Fogo-fátuo escrita por Livia Y


Capítulo 2
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

“Paz é uma mentira, só existe paixão.
Através da paixão, ganho força.
Através da força, ganho poder.
Através do poder, ganho a vitória.
Através da vitória, minhas correntes se rompem.
A Força me libertará.”



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Chovia ininterruptamente há dois dias. O rapaz alto e pálido carregava com dificuldade a mochila com vários aparatos tecnológicos que trazia presa às costas. Suas botas, antes negras e brilhantes, estavam da cor da lama grossa que parecia cobrir a maior parte do caminho. Encharcado e faminto, ele avançava vagarosamente, guiado apenas pela Força – bússolas eram inúteis no anômalo magnetismo do planeta. Cada passo era uma pequena batalha contra o solo amolecido, que parecia querer engoli-lo e por vezes o prendia até os joelhos, impedindo qualquer progresso por vários minutos. A exaustão dificultava que usasse seus poderes para facilitar a viagem, e seu árduo treinamento era a única coisa que o mantinha de pé.

Isolado num sistema desabitado e parcamente mapeado da Orla Exterior, ele sabia que ninguém o procuraria se não enviasse uma mensagem de socorro, e sua nave não tinha sequer um gerador em funcionamento. Precisava encontrar o que havia ido buscar ali, para então retornar com a nova fonte de energia até a carcaça do veículo, emitir o sinal de resgate e abandonar aquele inferno molhado de uma vez. O medo de morrer daquele jeito, sozinho e fracassado, era uma das três razões que ainda tinha para seguir em frente.

O primeiro e grande motivo era provar ao Líder Supremo que ele, Kylo Ren, fazia jus ao legado do avô.

Pensar em seu novo nome – seu nome de verdade— trouxe-lhe uma onda renovada de ânimo. Durante boa parte do tempo mal se lembrava do antigo nome que haviam lhe dado, homenageando um jedi qualquer. O nome escolhido por Snoke refletia quem ele sempre fora. E agora só lhe faltava um sabre digno – seguindo à risca as tradições do Lado Sombrio, ele próprio se encarregaria de construir sua arma, da busca pelo cristal até a fina arte da engenharia. Pensou com orgulho nos protótipos que já desenvolvera, baseados em antigos projetos que remontavam à época do Grande Flagelo de Malachor. Seu sabre seria único, energizado pelo raro cristal que ele viera buscar no planeta sem nome.

Passara os últimos meses estudando com cuidado os registros de mecânica que Snoke lhe indicara. Alguns datavam de centenas de anos atrás, e mesmo assim traziam feitos admiráveis, da mais aguçada tecnologia. Durante a intensa pesquisa, deparou-se com o trabalho excepcional que culminara na armadura de suporte de vida de Darth Vader. Mesmo a máscara já era em si uma obra-prima, mesclando cibernética avançada e alquimia arcana, ao mesmo tempo em que exprimia o temor que um lorde negro deveria causar em seus oponentes.

Kylo ficara tão obcecado pela máscara que conseguira rastreá-la até um antigo stormtrooper aposentado. Esperava que Bazine Netal, a mulher que ele havia contratado para recuperar o precioso objeto, terminasse o serviço assim que ele regressasse de sua própria busca – e esta era a terceira razão que ele possuía para não desistir. Precisava ver, precisava tocar no elmo de seu avô. Kylo Ren tivera de subornar muita gente – e também espancar e até matar algumas criaturas – para descobrir o paradeiro do único resquício da armadura de seu avô. Mas tinha certeza de que valeria a pena, e tentava convencer a si mesmo que perambular por aquela interminável floresta enlameada também seria tão recompensador quanto possuir o elmo de Vader.

A comida havia acabado no dia anterior, exceto por uma única barra de proteína. Ele não contava que ficaria sem transporte para circular pelo planeta: o pouso mal calculado lhe custara o motor e o reator de íons, e ele abandonara o que restara da fuselagem de sua nave milhas atrás. O jovem guerreiro não gostava de pilotar. Algumas vezes se aventurara em um TIE Fighter da Primeira Ordem, mas para a longa viagem até ali tivera de usar uma nave com hiperpropulsor. Conseguira apenas um pequeno cargueiro, o que o deixara ainda mais irritado. Pilotar fazia com que se lembrasse do pai, e Han Solo também era dono de um cargueiro, estupidamente chamado de Millenium Falcon. Riu amargurado ao se lembrar da velha nave e do co-piloto do pai, um improvável wookie. Na verdade, e estranha dupla não passava de dois pobres tolos que, até onde Kylo Ren sabia, continuavam vivendo de tramóias e contrabando pela galáxia.

