Malú escrita por Pauliny Nunes


Capítulo 14
Capítulo 13




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As gotas de chuva molham o vidro da janela do consultório da Dra. Ariadne, sendo observadas atentamente pela jovem que mais uma vez termina a sessão sem escrever nada para a psicóloga.  Ariadne se ajeita na cadeira, observando o perfil da jovem a sua frente, tenta imaginar a dor que Malú sente e que esconde até de si mesma. Não somente a dor física, demonstrada pelos curativos, mas a que está dentro de seu coração.

 — Malú, ainda temos dez minutos antes de terminar a sessão - informa Ariadne, chamando atenção da jovem — Eu gostaria de fazer uma proposta para você.

Malú vira o rosto lentamente em direção a psicóloga. Independente da proposta havia colocado para si que recusaria. Não quer falar a respeito de sua vida e muito menos de seus sentimentos, pois para ela, Ariadne era apenas uma informante de Thiago a quem repassava tudo o que aconteceu nas sessões. Respira fundo e encara a psicóloga com a expressão fechada.

 — Olhe, eu sei exatamente pelo o que está passando... Parece clichê, mas casos como o seu são bem rotineiros e muitos conseguem retomar a vida que tinha normalmente. Mas para que você tenha a sua vida de volta, precisa dar o primeiro passo. Para que eu possa te ajudar, Maria Luísa, você precisa se abrir. 

Maria Luísa pega seu tablet, o liga e calmamente começa a escrever encarando Ariadne. Em seguida vira o tablet onde está escrito:

“Quantas pessoas que você atendeu, voltaram a falar?"

 — Bom... Serei sincera: Você é meu primeiro caso desse tipo, mas li a respeito e acompanho outros iguais ao seus e eles estão tendo uma ótima recuperação - explica Ariadne.  — Mas essa não é a proposta. Gostaria que participasse de um grupo de apoio aos deficientes auditivos e também afônicos, que é o seu caso. Reunimo-nos duas vezes a semana e também aos fins de semana.

Malú encara Ariadne irritada. A psicóloga jamais tivera um paciente com os meus problemas que o dela, como pode garantir que Malúvoltará a falar? . Ela desliga seu tablet e se levanta, olhando para a psicóloga e depois sai do consultório. Se dependesse de Malú, jamais colocaria os pés lá dentro novamente.

 — Como foi à sessão? - pergunta Thiago, não recebendo resposta alguma da filha que passa por ele indo em direção ao estacionamento. Ele olha para a médica que está encostada na porta e pergunta — Aconteceu alguma coisa? Ela falou?

 — Não... Nada de resultados até o momento - responde Ariadne, cansada — Talvez na próxima sessão.

 — Tempo ao tempo, não é? - pergunta Thiago.

 — Tempo ao tempo - afirma Ariadne, fechando a porta logo em seguida. Porém, nem ela mesmo tem tanta certeza assim.

***

Malú chega à mansão e escuta o som do piano pela primeira vez, então se lembra que sua primeira aula de piano é hoje. Respira fundo e vai até a sala de música onde toma um susto ao se deparar com quem está tocando: Ricardo, o fonoaudiólogo que a encara animado. Thiago vai atrás da filha e também fica surpreso com o que vê. Então o fonoaudiólogo para de tocar e se vira para os dois dizendo:

 — Bem vindos a nossa primeira sessão de fonoterapia. – toca algumas teclas criando o final da música do super Nintendo que faz Thiago sorrir — Preparada jovem? Espero que goste de cantar, pois eu tenho um maravilhoso repertório aqui para você.  — finalizando com um sorriso. Malú toca em sua própria garganta. Cantar, com irei cantar se eu estou literalmente sem voz?

 — Bom, então irei me retirar. Espero que tenha sucesso, pois essa mocinha tem dado um verdadeiro baile na psicóloga — revela Thiago mexendo nos cabelos de Malu que bufa.

 — Interessante- exclama o fonobatendo no banco do piano de cauda — Sente-se aqui e me conte o que tem acontecido com você, Maria Luísa. E fale devagar para que eu possa entender.

Malú continua parada no mesmo lugar coçando o braço, nervosa.  Ricardo continua encarando a jovem que evita encará-lo.  Ela acha tudo aquilo desnecessário e só quer voltar ao seu quarto e ler um livro.

