Águas Obscuras escrita por Alph


Capítulo 2
A cura




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 — Allysa? Allysa? — chamava anciã Marissa aumentando seu tom de voz, enquanto eu me espreguiçava. Ela era uma das sereias mais velhas da tribo, seu cabelo negro descia pelas costas como ondas de um rio selvagem, e por mais que fosse uma sereia antiga, tinha aparência de uma jovem à flor da idade, só um pouco mais velha do que as demais. Pele cor de jambo com muito brilho e sua cauda era tonalizada de um azul pastel gélido como os céus nublados. Seus olhos eram esverdeados. Sua aparência bonita não disfarçava a sua forma sistemática de agir, ela usava um cetro de gelo parecido com diamante. O gelo representava nossa tribo, pois ela estava localizada no extremo norte do Oceano Negro.

— Sim, anciã?! — falei com voz sonolenta, estava quase dormindo.

Tentei recuperar o foco na aula, mas o sono estava maior. O templo de estudos era bem confortável. Ele fica na região norte da tribo, logo depois das duas colunas de Meridia. O templo tinha estruturas arcaicas cheias de corais e sua divisão era em alas com algumas salas: sala de artes, sala de estudo e a sala de projetos. Eu era apaixonada pela sala de projetos, as garotas de lá eram responsáveis por construir os templos da tribo. Eu queria ser desse setor, mas a anciã me achou irresponsável demais e me designou para sala de estudos. Ela disse que eu tinha um propósito em estar na sala de estudos, mas nunca me explicou qual era esse propósito.

— Quem criou o mundo espiritual e mortal? — perguntou ela com um leve desprezo em sua voz. — E se dormir novamente em minhas aulas, você sera expulsa da minha sala. 

— Os deuses? — respondi com outra pergunta sem saber do que se tratava. — Perdão, não vai acontecer novamente.

— Não! Os Arquitetos foram responsáveis pelas criações de tudo e todos, os deuses apenas zelam essas criações — Tamara intrometeu respondendo para que todas as sereias escutassem. Tamara era uma das sereias mais inteligentes e bonitas da geração antepassada, ela era muito branca, tão branca como as geleiras. A íris de seus olhos era preta e sua cauda branca perolada dava luz à sua pele.

— Correto, Tamara. — A anciã nadou de um lado para outro e completou: – Por que está com tanto sono, Allysa?

— Nadei até tarde com os golfinhos no recife. — Quando respondi, todas na sala sorriram. Não entendi a princípio os risos, mas relevei.

— Chega de risada, garotas. E você, Allysa, deveria dar mais atenção às suas responsabilidades e afazeres. — Ela nadou de um lado ao outro ao redor das garotas que estavam despojadas sobre o chão observando a movimentação da anciã. — Agora vamos falar de um assunto mais interessante e que todas já devem saber: a escolhida da tribo que vai me ajudar a coordenar este local. — Revirei meus olhos e suspirei.

— A senhora já suspeita de alguma sereia? — Láfiza, que estava ao meu lado, perguntou. Ela era bonita, muito inteligente e bastante competitiva. Tinha um porte atlético e hidrodinâmico, seu cabelo era enorme como o de todas nós.

— Amanhã virá sereias e tritões de todos os oceanos para a nossa tribo para celebrar a passagem da lua de Hidrazy fazendo seu alinhamento com as três estrelas: Cornalina, a estrela da fertilidade; Adamas, a estrela da resistência e dureza; Berilo, a estrela do sangue, da carne e da alma — disse a anciã com grande importância. — Com a passagem da lua nas estrelas, a luz do Sol será captada, iniciando um evento chamado de Eclipse Solar para os humanos, mas para nós, sereias, esse evento significa o nascimento de uma nova escolhida. Por isso as reformas nos templos, para receber os convidados e a nossa Tribo Neferice continuar uma das potencias mais poderosas dos oceanos. — Ela nadava inquieta olhando para nós. — Então, garotas? Já preparam suas oferendas para amanhã? Já rezaram para Deusa? Vocês sabem que se forem escolhidas, a vida de vocês vai melhorar bastante!

Eu odiava esse festival, nossa vida não iria melhorar se fossemos escolhidas, apenas seriamos tratadas como um objeto. De alguma forma, esse festival era uma lavagem cerebral nas garotas. Preferia me manter calada e não dizer nada a respeito, pois eu iria ser bastante criticada por todas.

