Gota a gota [HIATUS] escrita por Tamires Vargas


Capítulo 14
Olhando para fora de si


Notas iniciais do capítulo

Tirar a poeira daqui para me aconchegar.
Olá, pessoas, o hiato em forma de autora está de volta!
Quem ainda espera pelos capítulos... ♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥
Quem colocou nos acompanhamentos e favoritou... ♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥
Quem vai comentar assim que terminar de ler... ♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥
Quem lê o meu perfil e fica ligado nas atualizações... ♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥

Boa leitura!



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Emi escutava atentamente cada palavra embora seu rosto expressasse a vontade de levar a conversa para outro rumo. Entendia a necessidade de sua neta, mas não se considerava a melhor pessoa para ouvir aquele desabafo. Que detalhes seriam incrementados a ele? Preferia não pensar. Por isso estava preparada para cortar o assunto assim que a ameaça surgisse.

— E?... — Ela perguntou esperando o momento de agir.

— Não aconteceu mais nada. Foi só um beijo.

— Que bom. — Emi respondeu aliviada pelo diálogo se desviar de trilhas tortuosas.

— Bom? Foi há duas semanas! — A voz abandonou a exclamação e se recolheu a um sussurro. — Fugaku não me beijou de novo depois disso... Talvez ele tenha se arrependido.

Emi reconheceu aquela história. Não saber se era correspondido acontecia com todo mundo e a agonia que acompanhava esses episódios ingratos do romance jogava qualquer um nos braços da melancolia.

— Se você fosse para casa hoje, e ele quisesse te levar pra cama?

— É claro que eu não iria! As coisas não são assim de uma hora para... outra... — Mikoto notou o olhar incisivo da avó. — Mas continua sendo estranho ele agir como se não tivesse acontecido.

— Você age diferente?

— Não sei,... acho que não.

— Se estiver esperando a iniciativa dele terá que se conformar com a ideia de que ela acontecerá quando Fugaku bem entender. Se escolheu esperar, pare de desejar que o tempo corra. Conheça-o, deixe ele te conhecer. O mundo não vai girar mais rápido para lhe trazer a resposta que você quer... Agora levante e vá colocar sua cabeça no trabalho, assim não ficará sofrendo por antecipação.

Emi observou a neta lhe obedecer a contragosto e a imagem dela se confundiu por um instante com a da menina que vivia agarrada a barra de sua saia. Sentia que quase não tinha o que ensinar para ela e o orgulho se deixou invadir pela tristeza.

 

Mikoto percorreu todo o caminho de volta pensando no que a avó dissera. Parecia simples, mas de longe era a coisa mais difícil de fazer. Poderia conversar abertamente com o marido, ideia ótima por dois segundos, poderia se insinuar de forma sutil, ideia descartada assim que surgiu, e poderia esperar e ver o que aconteceria, a mais tentadora de todas. Pouco antes de chegar à rua de casa perdeu a solidão para Fugaku, caminhando em silêncio ao lado dele enquanto os pensamentos faziam uma algazarra em sua cabeça. Ela notou o olhar dele se fixar em seu rosto por alguns minutos entre uma tentativa e outra de disfarçar e se esforçou para aquilo não lhe abalar, bastava a confusão que havia se instalado dentro de si.

Mikoto agradeceu quando Fugaku se ofereceu para comprar o jantar. Não estava com a menor vontade de cozinhar e preferia comer algo que não fosse fruto do improviso do marido. Ela descansou o corpo na banheira repassando os acontecimentos. O beijo, a vergonha, o dia seguinte, silêncio, conversas que não envolviam a situação entre eles, silêncio, outro pernoite, nada diferente... Talvez diálogo fosse o problema. Precisava parar de usá-lo como último recurso. Se Fugaku a quisesse como mulher deveria deixar isso claro. Escorregou para fora, um ímpeto de decisão queimando seus pensamentos, vestiu-se rápido, deslocou-se para sala.

Caminhava serenamente, porém sua presença parecia um vulcão. Adormecido, esperou a volta do marido. Suava, ignorando a tentativa de seu cérebro formular frases, que saísse a primeira, sem filtro ou polidez apenas a expressão do que estava entalado. Encarou o homem quando ele entrou pela porta, aos olhos dele parecia que havia chegado a hora de ser engolido vivo, notou-o se mover devagar ao anunciar a comida. Aproximou-se, o tecido fino da yukata se abrindo em "v" para expor o colo, sussurrou o nome dele, tão perto que se a erupção se desse naquele momento ele não escaparia e, com o coração correndo desenfreado, perdeu a voz.