 — Maria Luísa, eu sei que tudo isso é bem difícil de processar, mas quero que entenda que a vida segue, com ou sem você. Mesmo você ficando parada no mesmo lugar, estamos caminhando para frente e não tem como você evitar isso. Então, você prefere ficar parada vendo sua vida passar, ou quer reverter essa situação e voltar a tomar suas próprias decisões?Sua atitude não afeta a mim, pois receberei por essa sessão de qualquer forma, mesmo ficando parado aqui sem fazer nada. Aliás, eu até gosto, assim não precisarei fazer esforço algum e ainda saio ganhando. Sua atitude também não afeta sua família, pois não são eles que estão sem voz. Sua atitude afeta apenas a você. Então, você sentará aqui ao meu lado ou irá ficar parada aí na porta? A escolha é sua. Só você tem o poder de fazer seu dia ser produtivo ou um saco.

Malú respira fundo, por mais que não quisesse admitir o que o Ricardo disse é verdade. Ela olha para mão do fonoaudiólogo que está erguida em sua direção e caminha devagar em direção ao banco, onde senta cautelosa.  Ele se vira em direção a Malú sorrindo.

 — Sabia que faria a escolha certa. Agora, eu irei te passar os exercícios que terá de fazer ao dia e na ordem que farei. - explica Ricardo — Primeiro, levante sua mão direita na altura da sua orelha e repita comigo: EU não irei rir do Ricardo fazendo os exercícios.

Malú olha para ele confusa, como iria dizer aquilo se está sem voz? Ela acredita que ele está apenas zoando com a cara dela.

 — EU sei que você não fala – Ricardo respondendo a pergunta mental de Malú— Mas consegue mexer os lábios e eu sou bom com leitura labial — então Malú faz pausadamente o juramento — Ótimo. Agora vamos aos exercícios. Primeiro os articulatórios, são dez exercícios que você fará até a próxima sessão, então eu irei incrementar mais alguns. Exercício um, quero que você repita as seguintes ordens: LA-A, LA-O, LA-U dez vezes e depois, LA-A, LA-E LA-I, dez vezes. Farei e você repete em seguida — Ricardo faz as séries tranquilamente sendo observado por Malú que nota que a língua do médico vai até o céu da boca encostando atrás do dente e a ponta da língua toca os dentes debaixo deslizando e subindo novamente — Agora é a sua vez.

Malú respira fundo encarando o fonoaudiólogo, tem receio de que ria dela fazendo os exercícios, mas coloca em sua cabeça que ele é profissional e sabe do que está fazendo. Abre os lábios devagar e começa a fazer as séries e nenhum som sai de sua boca, então ela força mais na terceira repetição, o que faz com que Ricardo segure em seu ombro e diga:

 — Não precisa forçar, faça como se estivesse falando normalmente.

Malú volta a fazer a série sendo acompanhada por Ricardo que sorri satisfeito com a disciplina da jovem. Ele se arruma no banco:

 — Agora faremos o segundo exercício, mas antes preciso te perguntar: Você fala baleiês?

Malú pega o tablet e escreve:

“Baleiês? Tipo baleiês da Dory do Procurando Nemo?”

 — Exato. Agora nós iremos falar tipo a Dory do filme. Nós iremos fazer bocejo exagerado com cada uma das vogais — explica Ricardo — Não ria - Ele se prepara — AAAAAAAAAAAAAAAAAAAA. EEEEEEEEEEEEEEEE.IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII.OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO.UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU.AAAAAAAAAAAAAAAAAGGOOOOOOOOOOOOOOOORAAAAAAAAAAAA ÉÉÉÉÉÉ AAAAAAA SUUUUUUAAAAA VEEEEEEEZZZ DEEEEEZZ VEZESSSS– Malú segura o riso ao ver Ricardo fazendo o exercício, realmente parecia a Dory em sua frente falando baleiês.

Malú começa a fazer tentando segurar o riso de si mesma, quem diria que um dia estaria aprendendo a falar baleiês. Ela termina e então Ricardo continua dizendo:

 — Terceiro exercício: Abertura total e ampla de boca dez vezes – Ricardo abre a boca em frente à Malú como se fosse engolir a jovem e então fecha — Se escutar um estalo próximo ao seu ouvido e sentir dor pare de fazer o exercício. - finaliza o médico observando Malú fazer o exercício.

