meus ombros. Tamara revirou os olhos com um suspiro.

— Perdão. — Tamara ficou cabisbaixa e pensativa como se algo tivesse afligindo-a. — Lyria, pode buscar cera de pérolas para passarmos na cauda dela?

Lyria saiu do quarto com o seu sorriso rotineiro. Tornei a encarar Tamara e notei que ela parecia tentar formular uma pergunta.  Puxei meus cabelos das mãos dela para frente de meu corpo e virei-me de frente para ela.

— Acho um saco essa Lyria — falou Tamara após a sereia sorridente sair do local.

— Suponho que queira dizer algo, agora que a mandou sair daqui — cruzei os braços com impaciência ao dizer.

— Sim — sua voz saiu fraca. Ela me fuzilou com seus olhos pretos em contraste com seus fios de cabelo brancos. — Eu te vi ontem de madrugada com Damysis...

— Agora todas pararam de cuidar de suas vidas para me vigiar? — soltei com arrogância.

— Não é isso... É que... Marissa que mandou te vigiar, ela disse que você não é de confiança e pode estragar todo o festival. — Que desgraça! Ninguém tinha que sequer saber disso, ou eu estaria realmente encrencada, ou pior, condenada. — E te ver de madrugada por aí reforça que Marissa possa estar certa, Allysa.

— Há quanto tempo você está fazendo isso?

— Desde quando você apareceu com os punhos marcados e Marissa percebeu, porém ela não comentou com você, ou seja, desde ontem — ela respondeu pausadamente. — E eu te vi com pergaminhos roubados do Templo de Estudos ao lado de Damysis.

— Não precisa ter medo que eu estrague o festival. Aqueles pergaminhos são sobre a transformação da escolhida, preciso entender melhor o que vai acontecer comigo — menti para ela enquanto meu estomago se embrulhou e eu comecei a sentir um nervosismo.

— Algo me diz que isso não é verda...  — A porta do cômodo se abriu e lá voltava Lyria com uma concha lilás cheia de cera interrompendo Tamara de completar sua frase. Senti meu corpo se aliviar de um peso.

Nós duas ficamos em silêncio, Tamara voltou a pentear meus cabelos com mais delicadeza. Lyria começou a passar a cera perolada em minha cauda com muito cuidado. Tamara fez algumas tranças nas laterais de minha cabeça e um penteado bem charmoso. Lyria, depois de encerar minha cauda, lotou meus braços de jóias e colocou os tecidos transparentes que desciam pelo meu corpo como um véu junto as minhas barbatanas.

Ainda estava preocupada com Tamara e suas desconfianças. Sentia que devia tomar mais cuidado com todas as sereias daqui para frente, até mesmo das mais inofensivas como Lyria. Talvez não fosse medo do que aconteceria comigo, mas sim com outra pessoa.

A porta do Santuário foi arregaçada, e quem entrou foi Damysis toda sorridente. Ela ficou boquiaberta com o local e ao adentrar no cômodo onde eu estava, se virou para mim enquanto as meninas davam os últimos retoques e disse:

— Nossa, que vida difícil a sua. — Sua piada me fez dar um sorriso de lábios fechados para ela. — Aqui é bem melhor do que o Templo do Sono, aquelas sereias de Ferox parece monstros dormindo, elas fazem barulhos estranhos à noite.

— O que faz aqui? — Tamara interrogou-a com frieza enquanto finalizava o penteado com uma tiara fina de ouro gélido em minha cabeça.

— Vim avisar que todas já estão esperando por vocês, e, claro, quis conhecer esse lugar já que certas pessoas sempre fecham as portas em sua cara. — Damysis olhou de soslaio para mim. Apenas revirei meus olhos.

Ao terminar tudo, saímos do Santuário seguindo um rumo diferente do Coliseu, arquei minha sobrancelha comprimindo meus lábios. Preferi não perguntar nada para Tamara já que o clima estava mais tenso do que o de costume entre nós duas. Ela e Damysis iam à frente enquanto Lyria falava algumas coisas para mim sobre a beleza surpreendente das sereias de Fertilitais.

 

 

Quando finalmente chegamos, vi que não era no Coliseu e sim no pequeno Templo de Athémrys. Todas as sereias e os tritões estavam sentados ao redor do local no chão formando um grande círculo no perímetro do templo. A construção ficava um pouco isolada da tribo, ela era pequena, circular e aberta com colunas entalhadas cheia de ramas e musgos e uma cúpula de mármore branco. 