O riso sumiu quando ele se deu conta de que dificilmente o pai espatifaria sua preciosa nave num pouso amador como o do filho. Odiou a si mesmo por ter sido tão incompetente, um sentimento com o qual já se habituara. Estava sempre cheio de raiva, consumido por uma ira que ele nem sabia de onde vinha. Nunca era forte o bastante, esperto o bastante, habilidoso o suficiente. Temia quase que de modo infantil decepcionar o Líder Supremo, mas parecia fazê-lo constantemente. Sentia-se inepto, um moleque fraco chafurdando em doentia autocomiseração, como agora o fazia na lama. Mais de uma vez Snoke o humilhara na frente de outros membros da Ordem. E o pior, sempre com razão, admoestando-o por seus erros primários. Às vezes sentia-se tão miserável que a Luz parecia tentadora. Poderia voltar para casa, pedir perdão aos pais, ao tio...

Mas então havia aqueles momentos em que a escuridão avolumava-se dentro dele e, arrebatado por ela, conseguia canalizar toda aquela fúria para sentir-se poderoso, invencível. Naqueles momentos lutava com grande perícia e reflexos perfeitos. Via-se forte, tão alto quanto um dia seria, implacável. A sensação era viciante, e fazia com que ele entendesse a forma como Snoke o tratava – encharcado de ódio até os ossos, raivoso e humilhado, Kylo Ren era um condutor perfeito para o Lado Sombrio da Força. Paixões descontroladas não eram antagonistas da Força, como a escória jedi costumava mentir. Paixão e descontrole eram ferramentas, bastava aprender a utilizá-las.

Parou de caminhar por alguns instantes, deixando que as trevas e seu poder o inundassem. Mesmo cansado demais para usar a Força fisicamente, ainda podia se valer das habilidades psíquicas que ela proporcionava. De olhos fechados, viu com clareza a gruta que procurava, não mais que uma cova há cerca de duas horas de onde estava. A poucos metros dela, a lama e as árvores retorcidas encontravam-se com o mar. Mesmo à distância ele podia sentir o cheiro de peixe podre. Nada parecia crescer no lodaçal além dos galhos tortuosos e baixos, que já haviam lhe custado incontáveis cortes e arranhões. Mas ele sabia que um sem-fim de criaturas microscópicas vicejavam na lama. Bactérias, vermes, parasitas, até mesmo crustáceos pequenos demais para se comer. Podia sentir suas fracas vibrações, um formigamento contínuo, tão pequeno quanto incômodo.

A chuva arrefeceu de repente. Ele mal notara a redução no fluxo da água até que este não passasse de gotas grossas e ocasionais. O vento era fraco, ondulando suavemente em seus cabelos negros, pesados de umidade. Mas ainda assim era um sopro frio, enregelando-o por baixo da roupa preta também encharcada. Apenas a Força evitava que pisasse em algum buraco escondido na lama e afundasse até o pescoço na massa de terra cada vez mais fétida. Ainda assim, avançava sem medo. Mais alguns passos e ele pôde ouvir o mar, indolente e vagaroso como se também fosse feito de lama, indiferente a toda chuva que havia caído.

Então os olhos cansados de Kylo Ren divisaram ao longe o aglomerado de galhos onde se escondia a pequena caverna. A lama era agora mais superficial e ele pôde correr até lá, grato ao seu corpo jovem e atlético, gastando suas últimas reservas de energia. Escorregou próximo ao emaranhado de árvores semimortas, ciente de que suas raízes se estendiam por vários metros abaixo do solo. Um dos galhos fez um corte profundo em seu braço esquerdo, mas ele ignorou a dor. A clareira ao redor da gruta deixava óbvia sua entrada. Depois dos quilômetros de natureza intocada que havia percorrido, pareceu-lhe até que os galhos haviam sido podados recentemente.