 — Quarto Exercício: Abertura total e ampla de boca com movimentos de mandíbula lentos para direita e para a esquerda também dez vezes — Ricardo faz o movimento sendo acompanhado por Malú, então ele segura a cabeça da jovem e diz — Sua cabeça não vai se mexer, apenas a Mandíbula, igual ao T-Rex. Conte direita e esquerda uma vez.

 — Quinto exercício: Mastigação estilo ruminante. – comenta Ricardo que recebe um olhar confuso de Malú— Imagine uma vaca comendo capim, é isso que você vai fazer... Seja a vaca... MIUUUU. Durante um minuto MUUUUU – explica Ricardo imitando uma vaca mastigando, está quase impossível para Malú segurar o riso.

 — Sexto exercício: Vibração de lábios. Deixaremos a vaca de lado e agora iremos imitar o cavalo bufando. Dez vezes potrinha— ordena Ricardo fazendo Malú finalmente rir — Está quebrando nosso juramento.

 — Sétimo exercício: Inflar as bochechas e segurar o ar por dez segundos e dez vezes. Eu sei que nesse você é especialista, aliás, todo adolescente é, pois adoram bufar para os pais.  — comenta Ricardo recebendo um olhar fulminante de Malú.

 — Oitavo exercício: Você vai precisar de uma rolha — diz Ricardo tirando uma do bolso e entregando para Maria Luísa que encara o objeto erguendo a sobrancelha — Você vai introduzir a rolha na sua boca, levemente depois dos dentes, assim — explica Ricardo colocando outra rolha na boca. Então ele tira — Só a pontinha... Desse jeito mesmo — afirma Ricardo observando Malú— Agora quero que me responda às seguintes perguntas: Qual o seu nome completo? Onde você nasceu? Qual sua idade? E quero que responda exagerando na articulação e prestando muita atenção onde sua língua toca. Assim — Ricardo coloca a rolha na boca — Mueunuomei ê Ricaldo... NashienCurichiba ê tienho quarenta e dochanoch. Chua vês. – Malú coloca a rolha na boca e faz o exercício com a mesma dificuldade de Ricardo.

 — Agora os dois últimos exercícios são para trabalhar a língua que também é muito importante em nosso tratamento. Nono exercício: nós iremos brincar de sapinho. Você irá sacar sua língua rápida e em seguida vagarosamente, igual amusica... O sapinho faz é um... É uuuummm... O sapinho faz é um... É uuuummm.  Fará dez vezes.

 — E o último exercício: Você fará um movimento de norte-sul, leste- oeste com a língua. Sem movimentar a cabeça. Fará também dez vezes — diz Ricardo observando Malú fazer o último exercício. Então ele sorri — E terminamos por hoje. Quero que faça todos os dias, duas vezes até a próxima sessão.

“Terminamos?” pergunta Malú que nem notou a hora passar.

 — Ainda temos alguns minutos – alega Ricardo olhando em seu relógio — Nas sessões de fonoterapia também irei introduzir exercícios de canto para que você sempre exercite suas cordas vocais, além da música ser um bom alimento para uma alma, como a sua... Quem sabe com uma boa música você não se solta e libera a voz que está dentro de você. Hoje eu vou dar somente uma palhinha do que programei para você , tenho certeza que irá gostar... Assim como minha filha. - Ele se volta para o piano — Se souber me acompanhe... - começa a tocar uma canção conhecida de Malú.

♫Quem quiser fazer o que ele faz...
E imitar todo o jeitão de ummmm gato viveeer... ♫

Malú sorri, aquela canção lembra quando pediu um gato de presente para sua mãe e Aline.


♫É bicho, vem no embalo que um gato tem
De outra maneira não convém♫


Infelizmente sua mãe era alérgica e não poderia realizar o sonho da filha que ficou triste por não poder ter um gato.

Então Aline e Anna tiveram a ideia de comprar o DVD do Aristogatas para Malú.  E não somente isso, elas aprenderam essa música e se apresentaram para Malú que ria com a performance desastrada das duas.

Para alegria de Anna que há dias tentava fazer a filha sorrir novamente. Aristogatas se tornou o desenho favorito de Malú e era incrível como o fonoaudiólogo pode ter escolhido justamente aquela música. Será que isso é um sinal da minha mãe?