Assim a aula procedeu. Depois que a anciã explicou sobre esse acontecimento, as garotas ficaram histéricas e debatiam entre elas sobre o assunto, pressupondo qual das sereias seria a vitoriosa. Isso gerou uma competição que deixou todas estressadas e ansiosas. Quando a aula havia acabado, o Sol estava se pondo e todas as garotas estavam saindo do templo. Fui até Tamara e, com receio, perguntei:

— Por que vocês riram de mim quando falei que estava nadando nos corais?

— Não rimos de você, querida, rimos da sua irresponsabilidade. Todas nós percebemos que tu não tens a mínima capacidade de ser a escolhida da deusa Amidh para gerar uma cria, então você não é uma concorrência — ela falou pouco, mas aquelas poucas palavras cortaram meu corpo como facas, tentei responder, mas nada saiu de minha boca e Tamara foi nadando rumo às amigas dela.

Fiquei pensando no que Tamara havia me dito enquanto nadava para a praça da tribo. Parte de mim sabia que era verdade e minha irresponsabilidade um dia iria me afetar de forma crucial.

 

 

 O Sol se pôs, dando espaço para a Lua cheia brilhar sob as águas gélidas, e isso significava dia de caçada. As sereias ficavam agitadas quando a Lua cheia brilhava, principalmente quando um evento importante estava a vir. Elas ficavam mais bonitas, seu charme aumentava e seus instintos selvagens também. Nossas peles ficam com um brilho incrível e tudo isso indica o início da caçada.

Fomos todas para a superfície onde esperávamos ansiosas para nos alimentarmos. As presas eram os marinheiros. Como nós éramos sereias do frio, os ventos ficavam a nosso favor, e o nosso território atraía os marinheiros como ímã.

Algumas sereias se sentaram nos rochedos e outras ficaram nadando, esperando os marinheiros. Todas estavam lindas como nunca. Brincavam e interagiam umas com as outras até uma caravela se aproximar, fazendo com que aumentasse o nosso apetite carnívoro, desviando os olhares das brincadeiras para a presa, a caravela cheia de marinheiros.

Um barco cheio de musgo em seu casco aproximava-se, estava lotado de homens que fediam a cerveja e carne viva, nós sentíamos o sangue deles pulsando. Aquilo me fazia ficar com água na boca. Em seguida, nos dividimos em grupos. Algumas sereias movimentavam as ondas com seus poderes para que a caravela seguisse um caminho que facilitasse o naufrágio, outras sereias cantavam com suas vozes que ficavam em perfeita sintonia com o som do mar, hipnotizando os marinheiros.

No momento que há perigo, fome ou qualquer tipo de ameaça, nós ativávamos o nosso instinto animal primitivo, que tirava nossa bela aparência, dando vida a um monstro carnívoro, ágil, sagaz e muito resistente. Nossas caudas aumentavam o tamanho, nossa pele ganhava uma resistência extra. As íris se dilatavam ficando pretas como um buraco negro. As unhas tão belas se transformavam em garras afiadas. Os dentes viram presas enormes, o maxilar dobra de tamanho para caber os dentes. As brânquias que ficavam no pescoço cresciam para entrar mais oxigênio na movimentação. As nadadeiras da cauda ficavam mais rígidas, já as dos braços viravam véus que deixavam a aderência da água menor nos nossos corpos. Nossas veias ficavam negras, sobressaindo de nossa pele.

Quando pararam de cantar, iniciou-se o ataque; começamos a quebrar o casco da caravela e pular para dentro dela com muita velocidade, nos rastejando até as presas. Dilacerávamos a carne humana com nossas garras, arrancávamos a cabeça dos homens e comíamos cada parte de seus corpos. Algumas levavam os humanos para o mar e os afogavam na escuridão.

Com um salto da água, pulei no convés da caravela. Batia minha cauda contra a madeira e antes dela se transformar em pernas humanas. Peguei um homem e o arrastei até o mar, enfiando minhas garras em seu pescoço comendo a porção de carne que havia ali. Após alguns minutos, comi toda sua musculatura, deixando apenas o esqueleto e os órgãos boiando no mar.

Quando a caçada acabou, as sereias deixaram os rastros de humanos espalhados e rastejaram pelo convés até voltar à água, que agora estava tingida de vermelho-sangue. A caravela estava despedaçada. Certa de que não havia mais sinais de vida, estava prestes a mergulhar quando escutei gritos. A voz era grossa e muito mais rouca do que a voz de uma sereia.

Aproximei-me de onde vinha o som e o vi.

Em cima de uma placa de madeira flutuante, o corpo pálido de um rapaz moreno se agarrava às beiradas com medo de cair na água. Ao notar que eu me aproximava, sua respiração ficou ofegante e ele tentou afastar a madeira, mas gemeu de dor por conta do frio.

