Queridas Infinitudes Opacas escrita por Policromo


Capítulo 1
Enfim você


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Miro seu corpo esguio sentar-se sobre um dos degraus da escada. Um cigarro descansa entre seus dedos. Seus olhos se erguem — apenas um pouco — para observarem a imensidão celeste estendida sobre si. Tudo em você é tão contido, tão elegante. Mas a forma como você aperta seus pulsos e morde o lábio inferior lhe sugere insegurança. Não faz mal, eu também sou assim. Sinto outra dor lancinante nos ombros. Talvez eu seja a reencarnação de Atlas.

Nossos olhos quase se encontram quando você os afasta do céu. Sinto meu coração pulsar ainda mais rápido e minha respiração sufocando-me por um milésimo de segundo, mas logo toda essa agonia passa quando você apenas volta a encarar o vazio atrás de mim. A  melancolia o constrói. A postura impecável o torna tão forte…

Você traga o fumo e depois de alguns segundos o solta pelo ar, a fumaça espiralando num arco que desaparece aos poucos. Percebo-me tão incontrolavelmente apaixonado, por mais clichê que isso possa parecer. Tudo em você é tão belo, tão extraordinário! Adoro o jeito como você suspira, como as madeixas pálidas de seu cabelo balançam conforme o sussurro tímido do vento. Todos os dias vejo você sentar-se sobre essa mesma escada no mesmo horário, em plena meia-noite. Tenho tanta vontade de beijar a curva de seu pescoço, o lóbulo de sua orelha, os diversos sinais espalhados em seu rosto. Sua pele morena, como um todo, deixa-me arrepiado. Mas apenas observo-te como se fosse um paraíso perdido, intocável.

Você se levanta, com a guimba do cigarro jogada no chão e pisada pelo seu pé. Minha garganta é uma mistura de medo e bile e ansiedade, escalando minha traqueia e arranhando-a durante o percurso. Fecho meus punhos e ponho tanta pressão neles que sinto minhas unhas contra a palma e libertando sangue. Deve ser hoje. Preciso dizer a ele.

Com passos duros, saio detrás da moita com suas folhas secas e surjo em seu campo de visão. Você me olha enquanto desce as escadas, e posso sentir seu medo em perceber que, sim, a rua está completamente vazia e você se vê cercado por um estranho. Mas não consigo dizer nada, pois estou absorto demais mirando seus belos olhos. Eles são uma imensidão castanha, lindos e maravilhosamente profundos.

Quer alguma coisa?

Sua voz desperta-me dos devaneios.

N-Não é nada! Cada sílaba minha parece atropelar as demais, formando uma frase quase que indecifrável. Percebo algo escorrendo de minhas mãos. Era sangue. Escondo-as no bolso de meu casaco rapidamente. Só queria... Te conhecer.

Ah Ele era de uma beleza comum, porém estranhamente única. O som de sua voz parecia um cântico das misteriosas histórias fantasiosas que tanto já escutara. Bem súbito isso, não?

Bem, é que eu já o tinha visto antes Eu me sentia patético. Ali, com as mãos sangrando dentro do bolso do casaco, o suor escorrendo pelo rosto e o cheiro do perfume barato contornando-me. , então queria... Falar com você.

Antes quando? ele perguntou, desconfiado. Droga, droga, droga! Ele descobriria, sem dúvida que sim. Descobriria que desde o mês retrasado, em agosto, que eu apreciava sua imagem franzina por trás das moitas de flores com espinhos traiçoeiros.

Desde... Alguns minutos. menti. Uma mentira amadora e facilmente detectável, a julgar pelo meu nervosismo. Tentei mudar de assunto. Você fica muito por aqui?

É, bem… Aqui era onde eu costumava ficar com ele até que... Você franze a testa, e leva uma das mãos à têmpora como se sofresse de uma forte dor de cabeça. Quer saber? Isso não importa.

Então os últimos degraus são percorridos e você agora encara-me a alguns centímetros de distância. Sua cabeleira, meio cor de mel, meio grisalha, emana um refrescante cheiro de morango e tabaco.

Sinto muito.

Não sinta. Sua voz ríspida espeta meu coração, fazendo com que eu solte uma exclamação de dor em meu íntimo. Ele não vai mais voltar.

Silêncio. Desconfortante.

O que aconteceu? resolvo perguntar, ignorando todos os alertas de "não faça perguntas!" em minha mente.

Você suspira, mas parece assentir.

Acho que não custa nada contar.

Vejo suas costas e logo em seguida você volta a se sentar na escada. Há um espaço reservado ao seu lado, e me dirijo a ele. Minha respiração sai entrecortada pelo fluxo insano de pensamentos que percorrem minha mente. Será que foi o certo a fazer? Será que o melhor não devia ser esquecê-lo? Eu já provocara tanta dor…

Bem você começou. Guilherme era o nome dele. Nós éramos inimigos de escola. Pelo menos, eu achava que fôssemos. Implicávamos um com o outro o tempo inteiro. Éramos vizinhos, o que só acirrava nossa situação. Não sei bem o porquê de tanta rivalidade. Só sei que, assim que o vi pela primeira vez, ainda criança, aconteceu algo em mim que nunca havia sentido antes. Com medo de não saber o que de fato era aquele sentimento, tornei quase impossível nossa convivência. Eu comecei toda a briga, e ele apenas retribuía as afrontas. Certo dia, quando já estávamos em nosso último ano do Ensino Médio, ele desafiou-me a beijá-lo. Eu simplesmente não acreditei. O que ele estava querendo com aquilo? Não fazia sentido. Éramos garotos e, mais do que isso, inimigos.

