Avatar: A Lenda de Kyoshi escrita por Lucas Hansen


Capítulo 8
VII - O Sonho de Trevas




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Sukishi reencontrou sua filha com deleite, e apesar de Myoshi também estar feliz em revê-la, não demonstrou tão bem. 

― Que saudades minha filha! Pensei que nunca mais te veria... ― Ela disse, entusiasmada. 

― É, claro. Eu também estava com saudades. 

― Como foi sua viagem? Fez tudo que queria fazer? ― Ela sorria, e Myoshi não compartilhava desse sorriso. 

― Foi boa mãe. ― Respondeu, se desvincilhando dela. ― Se não se importa mãe, vou cuidar do Bicudo e dormir. Estou com muito sono... 

― É... Tudo bem. 

E Myoshi levou o animal ferido para um cômodo de terra feito as pressas nos túneis da Resistência. A cama feita para Myoshi era apenas palha. Não podia reclamar, era mais do que teve durante muitos meses. 

A perna de Bicudo gotejava de sangue. Retirou as próprias vestes do seu tronco para limpar o ferimento, deixando apenas uma leve vestimenta de linho que cobria suas costas e busto. 

Bicudo gemia enquanto ela passava a roupa pesada e verde que retirou. 

― Só quero que você melhore, Bicudo! 

Ele guinchou novamente, mas menos com um ar de dor e mais com um ar de irritação. 

― Não adianta. Não vou parar. 

Bicudo deixava a perna ferida dobrada, sem encostar no solo, com medo de apoiá-la. Não era o sangramento em si que a preocupava, mas sim o fato de que a perna de Bicudo havia quebrado. 

Daria tudo nesse momento para ser uma dobradora de ossos, e não de terra, para poder endireitar a perna de Bicudo e vê-lo correndo novamente. 

Com relutância do animal, Myoshi encostou-o na parede para que ele pudesse apoiar-se sem a perna quebrada, e talvez, até mesmo dormir. 

A mente lotada de remorso, Myoshi foi deitar-se. 

Seus pensamentos encheram sua cabeça. Pensou no pai, e em seu sacrifício para salvar a família. Pensou na mãe, e na vida feliz que levavam plantando e colhendo anos atrás. Pensou em Kyoshi, e na garotinha de olhar carinhoso que era ela antes. Pensou em Bicudo e tudo que passaram juntos, desde suas viagens a Ba Sing Se até o Deserto Si Wong. 

Por um momento, temeu que sua cabeça não a deixaria dormir, mas enfim, o sono a levou. 

Estava na terra. Não havia nada ao seu redor, a não ser grama, árvores e o próprio ar. 

O céu era um negrume sombrio, que aparentava enegrecer cada local que a escuridão tocava, como trevas impregnadas no solo, no vento, nas árvores... 

Em contradição, as estrelas brilhavam intensamente, lutando contra a vasta escuridão. Mas não eram suficientes. 

A terra tremeu. E continuou. Sentiu, abaixo de seus pés, um desmoronamento interno do solo, e gritos de pavor desesperados por um suspiro de ar. Dentre eles, distinguiu o guincho de Bicudo. 

Assim como começou, a terra deixou de tremer, e com o fim do terremoto, os gritos também cessaram. 

Um ser minúsculo apareceu em sua frente. Não era humano, mas não sabia o que era. Era extremamente negro, e percebeu que não era do céu que as trevas emanavam, e sim desse pequeno ser. 

Os olhos brilhavam vermelhos de malícia, e em um pulo decidido, o pequeno ser bípede se colocou em posição de batalha. 

Antes, não havia nada ao seu redor. Mas agora Myoshi notara que vilarejos, cidades e fazendas rodeavam-na, tão pequenas quanto o ser, dando a impressão de que Myoshi era uma gigante que vislumbrava tudo dos céus. 

O desconhecido de trevas esmagava cada vilarejo, cidade e fazenda com rochas que o próprio dobrava, e com cada local destruído, o ser crescia cada vez mais, até ficar do tamanho de Myoshi. 

Antes, apenas uma criança que não exalava temor, o ser escuro agora era a coisa mais ameaçadora que Myoshi já vira. 

De suas costas, saíam tentáculos, tão negros quanto o próprio ser. Os braços esticavam-se longos como os de um macaco-cobra, e as pernas eram fortes e musculosas. 

Diante de todos esses fatores, o que mais fez um frio atravessar a espinha de Myoshi eram os olhos vermelhos e profundos do ser, que penetravam sua alma e queimavam-na por dentro. 

― Sai daqui... ― Disse, desesperada. 

O ser riu. E sua risada rouca ecoou pelo mundo afora, e nem mesmo o vento resolveu desafiá-lo. 

― SAI DAQUI! ― Gritou, e dessa vez, o ser recuou, pois a terra recomeçou a tremer. 

Entre os dois, uma enorme fenda se abriu, e dela o fogo exalou, separando-os para sempre. 