Vários cardumes de peixes passavam por ali. Marissa estava dentro do templo conversando com os outros anciões enquanto me esperava. Os cinco tritões vencedores da prova passada esperavam em uma fila única de frente para a construção. Afastei-me das damas de companhia e fui rapidamente até Marissa me posicionando ao seu lado.

— Agora que nossa escolhida chegou, vamos dar início a nossa segunda prova. — Ao falar, todos os presentes se levantaram e começaram a escutá-la. Marissa estava com seus cabelos negros amarrados. Usava algo semelhante a uma coroa de gelo em sua cabeça que era símbolo da nossa tribo. Suas mãos estavam posicionadas atrás de suas costas estufando seus seios.  — Bem-vindos à segunda etapa do Festival. — Marissa apenas moveu seu corpo ao redor do templo, enquanto eu e os anciões nos afastávamos do interior do local.

Marissa apanhou seu cajado que estava encostado em uma das colunas de mármore entalhadas. O templo agora estava vazio, com os anciões do lado de fora só restou Marissa lá dentro. Ela balançou seu cajado sobre o chão do pequeno templo e o solo de mármore começou a se derreter em um líquido viscoso branco que logo se dissipou pela água. Ela ficou sobre o buraco do local encarando a todos.

— Hoje nossos cinco finalistas irão passar pelo portal de Athémrys. Ele foi construído desde o início dos primeiros festivais, e cada tribo tem o seu. Cada tritão percorrerá um dos caminhos embaralhados do subsolo de Neferice. Aviso desde já que o percurso é perigoso terão bastantes desafios e monstros, por isso poderão usar seus tridentes. A chegada será no Templo da Magia. Os competidores que não conseguirem completar o percurso no subsolo, as sereias de Ferox farão uma varredura recolhendo os feridos ou os mortos. — Marissa encarava de forma insensível os tritões enquanto todos os anciões apenas concordavam.

Com poucas palavras os tritões entenderam que nem todos iriam voltar. Ver todos daquela forma me fazia sentir repulsa desse festival. Só de lembrar os gritos dos tritões no Festival da Colheita passado em Divitias me fazia contorcer. Cada um dos rapazes se posicionava a frente da fissura aberta no templo.

Depois que todos já entraram na abertura escura no solo do templo, Marissa balançou seu cajado fechando a fissura que se reconstruía. Ela saiu de dentro da construção e encarou os demais presentes. Os anciões seguiram-na ficando ao seu lado.

— Agora todas me acompanhem até o Templo da Magia para que possamos esperar a chegada dos tri... — Marissa foi interrompida por um grito másculo vindo do subsolo, todas as sereias e os tritões ficaram assustados enquanto se entreolhavam. Então sem nenhuma expressão em seu rosto ela completou sua frase. — Vamos, creio que até o final da tarde já teremos o finalista.

Ainda assustados, todos os presentes continuavam a nadar até o Templo da Magia sem se questionarem nada. No caminho, Damysis encostou-se a mim me olhando de cima a baixo. Dessa vez ela não estampava nenhum sorriso.

— Está odiando isso, não é? — indagou a garota com um semblante de pena, enquanto franzia a testa.

— Sim — respondi de forma rude olhando para seguindo o caminho. Ela não me perguntou mais nada e apenas ficou ao meu lado.

 

 

Ao chegarmos ao Templo da Magia, as sereias das tribos se posicionaram nas arquibancadas. A construção era bem diferente do Coliseu. O lugar era circular totalmente em mármore. Tinha o balcão dos anciões e no centro da arena o piso era de mármore com um altar no meio e ao lado de suas laterais tinham duas estátuas feitas de gelo de Amidh com as mãos para cima. A construção não tinha paredes. Sua visão de fora era esplêndida já que tinha estátuas gigantes dos deuses mais importantes em cima dos acentos.

Marissa logo abriu o buraco no altar para a saída do tritão finalista. O estandarte com desenho da coroa de gelo da nossa tribo estava sobre o balcão dos anciões e aos poucos o templo ia lotando. Os anciões já estavam ocupando seus tronos e eu me posicionei ao lado de Marissa.

— Atenção a todos! — Levantou-se de seu trono — Cada tritão que morrer ou que não conseguir terminar o percurso, vai aparecer seu nome em cima do templo para que todos possam ver. — Diferente da ultima prova, agora o combate não era uns contra os outros. Desta vez o tritão que morresse não saberia nem o que, ou quem o matou.