Fugaku não entendia, queria que Mikoto lhe disse ao menos uma sílaba, porém ela continuava a lhe fitar com aflição como se estivesse sufocada com algo. Pensou na possibilidade, a única que justificaria aquele impasse, e desejou ter certeza para não cometer um erro. Havia refletido sobre sua atitude, mas apenas conseguiu se sentir mais confuso. Queria tomá-la, sem dúvidas desejava-a em seus braços, contudo não poderia sem esclarecer seus próprios sentimentos. Ele a viu desistir com o semblante dolorido, e a imagem lhe deu uma certeza ingrata. Tudo que fazia a magoava.

 

Tomou seu lugar preferido na varanda. Tinha desistido de dormir há algumas horas e achou que ali poderia trombar com o sono. Mentira pura, ele sabia. Mesmo se o mundo dos sonhos abrisse uma cratera embaixo de seus pés não o sugaria, muito menos queria fechar os olhos para enxergar o rosto de Mikoto refletido em suas pálpebras. Teve que encará-la com eles abertos. A mulher veio ver se estava bem, conhecia sua mania de ficar jogado naquele canto.

A afirmativa emperrou na garganta, mas saiu num sussurro fraco, e Fugaku temeu que ela fosse insuficiente para deixá-lo sozinho. Precisou encarar o nada quando Mikoto sentou ao seu lado e procurar respostas, ou esquivas, para as perguntas que viriam. Sentiu o peito alarmar e a respiração acompanhá-lo, controlou-a como tivesse um mal estar. Esperou, rígido e mudo, a conversa que se esgueirava para morder seu pescoço.

— Você sempre vem pra cá quando algo o incomoda... — Ela apertou os lábios e balançou a cabeça de leve. — Boa noite!

Fugaku prendeu a mão dela contra o assoalho, notando seu gesto um pouco tarde, afrouxou-o, observando o rosto de Mikoto, ensaiou uma explicação e desistiu, embolava-se mais toda vez que tentava falar. O toque o agradava, remetia-o ao beijo, ao abraço, ao que ele não conseguia definir, mas sentia e se permitiria sentir se pudesse. Havia momentos que desejava ser diferente, porém logo mudava os pensamentos.  

— Aqui é bom para pensar... — Ele disse buscando um diálogo trivial que não cabia ali, sem separar as mãos.

Mikoto recolheu a sua, escorregando-a para perto de si com a sutileza fria da rejeição. Tivera seu coração sacudido vezes demais naquele dia e preferia a cautela de uma indiferença fingida ao se deixar levar pelo assalto da expectativa. Ajeitou-se como se acabasse de sentar, vagando o olhar pela grama, árvore e céu. Por dentro, agitava-se, por fora exibia a tranquilidade de buda.

Apostou que o marido não mais falaria, ele sempre se fechava nessas horas, e tratou aquilo com naturalidade. "Estranhos em silêncio" era o que melhor os definia e isto não mudaria por um momento irrelevante. Se estivesse errada, Fugaku quebraria a infeliz tensão que lhe roia os dedos, se certa, arrumar as malas e partir duma vez seria a solução para o suplício de amar aquele homem.

— Meu pai costumava fumar aqui quando estava preocupado. Ele me enxotava toda vez que tentava invadir o espaço dele. Agora posso ficar o quanto quero...

Fugaku engoliu a saliva, sentindo desconforto no ato. Percebeu-se pisando num terreno desagradável, longe da segurança em que havia se colocado desde que seu eu ameaçara desmoronar. Murmurou uma evasiva que saiu pela metade, enroscando-se com lembranças e dores, e o impediu de escapar da presença de Mikoto. Não queria ficar sozinho com aquilo e a serenidade dela amainava a pressão dos sentimentos.

— Sou uma privilegiada já que você não me expulsou — brincou. — Espero que não se arrependa depois.

Uma simulação de sorriso esticou os lábios de Fugaku, mas desapareceu num segundo, e Mikoto questionou a si mesma se não foi um erro tentar dissipar o clima pesado que havia se instalado. Ela esperou os muitos minutos em que o marido se perdeu e o fitou como se o lembrasse que não estava só.

— Você não me contou sobre a situação da plantação. Como está o trabalho?

— A terra foi preparada, plantaremos as sementes essa semana.

Fugaku suspirou.

— Tinha esquecido... — Ele levantou a cabeça, mirando as estrelas para fugir dos olhos da mulher. — Eu ainda não visitei o local, devem estar pensando que não me importo.

— Acho que é o contrário. O fato de eu acompanhar o trabalho deve passar a impressão que ele é tão importante quanto os outros. Pelo menos ninguém nunca pareceu se incomodar por você não ter ido.

