Era da Opressão escrita por P B Souza


Capítulo 23
07; Genocídio




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/679000/chapter/23

Monte Saint-Michel. 25/02/0165

O sol nascia em Saint Michel, subindo pelo horizonte cortando o mar e refletindo sua luz na água, iluminando as nuvens. No jardim aberto da fortaleza, sentado em uma espreguiçadeira com sua túnica fechada e um tablet nas mãos, estava o Fundador.

Com os olhos fixos no monitor ele sequer via o sol, já cansado do espetáculo da aurora e do ocaso.

— O senhor tem certeza? — Louis perguntou para o Fundador. Ele era o assessor pessoal do Fundador, cuidando de todas as tarefas mundanas e prestando aconselhamento para os mais diversos temas, conhecendo mais segredos de estado que muitos, e mantendo todos em perfeito segredo. Às vezes Louis sentia-se como uma bussola moral para o Fundador, tendo de lembra-lo de tempos em tempos que ele ainda era humano, e que as vidas das quais tratavam eram também vidas humanas. — São quinze milhões de pessoas, senhor.

O Fundador não lhe respondeu, ainda pressionado contra seus pensamentos, mergulhado nas escolhas difíceis as quais se resumiam a ideia de governar.

— Me dê uma outra opção, viável e rápida.

— Todas as outras opções já foram desvalidadas, senhor. — Louis havia nascido e crescido em Saint-Michel, então podia falar pouco do mundo, pois também pouco havia viajado, tendo estado na capital apenas duas vezes acompanhando o Fundador. Mas na única vez que viajou por conta própria, conheceu Vishesh Bhoomi e foi lá onde aprendeu o valor incontestável da vida humana. Ironicamente era em Vishesh Bhoomi o lugar em que a vida tinha o menor valor. — Só considere que a opção de não fazer nada também é uma opção.

— Os riscos são grandes demais.

— Porém não é uma solução.

— Paliativo que seja, é algo. — O fundador completou.

Quando a rebelião havia começado nas Terras Régias, o Fundador já previra que não acabaria bem, na verdade ele nunca apostou suas fichas nas Terras Régias, mas precisavam inovar nas formas de governo, buscar saídas mais elegantes para problemas persistentes. No começo deu certo, mas não demorou para que se tornasse apenas mais uma colônia fraca e desestabilizada que em breve conheceria o fim.

A certeza da queda foi quando o filho do próprio rei juntou-se a rebelião, dando às brasas da fogueira, lenha forte o bastante para queimar até o último nobre. O golpe veio de dentro para fora, e um a um em uma mirabolante e desenfreada caça, o governo conheceu a própria ruína, mas a queda de uma nação não se dá sem resistência, e nesse interim as forças militares reais conseguiram desestabilizar também aos rebeldes. Sendo que quando o golpe de estado chegou ao seu inevitável fim, as Terras Régias estavam desoladas, com um Rei morto e um herdeiro desaparecido, rebeldes desalinhados agora lutando um entre o outro para descobrir como seguir em frente, despedaçando assim o resto de uma nação.

Agora os anarquistas inexperientes na arte de governar e com a voz de comando ausente, se viram em situação que beirava uma nova guerra civil. Grupos cada vez maiores deixavam a área popular para se arriscarem como nômades buscando sabe-se lá o que em um planeta destruído pela guerra, repleto de criaturas tão horrendas que sequer sua classificação tem sido feita. As cidades eram agora centros de crime e tráfico, aonde reinava a lei do mais forte, com fábricas paradas e recursos se esgotando, a ordem estava cada vez mais distante, se tornando apenas um ideal.

O Fundador então confirmou a ordem em seu tablet, na lateral usou o scanner de digital e na tela assinou seu nome enviando a requisição. A tela se encheu de códigos deslizando um atrás do outro com comandos que ele não fez questão de ler. O último foi “lançado” e o sistema aberto se fechou levando-o a interface inicial aonde a tela de fundo era a jovem Rhaina, ainda bebe assim que nascera. Então baixou o tablet deixando-o ao lado, encheu o peito de ar e se levantou olhando para o antigo mosteiro.

— Preciso ir ver Rhaina. — O fundador disse. — Já consegue ouvir?

Louis ficou em silêncio, ambos trocaram olhares quando o Fundador começou a andar e deixar o assessor para trás. O chão de toda a ilha parecia estar vibrando. O fundador havia criado aquilo há muito anos, não Eric, mas os que vieram antes deles, seus antepassados. O plano nunca fora utilizar nas próprias colônias, e sim em possíveis inimigos da fundação, mas ele não teve escolhas.

Do outro lado de Saint-Michel, em uma capela com afrescos descascados pelo tempo, sob a rocha proeminente à beira mar, Rhaina estava sentada no chão de rocha, encostada na parede de blocos de granito gastos, com uma edição revisada dos Lusíadas enquanto o sol a esquentava lentamente e ela podia ouvir o som da água em ondulações fracas quebrando contra as rochas de Saint-Michel alguns metros abaixo.

Ela parou de ler quando o chão sob seus pés tremeu, não muito, mas o bastante para pedrinhas no chão vibrarem em danças aleatórias. Rhaina fechou o livro e o deixou no chão com o marca-páginas aonde havia parado de ler, se levantou apressada e percebeu que o som da água e do vento haviam sido engolidos por um som terrível; vindo de dentro da própria terra, parecia que tudo tremia. Rhaina pensou ser um terremoto, preocupou-se, o coração disparou. O Mosteiro... Parecia que toda a construção ao redor da montanha iria ruir, era tudo antigo e mesmo assim nenhuma única pedra se soltou de lugar algum.