O tempo se passava e para causar uma distração as sereias de Divitias faziam shows de magias com luzes criando animais para impressionar a platéia. Os sons dos aplausos tampavam os gritos vindos do subsolo dos tritões.

Os raios do Sol que chegavam até nós já estavam diminuindo dando espaço às luzes mágicas da tribo começavam a surgir. Até agora nenhum dos tritões selecionados havia voltado, e dois nomes já apareceram em cima do templo. O tédio fazia minha mente pensar em coisas inusitadas como “o que Héclyro estaria fazendo agora?”. Fugia dos devaneios e logo eles voltavam até que o primeiro tritão saiu pela abertura no chão gritando. Todos os presentes se assustaram o que interrompeu o show das sereias de Divitias.

O tritão nadava com dificuldade, sua cauda azul marinha escura sangrava. Seu maxilar estava ferido e seus cabelos loiros estavam sujos. Alguns tritões foram ajudar a levá-lo para um dos assentos da arquibancada a pedido do ancião deles.

Novamente outro nome apareceu em cima do templo brilhando, e agora só restava dois tritão. Marissa continuava imóvel com sua postura ríspida sentada no seu trono. Levantei-me bruscamente indo até o tritão ferido, porém fui barrada por Marissa que posicionou sua mão contra meu peito impedindo-me de me erguer. Fuzilei-a com um olhar de ódio, afastei a mão dela grosseiramente de mim e nadei até o rapaz ferido, não seria Marissa que iria me impedir de ajudar alguém, ou fazer as regras por mim.

O rosto dele se contorcia de dor. Sua testa estava franzida e ele pressionava seus dentes apertando a mandíbula. Levantei minha mão até o peitoral do tritão tocando-o. Deixei meus poderes fluírem pelos meus dedos, curando os machucados dele que aos poucos cicatrizavam. Os olhos azuis dele me fuzilavam e suas expressões de dor foram se estabilizando até ele me olhar com ternura.

— Obrigado — seu tom de voz era baixo.

— Disponha. — Sorri para ele e movimentei meu corpo novamente para o balcão.

Marissa me reprovou minha atitude com um simples olhar. Não me importei com isso, ajudaria ele novamente caso precisasse. Olhei para o tritão que ainda se recuperava. Todos da platéia pareciam esperar um nome surgir em cima do templo, esperavam a morte de mais um. O que aconteceu foi o contrário. Enquanto todos olhavam para cima, outro tritão saía da fenda no altar com dificuldade, sua cauda estava intacta, mas seus braços e seu tórax estavam com carne exposta.  Ele jogou seu tridente no chão enquanto os seus irmãos de tribo foram ajudá-lo.

Dos cinco tritões, apenas dois saíram. Isso surpreendeu a todos, já que esperavam que apenas um fosse conseguir. Nadei até o ferido que também estava do lado do outro semifinalista. Dessa vez Marissa não me barrou.

Coloquei minhas mãos no tórax do tritão moreno. Ele tinha as mesmas expressões de dor do anterior, então deixei meus poderes agirem em seu grande corpo. Seu rosto se movia de um lado para o outro sentindo dores, seu cabelo volumoso ondulado seguia seus movimentos. Todos ali presente me olhavam como se eu estivesse fazendo algo errado, mas realmente aquilo não me importava.

O Sol já tinha dado espaço para que a Lua começasse a brilhar. O tritão me agradeceu por ter curado-o. Voltei para meu assento e esperei que Marissa me repreendesse, porém ela se levantou com os braços atrás das costas e com sua postura ereta ela se moveu até o altar fechando a abertura. E ainda lá ela pronunciou:

— Vamos todos rezar para a alma dos tritões que nos deixaram ou aqueles feridos que não conseguiram terminar o percurso. — Todos deram as mãos se unindo em correntes e começaram a rezar a antiga palavra de Amidh. Após um tempo, aquele momento de ternura se cessou dando espaço novamente a voz grave de Marissa. — Que eles descansem em paz. Agora as sereias de Ferox farão a varredura dos caminhos no subsolo e tentarão achar os corpos ou os feridos para serem tratados.

 

 

Após a segunda prova, Marissa dirigiu todos até o Pavilhão de Hidrazy onde estava sendo servidos vários peixes para todos, pois não havia mais carne humana. A noite ia passando, tudo estava ocorrendo bem. Marissa, durante a refeição, não direcionou um olhar para mim.