— Eles não vão falar na sua frente. Você poderia me contar.

— Fala como se todos estivessem contra você. Deveria parar de agir como se quisessem te derrubar. — Ela segurou a vontade de abandoná-lo, mas a irritação transpareceu em sua voz. — As pessoas não o conhecem, é só isso, e você não facilita em nada com essa atitude.

Fugaku soltou um sorriso irônico.

— O que disseram sobre mim?

— Nós convivemos tempo o suficiente para eu tirar minhas conclusões.

A resposta foi um soco bem colocado no estômago que esvaziou as palavras da mente de Fugaku. Não queria aquela certeza agora, nem dali a duas semanas, e desmenti-la seria de uma hipocrisia que nunca havia experimentado, contudo, admiti-la exigia uma sinceridade desprendida de orgulho. Era um péssimo marido, uma péssima companhia e o motivo de Mikoto continuar a suportá-lo deveria ter alguma raiz na santidade.

— Não vamos discutir sobre isso. — Ela falou num tom de quem encerrava o assunto vencido pelo cansaço e, sem o protesto do marido, recolheu-se.

 

Fugaku mal viu a silhueta dela ao sair de casa. Eram seis da manhã, o sol fraco começava a se estender sobre a grama, cortando a névoa que ondulava no quintal. Os peixes tinham comido, havia uma refeição pronta em cima do fogão e os cômodos exibiam uma organização maior que a habitual. "Ela não vai voltar", concluiu.

E assim foi. Os poucos dias que Mikoto dormiu sob o mesmo teto que ele — quando um ensaio de retorno se fazia — foram soterrados por uma semana, duas, um mês. Durante esse tempo continuaram a se falar do trivial ao importante, mas nunca sobre eles nem os desentendimentos que se formaram num estalar de dedos e pareciam impossíveis de serem dissolvidos. Sem perceber haviam dado forma a uma sombra de pesadelo: a fina aparência de bem-estar cobrindo uma montanha de dissabor.

Fugaku tomou as ruas deixando que seus pés o guiassem, tinham de cor o caminho e poderiam fazê-lo sem que a mente os comandasse. Ansiando a solidão, ganhou a companhia de Teru que estufou o peito ligeiramente para andar ao seu lado. Fez menção de escorraçá-lo, mas se deteve ao notar uma idosa acenando. Desajeitado, Fugaku devolveu o gesto que foi multiplicado por outros Uchiha ao vê-lo passar por eles. O semblante das pessoas carregava uma alegria tímida e algumas chegaram a sorrir minimamente.

Teru fez o desfavor de matraquear até a sede da polícia acreditando que o silêncio de seu capitão significava que ele estava lhe ouvindo. De fato Fugaku ouvia, um zumbido ao fundo de seus pensamentos que tentavam encontrar um motivo para aquele projeto de alvoroço.

Deixe-os do lado de fora ao chegar ao trabalho, quase deixando também seu subordinado. Sentou à mesa, observando o vazio que se deitava sobre ela, o brilho do verniz denunciando o zelo com a madeira e a ausência de seu uso. Fugaku havia retirado os pertences de seu pai há um mês e, como se a cada dia reunisse um pouco de coragem, pensava no que poderia colocar sobre ela. Alcançou a gaveta, cheia de lembranças, abrindo-a para espiar o conteúdo. Viu um enfeite que cogitou recolocar sobre a mesa e o pegou, encarando o passado dentro dele.

Fugaku não se sentia menos perdido do que no dia em que recebeu a notícia da morte do pai. Parecia que todo o tempo que vivera em luto era apenas uma sucessão de dias que se entrelaçavam e se confundiam, facilmente tomando o lugar um do outro na cronologia de sua vida. Imagens recentes tinham pouca nitidez e quase nenhuma cor, os olhos as captavam com exatidão, mas a mente não processava, e com frequência esquecia, os detalhes que recebia. Cinza e pesado era o mundo em que ele vivia, com pequenas interrupções de raios de sol, assemelhava-se a uma fotografia corroída que tentava expressar algum sentimento.

— Capitão,... — Teru pronunciou em voz baixa com o semblante murcho. — encontraram o Yuki.

Fugaku fechou os olhos e baixou a cabeça, deixou as mãos entrelaçadas a frente do rosto, expirou devagar. Esperava por aquilo, deduziu quando se completou uma semana em que o gato tinha desaparecido, mas ainda guardava a esperança em seu íntimo.

— O senhor quer vê-lo? — A pergunta saiu arranhada.