 — Quem quiser ter um bom som... - canta a voz feminina da porta chamando atenção dos dois. Uma jovem de cabelos cacheados pintados de ruivo se aproxima com sua pasta marrom. Ela coloca a pasta na mesa e caminha em direção a eles — Ouça as notas do pistão que dá o sentimento a canção...

 — Eu vou até mudar de tom...  — canta Ricardo tocando novamente o piano — Já senti que isto é bom... Para fazer uma improvisação... Os outros vão se congregar... A sessão vai começar...

 — No seu caso terminar — corrige a ruiva se aproximando do piano. Ela sorri para Malú e continua — Agora é a minha vez de mostrar para Maria Luísa como se faz.

 — Como quiser senhora – concorda Ricardo se levantando do piano. Ele ergue a mão para a mulher — Prazer, Ricardo, sou o fonoaudiólogo da Maria Luísa.

 — Jaqueline – responde à ruiva apertando a mão do médico — Prazer em conhecê-lo. Agora permita que eu toque nesse maravilhoso e raro Essenfelder.

 — Tudo bem. – diz Ricardo se afastando. Ele sorri para Malú— Até a próxima sessão.

Malú sorri de volta para o médico que sai cantarolando o resto da música.  Ela se vira para Jaqueline que passa a mão apreciando o piano com um enorme sorriso no rosto, seus olhos estavam com lágrimas, como se o gesto a emocionasse. Ela se vira para Malú e enxuga as lágrimas:

 — Desculpe-me é que você não sabe o quanto é emocionante ver um desses em perfeito estado – explica Jaqueline tocando os detalhes entalhados no piano vertical de madeira envernizada.  — Essenfelder, esse tipo de piano era fabricado aqui em Curitiba e são consagrados pelo mundo afora por sua qualidade.  Esse deve ser por volta de 1940, 1950...

 — Esse piano é da década de trinta — corrige a matriarca da família que está na porta. Ela segura na maçaneta e continua — Peço por gentileza que termine a aula dentro do horário previsto, pois temos um cronograma a seguir nesta casa, ainda mais a Maria Luísa.

 — Tudo bem - concorda a jovem arrumando as partituras no piano. Ela se levanta e segura nos ombros da jovem e ajeitando a postura da jovem — Em primeiro lugar, tenha uma postura correta, isso irá lhe proteger de futuras lesões e ainda irá melhorar a sua execução.

Jaqueline senta ao lado de Malú que encara todas aquelas teclas, nunca tinha de fato ficado tão próxima de um piano, muitos menos tocado em um.

 — Vamos começar conhecendo o teclado do piano, saber encontrar as notas no teclado é essencial para estudar piano. Então vamos conhecer o teclado. – sugereJaque que logo em seguida segura a mão de Malú e colocando no meio do teclado.  — As notas musicais são apenas doze e vão de Dó a Si, o que acontece é que se subirmos mais que a última nota e voltamos a repetir a primeira nota, mas desta vez uma versão mais aguda.  Esta distância nós chamamos de oitava e ela se repete por todo o teclado. As teclas brancas representam as notas da escala de Dó maior e são elas o Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-Lá-Si.   As teclas pretas representam as notas intermédias, as quais chamamos de acidentes. Estas notas podem ter dois nomes, ou sustenido ou bemol. Isso vai depender se estamos subindo na escala ou descendo. Se formos subir na escala de Dò até Si, a primeira tecla preta irá se chamar Dó Sustenido, a segunda Ré Sustenido e assim em diante. Isso indica que a nota é uma versão aumentada em meio tom da anterior. Se descermos na escala, então estas mesmas notas serão Ré bemol e Mi bemol, que indica que a nota é uma versão diminuída meio tom da anterior. – explica a professora recebendo um olhar perdido de Malú— Bom, a teoria é melhor na prática...  Quero que pegue sua mão direita, seu polegar, o indicativo e o dedo menor e coloque nessas três teclas sempre pulando uma... Isso... - diz Jaqueline recebendo um tom grave do piano — Esse acorde nós chamamos de Dó maior... Toque duas vezes... Isso... Agora jogue seu dedo polegar e o indicativo para o lado esquerdo pulando uma tecla... Isso... Duas vezes também... Agora os três para a esquerda... Isso... Quatro vezes... Isso mesmo... Agora quero que você continue tocando exatamente essa seqüência e irei cantar junto com você. Um... Dois...três...quatro... E vai...