Quando o jantar acabou, os tritões e sereias foram para as praças da tribo, lá estava acontecendo alguns shows e gincanas regadas a muita música. Alguns tritões faziam duelos entre si para se divertir como de costume. Passei o tempo andando entre as localidades com as damas de companhia e Damysis.

— Nunca vi esse lugar tão vivo — Damysis puxou assunto sorrindo.

— Realmente — Tamara concordou.

Ao chegarmos ao centro da praça, Damysis nadou até o topo da estátua de Amidh feita de mármore branco esculpido. Ela deitou-se nos grandes braços da estátua sorrindo, Lyria sorria junto se divertindo com a situação enquanto Tamara desaprovava. Eu assisti aquela cena, queria me juntar a elas, mas eu não queria dar motivos para Tamara fofocar.

Deixei escapar alguns sorrisos enquanto as meninas brincavam com a estátua. Quando eu me arrisquei a nadar para mais perto, uma mão me tocou nas costas e vi que não era Tamara. Encarei quem passava a mão em meus ombros e era Marissa. Logo após Tamara se curvou para ela e se afastou como se entendesse que Marissa queria privacidade.

O único olhar gélido de Marissa para as garotas que brincavam na estátua foi o suficiente para que elas se afastassem imediatamente e fossem junto à Tamara. Marissa curvou seu braço olhando para mim, entendi o recado e posicionei o meu antebraço dentro da abertura que ela fez e nadamos juntas pela praça movimentada.  Ela sorria para todos que passavam ambas sabíamos que aquilo era apenas uma fachada.

— Você sabe que eu reprovo o que fizestes, não é? — ela falou em um tom baixo audível apenas para mim enquanto ainda sorria para todos que passavam.

— Claro, mas não iria deixar eles sentirem dor. — Passei a sorrir também para as pessoas que passavam, mesmo demonstrando ódio nas palavras.

— Querida, você tem que entender que eles estão se prestando a isso, e você não deve interferir...

— Você parece sentir prazer com a dor alheia, sádica — falei sem pensar nas consequências, minha voz se alterou um pouco.

— Você é igual sua mãe, nunca consegue medir o que fala — sua voz saía insensível, seu sorriso sumiu e agora ela apenas encarava o horizonte.

— Você não tem o direito de falar de minha mãe. Não deve nem citá-la em suas conversas — minha voz fraquejou.

Ela ficou sem reação. Seu rosto estava insensível como de costume. Paramos para observar um pouco uma corrida de cavalos marinhos que as sereias de Fertilitais faziam junto com as de Ferox. Ainda com meu braço posto entre os dela, voltamos a nos movimentar pela praça. Marissa tornou a falar dessa vez um pouco mais grossa.

— Vou ser rápida, o meu recado para você, garota, é que não interfira nessa última prova que teremos. Os anciões não estão gostando, muito menos eu. Você não tem obrigação interferir em nada, eu, sim — Marissa mudou de assunto rapidamente, evitando me encarar, sua face estava sem expressões até que uma sereia negra com grandes brincos dourados passou por nós. Ela sorriu para Marissa que também retribuiu o sorriso. — Está vendo isso aqui? — Ela apontou para sua coroa de gelo. — Isso significa que eu mando, e você obedece.

— Pelo contrário, você me obedece. A anciã trabalha em prol das sereias. E eu vou ajudar, sim, independente de você gostar ou não.

— Se ponha no seu lugar, Allysa! — ela brandiu e todos que estavam perto dela fuzilavam-na com olhares arregalados. — E não me chame de sádica, se não mandarei te matar enquanto dorme. — Ela sorriu friamente e soltou seu braço do meu nadando para longe de mim.

Enquanto a vi se distanciar de mim, reforcei mentalmente que deveria ficar de boca fechada perto dela. Aos poucos a praça ia se esvaziando, os tritões iam para as acomodações, enquanto as sereias se juntavam nos Templos do Sono.

 

 

Aquele sobrenome voltava a minha cabeça junto as lembranças de Héclyro. “Fahíerys”. Já sabia de quem era aquele sobrenome, agora só precisava da confirmação. Despistei as damas de companhia e voltei para meu Santuário, precisava de um tempo sozinha. Retirei todos aqueles acessórios e tecidos que me cobriam, só deixei o penteado no cabelo.  Peguei os pergaminhos que estavam ao lado de minha cama e voltei a lê-los.

