A Diferentona escrita por Glauber Oliveira


Capítulo 8
Festa da Humilhação




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 Não demoro a me arrumar. Mantenho o coque frouxo e os óculos, visto um jeans claro, uma cardigã por cima de uma blusa branca e calço meu velho par de tênis All Star.

 Pego o carro dos meus avós emprestado e vou para a festa de Virginia. Chego lá por volta das 20h. Atravesso enormes portões de ferro que rangem de modo assustador ao se abrirem, como fosse a entrada para o inferno.  Estaciono em frente à mansão, junto de outros automóveis. Desço do veículo. A música é tão alta que já consigo ouvi-la daqui de fora. Ando até a porta da residência e aperto a campainha. Virginia me recepciona, animada, segurando um copo vermelho de plástico. Ela está belíssima. Cabelos volumosos, vestido preto tomara que caia realçando seus seios e a cintura fina, sem contar a maquiagem impecável.

— Emily! Que bom que veio! Entre e fique a vontade! Tem ponche de frutas vermelhas batizado com gasolina bem ali. – Ela aponta para a mesa com uma grande tigela cheia da bebida, onde um pessoal se serve utilizando uma concha. – Nos falamos daqui a pouco.

— Tudo bem – digo vendo McBitch desaparecer na multidão

  Por dentro, a música está ensurdecedora e há gente em todo lugar. A maioria, popular e descolada. Meu Deus, esse não é meu mundo. Sinto-me completamente deslocada e sufocada. Preciso de ar fresco. Disparo sentido o jardim dos fundos. Do lado de fora está melhor, mas ainda lotado. Principalmente a piscina. Suspiro, aliviada.

De repente, avisto duas figuras conhecidas: Bart e Laquisha. Os dois riem e bebem perto de uma árvore, quase que escondidos.

­– O que estão fazendo aqui? – questiono, me aproximando, incrédula. – Vocês não foram convidados!

— Eu, hein! Tá com inveja porque não é a única de nós a ter vindo? – ele pergunta.

— Claro que não! Fique até mais confortável com a presença de vocês. Mas como entraram aqui?

— Pulamos o muro – Laquisha explica. – A segurança daqui é fraca demais.

— Espera. Vocês não iam ficar em casa?

— A gente ia até que minha avó nos flagrou roubando a peruca dela e nos expulsou – ela conta.

— E se a Virginia os vir?

— Tarde demais – Bart fala, olhando algo atrás de mim. Viro-me e vejo McBitch e Greta vindo até nós. – Finja que não somos amigos! Seja uma atriz! Esse é seu momento!

 Penso rápido e a única coisa que sai de minha boca é:

— Eu já falei que não quero comprar seus produtos Jequiti! – Torço para que Virginia tenha ouvido e acreditado.

— Esses otários estão te incomodando, Emily? – indaga Virginia.

— Totalmente – enceno.

— Olha só quem chegou das favelas de Clichésville – ela comenta, com um semblante de desprezo.

— As pobretonas de Clichésville – Greta acrescenta.

— Olha só quem é a anfitriã: o bebê de Rosemary – diz Laquisha.

— E junto veio a pirigospel que na hora de rezar, acende a vela com o fogo do rabo – Bart ajuda com as ofensas.

— Vocês não foram convidados – McBitch adverte.

— Mas viemos do mesmo jeito porque somos rebeldes e não seguimos os demais – justifica Laquisha.

— Pois os demais estão aqui – Greta fala.

— A gente é rebelde, mas nem tanto – ela diz.

— Para ficarem aqui, vocês não podem usar as roupas que as suas mães compraram no brechó. – Virginia os mede dos pés a cabeça.

— Eu não acredito que ela quer falar da mamãe. – Bart dá um giro, as mão ao alto, como estivesse se preparando para uma briga.

— Se é pra botar a mãe no meio, então vamos botar. – Laquisha se prepara. - Sua mãe é tão velha, que dormindo parece um fóssil.

— Ah, é? Sua mãe é tão gorda que ela usa um extintor como desodorante – McBitch retruca.

— Sua mãe é tão larga que o ginecologista dela precisa de um GPS – ele também a insulta.

— Suas mães são tão pobres que tiveram de cortar os próprios braços para alimentar vocês – Virginia fala.

— E os peitos da sua mãe são tão falsos que quando ela foi te amamentar, saiu pedra em vez de leite – Laquisha finaliza com chave de ouro.

McBitch cora de raiva.

— Ok, vocês venceram dessa vez, por isso, podem ficar – ela diz meio envergonhada, no entanto, completamente orgulhosa. – Só que agora, estão entre os primeiros da minha lista negra. É melhor se cuidarem. Beijinhos. Vamos, meninas.

 Sigo Virginia e Greta, porém viro o rosto rapidamente para Bart e Laquisha com uma expressão de “pisa menos, gente, eu imploro”. Ambos brindam, possuindo um sorriso glorioso estampado em seus rostos.