Jaqueline bate palmas para Malú que fica admirada por ter conseguido tocar o refrão de knocking' OnHeaven'sDoor, então sorri para a ruiva que volta para o piano.

 — Agora vamos tocar a música juntas... Um, dois, três, quatro e vai...

 — A Malú lembra muito a senhora no piano — sussurra Adelaide atrás de Maria Luísa que toma um susto com a empregada. Ela termina de fechar a porta por onde estava observando a neta.

 — Isso é jeito de chamar as pessoas, Adelaide? – questiona Maria irritada pela audácia da empregada.

 — Desculpe-me, não percebi que a senhora estava distraída... Sabe é muito bom escutar o som do piano novamente. –comenta a empregada encostando-se à parede perto de Maria — Mas seria muito mais prazeroso se fosse à senhora tocando... Qual o nome daquela música que a senhora tocou em seu noivado com o senhor Alexandre? Era alguma coisa Eliza... Eu sei que era do Mozart, pois a senhora sempre gostou de tocar Mozart.

 — Primeiro, o nome da música é Bagatella In La Minore "Per Elisa”. Segundo, o músico é Beethoven. E terceiro, lembro muito bem do quanto fui humilhada por ter tocado aquele dia, da risada de Alexandre, dos convidados e prometi jamais tocar novamente. Agora que já conseguiu me fazer lembrar o pior dia da minha vida, volte à cozinha e apresse o jantar, pois se não acabaremos é tomando café com a lerdeza de vocês – ordena Maria, irritada.

 — Licença – pede Adelaide se afastando em direção a cozinha.

Maria Luísa volta a abrir uma fresta na porta e observar Malú tocando animada com a professora, automaticamente, a matriarca coloca um leve sorriso nos lábios, pois aquela primeira aula de sua neta lembrava também como foi a sua... Então ela toca os lábios e percebe seu sorriso o desarmando e fechando a porta. Tudo aquilo é bobagem demais para ela.

***

O jantar está quase exatamente como o de todos os dias, Graziela e Vera preenchendo a mesa com suas conversas fúteis, Thiago acenando tranquilamente em direção as duas, Adelaide parada esperando ao primeiro sinal para servir mais alguém e Maria Luísa observando a todos sem dizer nada, mas hoje ela observa sua neta que toca um piano imaginário à mesa, disfarçadamente. Malú podia sentir ainda as teclas embaixo de seus dedos prontas para liberar todos os seus sentimentos mais profundos, se pudesse voltar algum momento de seu dia, seria para a aula de piano. Ela levanta a cabeça e se depara com o olhar curioso de sua avó que se vira para a nora rapidamente.

Assim que o jantar termina, Malú praticamente corre em direção à sala de música, mas é impedida por Maria Luísa que para em frente à porta com os braços cruzados:

 — Agora é hora do sono. Você tem um longo dia amanhã.

“Mas amanhã é sábado” explica Malú no tablet.

 — E você tem que ir a escola aprender Alemão, depois tem pintura e também aula de etiqueta. Eu acho que não preciso te lembrar de suas obrigações, certo? Boa noite, Maria Luísa.

Malú se vira sem escrever boa noite para avó, seu rosto queima como brasa, como sua avó se atreve a lhe tirar a única alegria que teve naquela casa? Entra no quarto e deita na cama, bufando. Vira para um lado e para o outro, está animada demais para dormir, então olha em direção a porta secreta e levanta da cama indo a sua direção. Abre a porta e caminha até a biblioteca. Liga a luz e sorri ao encarar as estantes: Em cada uma tem um livro em destaque e em uma delas um bilhete:

“Esses são os meus favoritos... Leia-os e me diga o que considera sendo o melhor”

Malú retira um por um das estantes e os carrega para o quarto, indicando que sua noite seria longa.

***

A Mansão dos Almeida finalmente é dominada pela escuridão...  Todos os quartos estão com suas luzes apagadas, exceto de Malú, por onde sai uma leve luz do abajur... Na parte térrea, todos os empregados já estão no dormitório e os cômodos com suas luzes desligadas. Porém é possível escutar passos vindos da escada e indo em direção a sala de música. A porta é aberta devagar e então fechada com cuidado.  A luz do abajur que fica ao lado do piano é acesa.