As luzes mágicas de Neferice foram se apagando aos poucos, já que todos iam dormir. Enrolei os pergaminhos novamente quando a luz se apagou. Precisava ver Héclyro novamente, dessa vez eu que tinha perguntas para fazer.  Fiquei imaginando as possíveis reações que ele teria com as minhas perguntas. Talvez agora mais calma eu tivesse nitidez nas minhas ações.

Ao mesmo tempo em que eu queria me vingar dele, minha curiosidade me fazia ver além daquela raiva dele. Nas noites em que o vi para me vingar, meu corpo se paralisava e talvez matá-lo só iria me fazer sentir pior. 

Meu jeito impulsivo dizia para ir lá, mas minha mente queria dizer não. Héclyro havia aguçado minha curiosidade, queria saber mais dele. Queria entender o motivo de ele mexer tanto comigo, tanto na raiva como em outros sentidos. Passei minhas mãos em meus cabelos tentando tirar esse meu sentimento de erro e foquei no que eu queria: achá-lo.

Sentei-me na cama e usei minha magia para descobrir onde ele estava.  Coloquei minhas mãos em minha testa e busquei minha magia interior. Acessar a sua força interior é o mesmo que tomar um susto, quando ela vem, vem com tudo. Senti minhas veias pulsando e meu coração batendo mais acelerado, meu estômago se embrulhou e minhas brânquias no pescoço se moverem com mais intensidade.

Consegui ver através dos olhos dele e sentir o local onde ele estava. Agora eu sabia sua localização. Senti meu corpo esquentar devido ao uso da magia. Parecia que depois que eu virei a escolhida, meu corpo reagia à mágica com mais força. Como se a magia ficasse mais forte e isso me deixava cansada, principalmente para mim, que sou nova.

Lentamente me levantei até a porta. Com os pergaminhos em mãos, fui nadando por cima das construções da tribo. A visão dos templos vistos de cima era incrível, mesmo com a luz da lua. Neferice era muito grande. Dessa vez, mais calma, eu conseguia ter mais clareza no que perguntar. Minha mente estava pesada e leve ao mesmo tempo, a raiva da noite passada foi substituída por curiosidade, e isso era mais confortável para mim. Ao passar pela Vala do Exílio, novamente vi bolhas subindo daquela grande rachadura, algo naquele lugar me atiçava.

 

 

Quando finalmente cheguei à superfície me escondi atrás de algumas pedras. Vi, bem de longe, Héclyro sentado em uma das rochas que era chicoteada pelas ondas, ele estava de pernas cruzadas e elas pareciam estar molhadas. Usava as mesmas roupas da noite anterior e parecia admirar o horizonte.  Em sua mão estava o mesmo objeto que iluminava o ambiente. Aproximei-me lentamente evitando que ele me visse, era difícil para mim nunca saber quais seriam as ações dele caso eu aparecesse novamente a sua frente.

Nadei até ficar visível para ele, mesmo que ainda com certa distância. Seu rosto se formou em uma expressão distinta. Seus olhos estavam fundos, com olheiras e seus lábios estavam rachados. Ele me observava, mas não dizia nada. Seus cabelos negros bagunçados demonstravam que ele parecia estar cansado. Olhei para sua cintura e procurei a sua espada — não estava lá —, sua coluna estava curvada com ombros caídos.  Encarei-o e deixei que Héclyro puxasse assunto primeiro.

— Você voltou — sua voz saiu fraca com um pouco de surpresa, mas logo depois ele franziu a testa comprimindo os lábios. Ele esfregou as têmporas e massageava os olhos. — Pensei que não viesse mais.

— Pensou? — Levantei uma sobrancelha. Apenas minha cintura estava na superfície, enquanto minha cauda se movimentava dentro da água me mantendo erguida. Meus cabelos caídos tampavam meus seios. Puxei minha mão que estavam com os pergaminhos para fora do mar. Ele encarava os pedaços de algas com escritas com curiosidade, então notei que Héclyro recuou um pouco mais na pedra deixando seus ombros caírem mais um pouco.


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Notas finais do capítulo

Cap: betado por Reet
Sei nem o que dizer, só sentir.
Se verem erros, me avisem por favor.
Obrigado a todos que abriram o capítulo para ler.

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Obrigado por estar acompanhando a história. Continue nadando com a nossa tribo!

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