— Saia de perto! — ele pronunciou tremendo o queixo enquanto nadava devagar até ele.

Mergulhei na água e puxei-o pelo pé para dentro do mar. Ele agonizava, balançando as mãos em tentativas tolas de escapar. Quando notei seu desespero, fiquei com pena vendo o quão frágil ele era para enfrentar aquelas águas perigosas. Levei-o de volta à superfície. Ele respirou fundo e ficou ofegando.

O rapaz ficou calado tentando esquivar-se de minhas mãos que apertavam os seus braços, sua face estava assustada e vermelha, e seu queixo tremia demonstrando muito medo. Incrível como ele era frágil comparado a mim, eu podia quebrar seus ossos sem esforço algum, mas fiquei com remorso, pois parecia que ele não estava ali porque queria, ele não demonstrava ser igual aos outros marinheiros. Algo nele me parecia diferente.

— Deixe-me ir — falou de olhos fechados. — Consegue entender o que eu digo? Não me mate, por favor.

Segurei o corpo dele e, com uma força incomum, nadei rapidamente até uma das pedras mais próximas do píer da praia. O joguei sob as rochas enquanto ele se remexia com toda força que tinha para que eu não o tocasse. Quando ele resolveu gritar, coloquei minha mão na sua boca abafando os sons. As outras sereias não poderiam ouvir, ou viriam atrás dele. Balancei a cabeça negativamente posicionando meu dedo indicador na frente dos meus lábios rubros, indicando um gesto de silêncio para ele. Fui soltando-o calmamente até o jovem se recompor.

O rapaz ainda estava assustado com tudo que aconteceu, ele me fuzilava com seus olhos negros como o breu da noite. Joguei meus longos cabelos platinados para trás de minhas costas e observei de relance um ferimento que sangrava no seu pescoço. O machucado era profundo o suficiente para criar uma infecção. O corte estava com o interior negro por causa do veneno das sereias. Tinha três arranhões. Eu sabia o que iria acontecer: o veneno iria matar a carne por dentro e depois pioraria a situação. Para fora do machucado, saía uma pequena quantidade de sangue.

Olhei com cautela para o seu ferimento. Tentei aproximar-me para tocá-lo, mas ele colocou a mão em cima do corte e virou a face para o outro lado. A carne ao redor do ferimento estava começando a ficar branca e as veias mudavam sua tonalidade de azul para preto. Se alguém não cuidasse daquele arranhão, iria ocorrer a putrefação. E não era de simples cuidados que aquele arranhão requeria. Um ferimento feito por sereia só tinha uma forma de ser curado, e eu sabia disso

Tirei a mão dele de seu pescoço com grosseria, ele tentou recuar com frieza, mas segurei-o. Aproximei-me de sua face, desviando meu olhar para o seu ferimento. Movi minha mão até a área ferida tocando-a. Afastei o seu rosto, deixando seu longo pescoço exposto.

As suas expressões de medo mudaram para dor misturada com espanto quando pressionei minha mão em seu machucado. Deixei que meu dom, que era a cura, fluísse pelas minhas veias atingindo a área ferida do homem.  E para selar aquele ferimento, recitei algumas palavras em sussurro deixando que minha magia protege-se o corpo dele. Não que eu precisasse falar alguma coisa para que o poder esvaísse de mim, mas era bom para manter minha concentração. 

 Instantaneamente, a pele que estava branca voltava à sua tonalidade normal. O veneno negro saía dando espaço aos tons azulados de suas veias. A carne foi se trançando até cobrir a região cortada, então seu tecido epitelial fechou o ferimento com minha magia e lá ficou uma pequena marca azul de uma rosa dos ventos.

 Quando levantei meu rosto do seu machucado, percebi que ele me encarava de forma calma e serena após a dor passar.

— C-como você...?

— Essa marca em seu pescoço vai queimar qualquer sereia ou tritão que tentar te matar. Isso lhe livrará da morte caso resolva navegar por nossas águas. — Desci da pedra e voltei para a água, observando o rapaz me olhar com curiosidade.

— Por quê?

— Porque uma criatura já lhe salvou do perigo. É um símbolo de proteção.

Antes que ele fizesse outra pergunta, me afastei e ao tentar mergulhar, ele puxou meu pulso para cima, aflito. Soltei-me da sua mão, e cautelosamente, afundando meu corpo na água enquanto ele gritava coisas como “qual seu nome? Por que me salvou?”, mas ficou sem resposta.


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Notas finais do capítulo

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