Então de algum lugar a leste, fazendo a curva na montanha, uma nuvem de fumaça surgiu, revelando em seguida um projetil pontiagudo, como um foguete, expelido de dentro de Saint-Michel, subindo ao céu quase que verticalmente, com um jato de fogo o impulsionando para cima. Para onde isso vai? O que é isso? Mas ela temia saber a resposta àquela pergunta.

A menina saiu correndo pela trilha de rochas, os pés calçados batiam contra a pedra desalinhada, ela ouvia o som do motor de um helicóptero iniciando no pátio externo lá em baixo no nível inferior de Saint-Michel. Cruzou a trilha entrando na ala de manutenção de Saint-Michel, cruzando os corredores mal iluminados até o átrio, e dali correu para o pátio fechado, aonde encontrou o homem em túnica.

— Pai! — Ela berrou ao ver o fundador, que também caminhava até ela. — O que você fez?

Rhaina sabia que nada naquela ilha, ou naquele mundo, acontecia sem o aval do Fundador, portanto fosse aquilo o que fosse, era obra de seu pai.

— O que você... — Chegando perto dele, tropeçou enquanto a voz enchia de agonia. Caiu com as mãos na frente, ralou os cotovelos aparando a queda e gemeu de dor. Olhou para cima vendo seu pai lhe encarar sem sequer abaixar-se para lhe ajudar a levantar. Com os olhos cheios de lágrimas Rhaina se levantou, punhos fechados, encarava o pai.

— O necessário. Você entende o porquê?

Rhaina olhava para a pedra no lugar do rosto do pai, não havia emoções ali, não havia sentimento, apenas a escolha necessária para a continuidade da Fundação, apenas o dever. Com um ar triste a garota anuiu para o Fundador e fungou, limpando as lágrimas antes que elas escorressem pelo rosto.

*****

Longe dali, a quilômetros de distância, os Yannok estavam aproveitando mais um dia de caça no pântano. A tribo era catalogada como selvagens nível 2 pela Fundação, posta em estado de vigilância passiva pelas forças da Terras Régia, mas desde que a colônia fora fundada e os limites impostos, os Yannok nunca mais pisaram no solo demarcado como limitado.

De cultura quase nômade, eles transitavam pelo sul e pelo leste da antiga ilha de Albion, em escavações das antigas civilizações, atrás de bens valiosos, mas com certo repúdio a tecnologia, inclusive destruindo-a sempre que possível, pois a temiam como um inimigo antigo da raça humana, motivo pelo qual denotavam sua queda e quase extinção há séculos atrás.

Naquele momento o chefe dos caçadores contava quantos peixes e lebres eles tinham conseguido até aquele horário, pois a primeira remessa já deveria ser enviada para o restante da tribo, eles mantinham o controle, assim, de tudo que produziam e consumiam, sem exceder em produção ou em consumo, tendo equilíbrio em tudo que faziam, nunca voltando a um local de caça sem antes darem tempo para que a natureza esquecesse que eles ali haviam causado perturbação, por essa razão eram nômades circulares, sempre eventualmente retornando, mas nunca parando fixamente em um local.

— Uma estrela caindo. — Um dos Yannok disse apontando para o céu.

O chefe do grupo de caça olhou para o homem, e então seguindo seu indicador, procurou no céu a estrela, assim fizeram todos no grupo, eram quase dez homens.

— Isso não é uma estrela. — Ele respondeu com a voz alta o bastante para todos ouvirem. — Agarrem o que puderem carregar, mas nada além disso, não fiquem pesados, pois temos todos de correr.

— O que é isso chefe? — Outro perguntou.

Os Yannok temiam a tecnologia por um motivo.

— Deus está bravo conosco, chefe? — Um pescador com o peixe ainda vivo nas mãos questionou olhando para o chefe. — Devo devolver o peixe par a mãe água?

— Isso não é coisa de Deus. — O chefe de caça proferiu mais alto ainda enquanto o projetil cruzava o céu deixando para trás um rastro de fumaça, vindo do mais alto possível, descia rumo ao horizonte, rumo a terra distante que o Chefe de Caça sabia ser território proibido, pois era território dos homens com armas. — Devemos correr, e salvar nossas crianças e nossas mulheres, pois tudo que do vento sobrevive, vai morrer com o que o vento trará. Isso não é Deus, isso é coisa dos homens de ferro!

Foi quando o míssil carregado com a ogiva nuclear atingiu o centro da antiga Londres. A explosão varreu da existência tudo que era vivo, e tudo que não era. O parlamento, os palácios, as construções, as fábricas, o laboratório credenciado do Fruturus, as bases militares, as bibliotecas e os museus... Tudo destruído, mas mais importante que todas as construções apagadas da existência como se nunca tivessem existido, estavam as pessoas, milhares que em um segundo sentiam medo, e no outro não existiam mais, inocentes e culpados, juntos. Rebeldes e legalistas, soldados do próprio Fundador ainda lutando pela missão que nunca poderiam cumprir.

Todos desfeitos, unidos pela primeira, única e última vez na nuvem de cogumelo que anunciava o fim das Terras Régias. No fim, apenas assim havia paz, quando não havia mais pessoas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Era da Opressão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.