O fogo se alastrou, e engoliu Myoshi como um sopro de ar fresco. Não sentiu queimá-la, não sentiu o fervor, não sentiu muito menos o calor. As chamas eram reconfortantes, e a iluminava por dentro, expulsando a escuridão para fora.

Quando deu por si, percebeu que o fogo a elevava para o alto, até os astros brilhantes. Iluminada pelas estrelas e vendo a terra bem abaixo dos seus pés que flutuavam, Myoshi viu-se cercada de inúmeras pessoas de olhos fechados. Uma mais distinta do que a outra, com aparências extravagantes. 

― Quem são vocês? ― Perguntou, insegura. 

Vozes grossas responderam ao mesmo tempo. Não vieram de nenhuma pessoa em específica, mas sim de todos os lados. De cima, de baixo, dos lados, de dentro, de fora, das estrelas e da própria Myoshi. 

― Nós somos você. 

Os humanos abriram os olhos, e deles, emanavam uma luz purificadora brilhante e assustadora, com um poder luminoso tão intenso que chegou a cegar Myoshi. 

Seu corpo balançou, e ao abrir os olhos, viu Kyoshi com seu olhar frio recente, diferente do antigo olhar aconchegante do passado. Deu por si no quarto que fizeram-na as pressas, e seu corpo inteiro coçava, e a palha pinicava os lugares mais improváveis de seu corpo. 

― Finalmente você acordou! 

― O que está acontecendo? ― Perguntou, confusa e suando. 

― Você estava tendo algum tipo de pesadelo, não sei. Suava e gritava como uma garotinha. 

― Você que é a garotinha. ― Kyoshi riu. 

― Eu era. Parece que os tempos mudaram. Vamos, quero te treinar um pouco. 

― Me treinar? 

― Sim. Não seja orgulhosa ao ponto de dizer que não precisa de treino. Vi você contra os soldados de Chin, e bem, eu poderia ter lidado com eles com as mãos amarradas. 

O comentário não agradou Myoshi em nada. 

― Sim sim, você sempre foi a prodígio, o orgulho do nosso pai, a guerreira mais forte que ele já viu. Mas eu não preciso ser. 

― Não seja assim. Eu só quero te ajudar, assim como nosso pai quis, do jeito dele. 

Myoshi desviou o olhar, e por fim encontrou Bicudo no canto, sofrendo pelos seus erros. 

― Um treino. 

― Um treino. ― Kyoshi prometeu. 

Sua irmã gêmea guiou-a para um local vazio e aberto da Resistência, onde apenas tochas distantes iluminavam o local, dando a penumbra um vasto destaque. 

Kyoshi retirou um pouco de suas vestes pesadas, deixando os braços livres até os ombros, e Myoshi percebeu o quão musculosa ela era. Não retirou suas roupas para não exibir seus braços finos e fracos. 

― Pronta? ― Ela perguntou. Myoshi levantou duas rochas do chão. 

― Mais do que pronta. 

― Não seja burra. ― Kyoshi repreendeu. ― Estamos escondidas na base da Resistência. Não é inteligente fazer muito barulho com nosso treino. Coloque as pedras no chão. ― Myoshi contrariou. 

― Como espera treinar então? 

― Ora essa, sem a dobra de terra querida irmãzinha. ― Myoshi derrubou as rochas. 

― Sem a dobra? 

― Sim. Nosso pai passou a me treinar sem a dobra depois que você foi embora. Queria me deixar forte no corpo a corpo também, segundo ele. 

― Não acho que faça o meu estilo. 

― Não é questão de fazer o seu estilo. Lutar não é uma roupa ou um corte de cabelo. Lutar é disciplina, aprendizado, foco. Não precisa fazer o seu estilo, contanto que vença. Agora, venha para cima de mim com tudo que tem. 

Myoshi hesitou. Olhou profundamente para a irmã, que tomava uma posição incomum. Os dois braços bem levantados, fechados em um punho, protegendo o rosto. A perna direita ligeiramente dobrada, pronta para atacar. A perna de apoio, na ponta dos pés, preparada para se mover rapidamente caso necessário. 

Avançou com velocidade e força, mirando a mão fechada no rosto da irmã. Mas, tão rápido quanto seu murro, fora o movimento de Kyoshi. Em um piscar de olhos, Myoshi estava no chão com o braço do punho agarrado firmemente pelas duas mãos de Kyoshi, prontas para quebrar um osso. 

― Lenta demais. ― Soltou-a. 

― Como fez isso? ― Myoshi perguntou, impressionada. 

― É uma técnica que desenvolvi quando lutava com nosso pai. Você conhece bem ele, nunca pegava leve só porque somos garotas e muito menos para nos dar a falsa sensação de vitória. Ele sempre me atacava com todo o seu peso e toda sua força, e eu sempre perdia. Foi aí que percebi. Precisava usar a força dele contra ele mesmo, já que era mais fraca. Assim que desenvolvi essa técnica, e logo, em vez de ser derrubada, era eu quem derrubava ele. 