 Paramos no salão da mansão assim que Virginia encontra James Tripé.

— Oi, gata – ele diz, beijando-a em seguida. Sinto uma leve pontada no meu orifício anal. Deve ser inveja. –Oi, Greta. Oi, Emily! Não sabia que estaria aqui.

— Ah, vocês se conhecem? – McBitch pergunta, não parecendo tão surpresa.

— Sim – James responde. – Temos biologia juntos. E ela concordou em me ajudar na matéria para eu não ser expulso do time de futebol.

— Muito legal da sua parte – Virginia me diz. – Não me lembro de ter me contado isso.

— Não achei fosse importante – me justifico. – É só biologia.

— E o que vocês estão estudando? – ela questiona, desconfiada. – Anatomia? Reprodução?

— Emily ainda não começou a me ajudar – ele explica.

— Falando em anatomia, Emily, para que lado você acha que o enorme órgão genital do meu namorado fica melhor? Esquerda ou direita? – Os olhos de Virginia se arregalam num olhar psicótico. Meu pelos pubianos se ouriçam de medo, quase formando um moicano.

 Greta segura uma risada.

— E-eu não sei – gaguejo nervosa. – Se me dão licença, preciso ir ao banheiro.

  Afasto-me dos três. Enquanto subo a escadaria correndo, ouço James falar:

— O que foi isso? Você perdeu a noção?

 No andar de cima, em um corredor, paro e apoio as costas numa parede. Ofego apavorada. Ela sabe que eu gosto dele, penso. Ou pelo menos desconfia. O que estou fazendo aqui? Viro o rosto para o lado esquerdo, em direção a uma porta no fim do corredor, que dá para o quarto McBitch. O Livro do Arregaço, lembro o motivo de estar nesse lugar. Só pode estar lá. E se não estiver, será aonde vou começar a vasculhar.

 Entro no dormitório, e para minha surpresa, dou de cara com Karina sentada na beira da cama, fazendo carinho em gato preto deitado sobre seu colo. Ela aparenta estar triste.

— Oi, Karina – digo fechando a porta. – O que faz aqui?

— Nada – ela responde. – Eu só estou meio chateada, então decidi ficar sozinha com a Nicole, a gata da Virginia.

— E por que está chateada?

— Todo mundo diz que eu sou burra. Você acha que eu sou?

 Sim.

— Claro que não! Na verdade, acho que sua forma de pensar é apenas diferente da dos demais. Além disso, aposto que você tem algum talento especial.

— Eu consigo enfiar o punho inteiro na vagina. Quer ver?

— Não! Tem outro talento?

— Eu tenho “peitonições”.

— O que é isso?

— São como premonições, só que com os peitos. Eles tremem toda vez antes de alguém morrer. A gente que tem o peito sensível sente, não é, Nicole?

— Uau! Você poderia usar seu talento para salvar essas pessoas.

— O problema é que eu não sei exatamente quem vai morrer. Só sei que alguém vai.

— Entendi – digo. Droga. Preciso fazer essa vidente com bolas de cristal no lugar das tetas cair fora para eu encontrar o livro. Invento uma mentira qualquer: – Karina, você pode buscar uma bebida para mim, por favor? É que eu dancei demais e minhas pernas estão doendo.

— Eu bem que gostaria, mas a Nicole adormeceu e não quero acordá-la. – Subitamente, seu corpo vibra. Ela segura os seios com as duas mãos, quase que os massageando. – Alguém vai bater as botas e provavelmente vai ser aqui.

 Dane-se o livro.

— Quer saber? Eu mesma vou pegar alguma coisa pra tomar. – Retiro-me do quarto o mais depressa possível.

 Volto para o andar debaixo e trombo com Bart.

— Cadê a Laquisha? – indago.

— Sei lá – ele responde. – Deve estar esfarelando a raba no chão em algum canto. E o livro?

— Não achei. Tenho quase certeza de que está no quarto da Virginia. Eu fui lá, mas a Karina tinha chegado antes. Aí ela me veio com uma história de peitos e gente morta, e acabei fugindo dali, apavorada.

— Relaxa, garota! Você leva tudo a sério demais. Aproveite a festa. E não olha agora, mas tem um cara muito gato te observando.

— Que cara? - giro a cabeça sutilmente igual à garota do Exorcista e miro num rapaz do outro lado do salão, encostado na parede, segurando um copo. Ele usa uma jaqueta de couro preta por cima de uma camisa branca. Pendurada na gola está um óculos escuro de aviador e atrás da orelha esquerda há um cigarro. O brilho de seu cabelo quase me cega de tanto gel ou qualquer que seja o produto que ele passe. – Aquele ali com pinta de Bad Boy dos anos cinquenta?

— Esse mesmo – Bart confirma.

— Ele nem é tão gato assim – minto. Na verdade, ele é tão bonito que meus lábios vaginais tremem a ponto de cantarem um rap da Nick Minaj. – E nunca o vi antes. Quem é ele?