Você faz uma pausa. Outro silêncio instala-se entre nós enquanto você pega outro cigarro do bolso de sua calça jeans gasta. Acende o papel. Inala a nicotina. Apenas observo seu perfil belamente esculpido. Seu abdômen era todo respiração e movimentos.

Mas eu o beijei. Sua voz surge outra vez. Quando ele me propôs esse desafio, depois da surpresa, sequer pensei nas consequências. Eu não sabia o que estava fazendo em meio àquela escuridão que era meu quarto. Apenas ficamos lá, trocando milhares de beijos, até que enfim... Fizemos sexo pela primeira vez. Posso sentir a vergonha em seu rosto, ao mesmo tempo em que vislumbro um sorriso nostálgico nele. Também consigo abrir um sorriso.  E depois dessa vez, vieram outras e mais outras. Até que nos formamos. Conseguimos manter a nossa superficial rivalidade, mas não por muito tempo. Fomos para uma festa algumas semanas antes de irmos à faculdade, e acabamos nos embebedando. Alguém sóbrio viu a gente se beijando, e no dia seguinte a notícia se espalhou por toda a vizinhança. Os pais de Guilherme o expulsaram de casa, mas eu não queria perdê-lo, sabe? Larguei tudo o que tinha e fugi no meio da noite. Saímos juntos da cidade e nos mudamos para São Paulo. Apenas indigentes em meio a toda àquela merda. Totalmente perdidos. Só tínhamos um ao outro.

O filtro de seu cigarro enfim queimara, e você o jogou outra vez, dessa vez no chão da sarjeta. Você olha para mim por um breve instante, e sinto meu coração pulsar freneticamente outra vez.

Uma noite, quando nos hospedamos num motel e vários jornais abertos na sessão de emprego se acumulavam na mesa do canto, ele me disse que estava muito cansado. E eu disse que, obviamente, nós dois estávamos muito cansados. E Guilherme começou a retrucar, dizendo que não estava suportando aquela situação. E brigamos, tal como fizemos tantas vezes no colegial. Quando dormi, de costas para ele, no dia seguinte Guilherme não estava na cama. E ele sempre tinha dificuldade para acordar cedo. Por isso que, quando não o vi ali ao meu lado às seis da manhã, não sabia o que estava acontecendo. Quando me levantei, havia um bilhete sobre um dos vários jornais em cima da mesa. Dizia mais ou menos: "Fui embora, Tiago. Mas eu sempre te amarei, e espero que você seja muito, muito feliz."

Uma lágrima sequer escorreu de seu rosto enquanto você me contava essa história. Muito pelo contrário; quando chegou a essa parte, seu olhar endureceu-se e seus lábios ficaram tremendamente retos. Podia sentir a amargura emanando de seu peito, e a rigidez transformando-te em pedra. Senti dor.

O que você fez? perguntei, mais pelo receio de ficar tanto tempo sem ouvir sua voz.

Voltei para casa, engolindo todo o meu orgulho, é claro. Meus pais haviam perdido a esperança em me encontrar depois de seis meses, mas voltei. Não foram as boas-vindas mais receptivas do mundo. Fiz exame para o vestibular depois de um tempo e passei para a faculdade que queria. Depois de quatro anos me formei em Direito, mas nunca exerci a profissão. Recebi o diploma porque meus pais queriam. Desde então, acho que nunca mais fui o mesmo. Estive infeliz durante muitos anos. Hoje, apenas me conformo. Fez outra breve pausa, e concluiu: Não vejo Guilherme há trinta e dois anos.

Tirei as mãos do bolso. Elas estavam com filetes de sangue seco na palma, mas você não pareceu ligar. Em vez disso, apenas se levantou e puxou outro cigarro do bolso. Meteu-o na boca logo em seguida, mas não o acendeu.

Está muito tarde. Preciso voltar.

Tudo bem O nervosismo e o desejo ainda encontravam-se em mim ao mirá-lo. Eu tive tanta vontade de abraçá-lo. De sentir suas mechas de cabelo entrelaçando meus dedos, de sua respiração cálida em meu pescoço, de seus beijos agridoces e com cheiro de tabaco. Eu queria sentir tudo isso, mas não tive coragem. Boa noite, Tiago.

Você olha para mim, perdido, como se enfim notasse minha existência. Por um segundo pareceu que iria dizer alguma coisa, mas ficou calado. Seus olhos voltam a ficar vazios e suas mãos levam o isqueiro para a ponta de seu cigarro.

Boa noite. E vai embora, virando uma criatura pequena e fora de foco enquanto andava ao longe até desaparecer de vista.

Eu queria tanto dizer que eu me arrependia. Queria tanto dizer o quanto eu te amava, e que eu me sentia incompleto desde que nossos caminhos divergiram um do outro. Dizer que fora tão difícil te achar depois de trinta e dois anos, mas que enfim eu havia te encontrado, meu amor. E que agora seríamos felizes juntos. Para sempre.

Mas não tive coragem.

Levantei-me do degrau, e pude sentir meu corpo todo tremendo de nervosismo. Eu o amava tanto, tanto. Andei sem rumo, de volta para o meu falso lar.

Jamais te encontrei outra vez.


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Notas finais do capítulo

:(



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