― Sensacional! ― Myoshi disse sem ironia. ― Me mostra de novo? 

E elas passaram a tarde treinando. Myoshi ficou com um hematoma ou outro, mas nada quem não sarasse com o tempo. 

Dias se passaram com deveres entediantes e com treinos suados.

A prática com Kyoshi sem dúvida era seu momento favorito do dia, e além de começar a ter mais eficiência na técnica desenvolvida por Kyoshi, seus treinos eram os únicos momentos que Myoshi esquecia completamente de tudo e focava apenas em melhorar. Esquecia de Bicudo, de Chin, de seu pai... Apenas a luta existia.

Os piores momentos eram os que Kyoshi, Lee e o maldito Handu faziam planos e estratégias para atacar Chin de forma despercebida. Tédio devia ser a palavra para definir essas reuniões, mesmo com todos chamando de conselho. 

Porém, não tiveram nenhum progresso nesse conselho durante dias.

Handu gostaria de atacar o Conquistador frente a frente, em campo de batalha. Lee preferia permanecer no esconderijo de túneis até que os inimigos estivessem sobre eles, para que assim, pudessem pegá-los de surpresa. Kyoshi queria enfrentar todos sozinha, e quando Handu entendeu como uma piada, ela o olhou com um fervor que o fez aquietar-se imediatamente. 

Myoshi não se importava com nada disso. Queria que Bicudo se curasse logo, mas sua perna não dava sinal algum de melhora.

Quando foi questionada a dar sua opinião no quinto dia, Myoshi afirmou novamente que deveriam deixar o lugar e buscar refúgio no sul, em Omashu. Handu não gostava nada da ideia.

― O Rei de Omashu me deu uma tarefa: Eliminar esse pretenso a conquistador antes que ele chegue nos muros da cidade, e é isso que eu pretendo fazer. Não vou voltar com o rabo entre as pernas para ele. Se quiser ir, vá. A guerra não precisa de fracos ou medrosos.

― Você fala bastante, Handu. Mas gostaria de ver como você aguentaria em uma batalha de verdade.

Handu cuspiu. 

― Você foi abençoada com a dobra de terra, garota, eu não. Sei que perderia para você, mas pelo menos tenho coragem de enfrentar a batalha. 

― Como eu! Mas quero buscar um refúgio mais seguro para o Bicudo! 

― Ainda não sacrificou seu animal? ― Handu respondeu rispidamente. ― Pelos espíritos... Não entende que ele vai morrer, garota? Nunca vi um cavalo-avestruz sobreviver uma perna quebrada nos meus cinquenta anos. Estou surpreso que este ainda não morreu. 

Myoshi também estava surpresa. Notava que o animal lutava cada dia para continuar vivo, e o seu sofrimento partia seu coração em inúmeros pedaços. Mas vê-lo morrer o quebraria em ainda mais pedaços. 

Ignorou o homem e foi checar a situação de Bicudo. Quando Kyoshi chamou-a para voltar, Myoshi apenas continuou andando. 

E lá estava ele. Parecia mais velho do que cinco dias atrás, se é que isso era possível. A expressão em seu rosto mostrava uma dor terrível, e ao mesmo tempo, felicidade por ver Myoshi. 

Ficou triste novamente por vê-lo nessa situação. Água quente escorreu de seu rosto, e logo, Myoshi viu-se sendo abraçada. 

― Minha filha, ― Disse Sukishi calmamente. ― sei como você se sente. Você não quer abandonar seu fiel animal. Mas ele não aguenta mais. Olhe para ele. 

E olhou. Estava acabado. A perna boa tremia, enquanto a ruim estava dobrada, com o sangramento estancado. As penas caíam cada vez mais desde então, e agora, elas já enchiam o cômodo. Seu bico, azul e amarelo, agora aparentava ter perdido a cor. 

A única coisa que continuava igual eram seus olhos. Amarelos e brilhantes de ousadia. 

― Você não sabe como eu me sinto. 

― É muita presunção sua dizer isso minha filha. Seu pai foi um animal fiel para mim a minha vida inteira, e se ele estivesse sofrendo, eu o mataria para acabar com esse sofrimento. Sei que seria o que ele iria querer. Mas ele já está morto. 

Myoshi fitou sua mãe. Os cabelos enegrecidos, sujos e desgrenhados descendo sobre suas vestes esverdeadas e velhas. 

― E como você sabe? 

― Não sou inocente como sua irmã a ponto de pensar que ele escapou... Não. Sei em meu coração que ele está morto. E você sabe em seu coração que Bicudo também está morto. 

― BICUDO NÃO ESTÁ MORTO! 

Seu berro não fora o único som que ecoou pelos túneis escondidos da Resistência. Um estrondo enorme acompanhou o seu grito, e então, outro se seguiu. E depois outro. 

Kyoshi entrou correndo no cômodo. 

― Mãe! Myoshi! Estamos sendo atacados! A Resistência foi descoberta! 


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