Fugaku queria responder em seu tom seco, fitar o soldado com austeridade e insinuar que ele estava desperdiçando tempo com bobagens para fugir do trabalho, porém se abrisse a boca naquele momento seria traído por sua voz. E mesmo sem dizer qualquer palavra ficou claro que perdera um pedaço.

 

Mikoto se assustou quando percebeu a presença do marido, não recordava de ele chegar em casa antes das dezoito horas. Ignorou-o de primeira, fingindo ver normalidade no fato, mas se inquietou ao contar os minutos que Fugaku permanecia estático. Aproximou-se já arrependida, esperando a mágoa certa, buscou os olhos dele antes de arriscar a primeira sílaba e perdeu um suspiro ao encontrá-los vermelhos.

— Não é nada... — Ele soprou a mentira.

— Ok... — Ela estendeu a mão devagar. Queria colocá-lo em seu abraço, sabia que não poderia.

— Yuki morreu.  

Mikoto se deteve. Os lábios de Fugaku se apertaram, ele expirou com força, parecia lutar contra si mesmo. 

— Todos morrem num piscar de olhos. Hoje os vemos, amanhã não, como se nunca tivessem existido. — Ele complementou.

— É assim que acontece... — Mikoto se voltou para suas próprias lembranças.

Ela pensara que ao escutar o marido falar sobre o luto não reviveria emoções. Imaginara que tinha vivido todas as etapas dele e poderia oferecer seu apoio sem o sorriso amarelo de quem não consegue disfarçar a dor. Em contrapartida, Fugaku jamais cogitou dividir algo tão íntimo, menos ainda que a morte de um ser pequenino revolvesse o sofrimento da perda, mostrando-o presente e pulsante, e lhe doasse reflexões sobre o tempo e os relacionamentos.

Fugaku agora pensava que as pessoas que amamos poderiam desaparecer no instante seguinte e que não aproveitar um minuto ao lado delas poderia significar perder o último. Pensava no pai, distante por causa do cargo, e em si mesmo que começara a trilhar o mesmo caminho. Nos amigos que passou a tratar somente como subordinados, nas pessoas que lhe pareciam embaçadas, desconhecidas, e que o desconhecido para todos possivelmente era ele.

Olhou para a mulher, os traços finos que estava acostumado a ver, a doçura, firmeza e amabilidade, a preocupação com um marido insensível e estúpido. Afastara-a de igual modo, não permitindo sequer o nascimento de uma amizade. E por isto merecia a solidão e seus fantasmas.

— Não e fácil superar a morte. — Mikoto retomou a fala. — Cada um tem seu tempo para isso. Não se apresse.

— Yuki era o gato da polícia.

— Mas não era só dele que você estava falando, não é? — perguntou, encarando-o, pronta para identificar uma mentira caso houvesse.

— Acho que acabei lembrando do meu pai... — Vagueou o olhar pelo jardim.

— Durante um tempo tudo faz lembrar, aos poucos isso vai diminuindo até a gente conseguir lembrar sem dor.

Emendaram um silêncio. O esforço e o desconforto para com o diálogo aumentava conforme passavam para camadas mais profundas. Um tencionava confiar no outro, outro esperava que um se sentisse confortável para se abrir. Ambos receavam invadir o espaço pessoal que não lhes pertencia e remexer numa ferida aberta. Sentiam-se intrusos apenas por pensar em tentar, respeitavam-se mais do que podiam imaginar.

— Cuidei dele por cinco anos. Tive que criá-lo na polícia porque não podia trazê-lo.

— Não era fácil ser filho do capitão. — Mikoto quis que fosse uma pergunta, contudo a convicção em sua mente tomou a dianteira.

Fugaku fitou o lago, os saltos curtos dos peixes, a tremulação da água. Não estava mais ali. Tinha se arrependido de ir tão longe e corria de volta como se pudesse apagar o passado recém formado.

 

Mikoto ponderava se deixar o marido naquela noite não seria fruto da face sombria do orgulho ao passo que se justificava com o fato de Fugaku preferir a solidão à companhia de qualquer ser humano. Ele daria um jeito na própria dor, cobrindo-a ou comendo-a num canibalismo insano e infrutífero. Depois ergueria o queixo e arrastaria seu coração plúmbeo pelas ruas com a face serena de quem ilude a si mesmo. Ficar para secar as lágrimas que ele não derramaria seria beijar os lábios da tristeza esperando que ela salivasse alegria.

Reuniu seus pertences numa sacola: um quimono e um livro que Emi pedira emprestado, viera buscar o último devido a uma enorme insistência da futura beneficiada e levaria o primeiro porque sentia falta da peça, presente da responsável por estar ali aquela hora

Emi havia lhe questionado sobre o casamento insinuando que a demora para tomar uma atitude resultaria num desgaste maior. Era preciso romper de uma vez ou entrar de cabeça. "Saia do caminho ou faça morada" disse com o olhar sério, e Mikoto estranhou o tom derramado na frase.