Maria Luísa senta em frente ao seu velho amigo a quem raramente visitava desde aquela fatídica noite. Ela abre o piano que mostra suas teclas conservadas e tão apreciadas por ela quando mais jovem.  Ela coloca seus longos e delicados dedos em cima das teclas, soltando um leve gemido de satisfação por finalmente poder tocar em seu piano sem ter de escutar reclamações e chacotas de seu marido.

“De que me serve uma mulher que sabe tocar piano? Eu preciso de uma mulher que saiba me dar prazer” disse Alexandre naquela noite. Ela vai até a gaveta, onde guardou todas suas partituras. Analisa atentamente as que gostaria de tocar e as leva para o piano.

“Ainda bem que és rica, pois só para os ricos que isso serve de alguma coisa” Maria Luísa começa tocando “Imperatore” de Beethoven, a primeira música que aprendeu a tocar. Mesmo tocando raramente, antes mesmo de seu filho nascer, ela ainda se lembrava de cor e mostrava isso tocando divinamente a música.  Fecha os olhos e deixa seus dedos fazerem sua parte...

É transportada para a primeira vez que conheceu seu professor. Tinha dezesseis anos e sua mãe a achava muito indisciplinada, tinha receio do que os outros diriam de sua filha.  Ele era alguns anos mais velho e disciplinado, sério e a forçava repetir o mesmo acorde várias vezes até chegar à perfeição. Ela tinha vontade de fugir das aulas, às vezes conseguia, se escondendo em sua biblioteca privada. Mas nas outras era torturada a ficar em frente aquele piano junto com ele.  Quando finalmente terminaram Imperatore ela já estava enfeitiçada pela música, mas não somente por ela...

Começa a tocar Allegretto que conseguiu tocar inteira sem um erro sequer... Seu professor sentado ao seu lado, tocando a música junto com ela... Seu perfume inunda suas narinas como aquele dia... Os olhos amendoados de seu professor encontrando os seus... Sorrisos furtivos... Leve toque das mãos durante a troca dos acordes...

Maria passa para a próxima partitura sem olhar, a próxima era de Debussy...  Claire De Lune... Seus lábios tocam os dele no meio da música. Ele a conduz pela música mais bela que já escutou em toda sua vida. Era ele, com toda a confiança dos pais de Maria Luísa que ia buscá-la na escola a levando diretamente para casa... Mas com o tempo foram atrasando cada vez mais, alheios ao amor que sentiam um pelo outro... Amor que crescia a cada música... O desejo de Maria Luísa aumentava cada vez mais... Precisava vê-lo a todo o momento.

Abre os olhos e troca de partitura... Al Chiaro Di Luna, seus dedos encontram as notas com cuidado, entristecidos... Sua última aula de música com ele... Sua mãe desconfiava dos dois e era inadmissível que ela se envolvesse com um homem sem títulos, ou posse... Não, ela não foi criada para se casar com um serviçal, mas com um homem da sociedade... Os acordes frios tristes que ela tocou naquele dia para o seu querido professor... Era o fim... Lembra dele fechando a porta da sala de música sem escutar a música até o final... Ela não conseguiu se afastar do piano e correr até ele, se declarar... Nem poderia... Não era certo. Aquilo não deveria ter acontecido...

Lágrimas escorrem do rosto de Maria Luísa em direção ao piano, seus dedos tocam as teclas mais frios e precisos... Precisa ser forte...

Escuta o ranger da porta que a faz tirar seus dedos rapidamente do piano, enquanto seus olhos encaram os olhos azuis de Malú que não esperava encontrar sua avó tocando o piano. Escutou as doces melodias do quarto e veio descobrir quem era, mas ela era a última pessoa que esperava encontrar. As duas se encaram paralisadas.  Então Maria Luísa se volta para o piano e continua tocando como se Malú não estivesse ali. A jovem se aproxima e senta ao lado da avó, observando os dedos ágeis da matriarca tocando o teclado como se tivesse nascido para aquilo, despejando toda dor de sua alma.  Ela termina a música, deixando suas mãos em cima do piano por alguns instantes enquanto seus olhos se mantém fechados. Então ela os abre e fecha o piano com todo carinho, deslizando sua mão. Ela encara sua neta que a observa curiosa.

 — Está na hora de irmos dormir – comenta Maria que se levanta, caminhando até a porta — Amanhã será um longo dia.

Malú escuta a porta fechar enquanto encara a partitura com o nome de Beethoven, já sabe o que irá pedir para a professora em sua próxima aula.


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