— Um novato, assim com você. Não sei seu nome, apenas sei que chegou ontem na cidade. Ele deve ser bem mau.

— Por quê?

— Por causa da jaqueta, dã! Você nunca ouviu falar do poder de uma? Quando você a veste, automaticamente fica poderoso. Alguns ficam maus, outros, populares. A questão é que as pessoas começam a te respeitar.

— E por que você não usa?

— Eu já tentei, mas não deu certo. Você não escolhe a jaqueta para ser poderoso, ela que te escolhe.

— Pois ele me parece um babaca. Já não fui com a cara dele.

— Por qual motivo?

— Nenhum! Só que essa é minha história e eu não posso gostar dele agora. O cara é um Bad Boy e eu, a nerd impopular. Somos completamente o oposto do outro!

— Se você diz... Vou procurar Laquisha.

— Tudo bem.

 Bart me deixa sozinha e o desconforto retorna. Procuro pelo novato, entretanto, ele some do lugar de onde estava. Misterioso. Que excitante. Resolvo ir ao quintal dos fundos na tentativa de encontrar o garoto da jaqueta. Nenhum sinal dele.

— Oi! – ouço uma voz masculina nada familiar. Seria o Bad Boy? Dou meia volta e me deparo com um rapaz, porém não é ele. O dono dessa voz é bem maior, bonito até, e usa uma jaqueta, mas não é de couro e sim do time de futebol da escola. Não me recordo de tê-lo visto alguma vez. – Meu nome é Eddie. O seu é...?

— Emily – respondo.

— Prazer, Emily – ele me cumprimenta. – Eu te vi sozinha e pensei se você não gostaria de companhia.

— Claro! Por que não?

— Ótimo! Você quer uma bebida para refrescar?

— Quero sim.

— Certo. Vou buscá-lo para você.

 Retiro o celular do bolso e digito uma mensagem para Bart e Laquisha:

“Um cara veio falar comigo! Dá pra acreditar?”

 No momento em que Eddie retorna, ele não está segurando um copo de ponche de frutas vermelhas e sim a tigela. Com um sorriso malicioso, ele despeja toda a bebida em cima de mim. Encharcada, atraio a atenção de todos ao redor que começam a gargalhar. Eles tiram foto e gravam vídeos com seus telefones. Meus olhos se enchem de lágrimas.

— Por que você fez isso? - pergunto a Eddie, aos prantos.

— Porque você quis uma bebida para refrescar, não foi? – ele diz, rindo.

 Subitamente, Virginia surge aparentemente espantada com a situação.

— Idiota! Vaza da minha festa! – McBitch empurra Eddie, furiosa, e se dirige a mim. – Emily, você está bem? Não se preocupe, vamos trocar essa roupa.  – Ela envolve um dos braços ao redor de mim e me guia até o andar de cima. Pelo caminho, recebo dezenas de olhares. Alguns se divertem com o acontecimento, outros ficam perplexos, com pena. Entramos em um dos banheiros da mansão. Assim que Virginia fecha a porta, sua expressão muda. – Gostou do meu presente? – ela pergunta maldosamente, referindo-se ao banho de ponche que acabei de levar.

— O quê? Foi você que planejou isso? Por quê?

— Porque eu sei que você é afim do James. Lembra-se da festa do pijama? Enquanto você atendia uma ligação e fazia cocô, eu e as meninas mexemos na sua mochila e encontramos isso: - Ela segura o celular na diante de mim. Na tela há uma foto de uma página do meu caderno escrito “Emily + James Tripé” dentro de um coração desenhado.  – Então aqui vai um aviso: não mexa com o que é meu, vadia, porque eu consigo ser pior do que fui hoje. Agora, cai fora. Se perguntarem por que você continua com esses trapos, diga que minhas roupas não serviram.

— Isso não vai ficar assim.

— O que você vai fazer? Sair correndo e chorando?

 Saio correndo e chorando.

 Atravesso novamente os olhares curiosos durante a trajetória até a saída. No meio do caminho, encontro com Bart, Laquisa e James, que não estavam no momento da humilhação. Os três me indagam sobre o que houve, mas desvio deles, os ignorando.

 Chego ao carro, onde desabo por completo.

* * *

  Em casa, encontro-me em pé, de costas para a porta fechada, tremendo de frio e pingando ponche de frutas vermelhas. Estou tão ensopada que talvez não dê para perceber que chorei. Minhas lágrimas se misturaram com a bebida. Deparo-me coma imagem de meu avô na sala, sentado em sua poltrona, vendo pornô na TV. Assim que nota minha presença, ele se levanta, de olhos vidrados.

— Eu não acredito nisso! – ele diz chocado e chama minha avó: – Querida, venha aqui, imediatamente!

— O que foi? – ela indaga descendo as escadas.

— A cretina está sujando o nosso tapete! – vovô fala gesticulando para mim.

— Meu Deus, garota, isso é um cosplay de Carrie, a estranha? Vamos ter que usar um absorvente gigante pra limpar essa bagunça.


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