Firmou os pés na decisão de ir quando o marido surgiu em sua frente. Não tinha o que dizer e seu rosto se encarregou de falar todas as coisas, mas uma gota de coragem, ou descaramento como Fugaku pensara, transbordou as palavras. Uma pergunta inocente feita na hora exata tremulou a certeza de Mikoto, que sentiu a resposta querer fugir de seus lábios antes de meditar sobre ela.

Bobagem achar que Fugaku precisava confirmar se dormiria na casa de Emi, ele queria ouvir o contrário do que pensava. Mikoto notou isso no tom, na expressão e na forma que as mãos dele se escondiam nos bolsos. Deixou escapar o "não" esperado e em troca ganhou um esposo congelado que parecia não ter se preparado para escutar o que queria.

Jantaram um lámen que Fugaku correu para comprar no restaurante mais próximo, engataram uma conversa sobre a plantação, o clã e as pessoas que faziam parte dele. Mikoto começara a entendê-las melhor e soprou ao seu líder suas impressões: elas ainda se sentiam incertas quanto ao que esperar dele, contudo muitas tinham na lembrança a imagem do agradável filho de Fukuma. Algumas confessaram alívio quando notaram que ele havia deixado sua amabilidade para trás, outras esperavam que não se tornasse um novo "mão de ferro".

Silenciaram-se um pouco, numa breve reflexão sobre o diálogo. Fugaku o retomou por curiosidade com o cuidado de não externá-la. Conduziu a dança de palavras, deixando os traços do líder se desgarrarem de sua personalidade, interpretou bem a si mesmo, não percebeu que não era um personagem.

Na manhã seguinte, despediu-se de Mikoto com um beijo na testa. Teria beijado a face se a vontade pelos lábios não cruzasse sua mente. Levou tempo no gesto, inspirava o aroma dos cabelos como se o gravasse na memória, no entanto apenas apreciava, ele, o calor e textura da pele, o braço sob a manga da camisa que sua mão repousava, tentada a apertar a carne. Guardou as sensações. Outra hora se recriminaria pelo ato, agora aproveitava a leveza que o tomava.

Ela o acompanhou até uma mensagem chegar por meio de um dos soldados. Os anciões pediam sua presença naquela tarde e a importância do encontro era tal que Fugaku deveria comparecer de imediato. Como pedido, ele se colocou a disposição dos homens. Foi recebido por um.

Nao encarou Fugaku como se olhasse para uma criança iletrada. Reconheceu nos olhos dele outros olhos, nunca esquecidos, mas guardados sob dados, acontecimentos e obrigações que permitiam às lembranças apenas uma fresta para continuarem respirando. O velho a tapou de imediato, no entanto a poeira que escapou dela já havia lhe atingido e seria impossível que ele agisse sem o peso dela sobre suas atitudes.

— Mikoto está grávida?

Fugaku recuou internamente, a atenção se multiplicou e o olhar perdeu o ressentimento antigo para fitar o homem com cautela.

— Foi pra isso que me chamou? Tenho muito trabalho...

— Responda!

Fugaku emudeceu. Não temia responder, mas sentia que o desenrolar da conversa seria de desagradável para pior.

— Qual o problema? É seu, dela? Já se passou tempo suficiente para se fazer uma criança! Esqueceu o motivo do seu casamento?!

— Quando tiver algo importante a dizer, me chame. — Fugaku se curvou em despedida.

— Se ela não pode te dar filhos, faça-os com outra. — Nao falou baixo, prendendo a atenção de Fugaku pela surpresa. — Você pode se separar e casar novamente ou engravidar uma mulher e fazer Mikoto cuidar da criança... A meu ver esta opção é a melhor. O clã já se acostumou com ela, a visão de vocês como um casal está consolidada e mudar isso faria um alvoroço que não precisamos.

Fugaku ficou inerte, o asco e a raiva se mesclavam, ferviam seu corpo na absoluta certeza de que todos os anos desejando um minuto do tempo daquele homem foram um desperdício. Lembrou-se das inúmeras vezes que o pai dissera para esquecê-lo, sem explicações ou suavidade, pontuando que não valia o esforço de pensar nele. Esperar que Nao agisse feito um avô era esperar pelo impossível.


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Notas finais do capítulo

Lágrimas, sorrisos, revoltas, exclamações?
Deixe-as aqui embaixo.
Bjs!♥



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