Ele engatinhou até o local, o sangue deixando um rastro brilhante no chão, rapidamente misturando-se à lama. A caverna era um rasgo bizarro e quase artificial no solo, um poço inclinado com degraus rudimentares escavados direto na pedra, miraculosamente limpos, como se a enxurrada não se atrevesse a escorrer para dentro da fenda. Na borda da gruta já não era mais possível sentir o formigamento dos diminutos seres vivos que habitavam o lodo marrom. Nada crescia no interior do abismo. Ao dar o primeiro passo para dentro da terra, Kylo Ren soube que há um milênio nenhuma forma de vida ousava violar a escuridão.

* * *

Galgou cuidadosamente os primeiros degraus, temendo escorregar outra vez. O silêncio no interior da caverna pareceu-lhe sobrenatural. Era possível ouvir até as gotas de sangue que escorriam de seu ferimento, pingando lentamente na pedra áspera de que era feito o estranho fosso. Conforme Kylo Ren descia, a escuridão o envolvia como um sufocante manto, drenando o que restara de suas forças. Em pouco tempo ele arfava, e à umidade acumulada em seu corpo uniu-se um suor pegajoso e morno. Por fim, toda a claridade desapareceu, levando embora até mesmo a visão proporcionada pela Força. Ele estava completamente cego.

Continuou sua descida, tateando as paredes de pedra. A temperatura elevou-se gradativamente, assim como a escuridão maciça que o oprimia tornou-se cada vez mais pesada. Teve vontade de abandonar sua mochila, mas sem os instrumentos não conseguiria extrair ou tampouco armazenar o cristal. Caminhou para o interior do planeta até perder a noção do tempo, sempre descendo, cada vez mais fundo, mais para baixo, para as profundezas. Logo todo o som também desapareceu, não ouvia nem seus passos cansados, nem mesmo as botas enlameadas arrastando-se pelos degraus de pedra abaixo.

Naquele breu estático, denso como sangue coagulado, ele era a única coisa que se movia. Sua própria mente desligou-se. Sua racionalidade esmoreceu e sumiu, até ele não passar de uma criatura movida apenas pelo instinto, cujo único propósito era afundar naquele vertiginoso buraco, talvez até encontrar o núcleo ígneo do planeta. Lá queimaria até perecer, fundindo-se inexoravelmente à estranha pedra mergulhada no lamaçal, que atravessava o mangue como um primitivo punhal de aço penetraria na carne humana.

Continuou descendo, descendo, descendo... pelo que lhe pareceram dias, meses, anos.

Por uma vida inteira.

E chegou ao fim dos degraus. Uma tênue luz vermelha, como uma estrela solitária a milhares de anos-luz de distância, tremeluziu diante dele. Mas o rapaz (qual era mesmo o nome dele?) tornara-se um só com a escuridão, e mesmo aquele cintilar mortiço foi o suficiente para causar uma dor aguda em seus olhos, que só naquele momento ele se deu conta de ainda possuir. Esfregou as pálpebras rudemente, surpreendendo-se com o líquido que escapou delas. Era salgado.

Eram lágrimas. Ele chorava, mas não era de medo. Não mais.

Piscou e lacrimejou até se acostumar àquela luz vermelha e ser capaz de caminhar na direção dela. O foco do brilho mesmerizante o deixou atônito: a origem de toda aquela luz era ele mesmo, um garotinho de não mais que quatro ou cinco anos, segurando um cristal. Ben Solo. Ao ver sua versão maior e mais velha, o menininho fechou a mão, mas a luz ainda escapava pelas frestas entre seus dedos. O rapaz aproximou-se da criança que ele fôra, e que nunca havia sido, estendendo a mão para tomar o cristal. O menino irrompeu num pranto sentido, que sacudia todo o seu pequeno corpo, fazendo o brilho escarlate oscilar loucamente. Atordoado, Kylo Ren afastou-se, e então ouviu a voz de seu Líder, clara como se Snoke estivesse um passo atrás dele.

— Mate-o.

O garoto chorava alto, desconsoladamente. O barulho era enlouquecedor. Eu não tenho uma arma, o jovem pensou.

— A pedra.

Ele olhou para o chão. Havia um fragmento de pedra diante dele, talvez um pedaço de estalactite há séculos caído do teto. Ajoelhou-se.

Ben Solo continuava a berrar. Tão pequeno. Tão frágil. O símbolo de tudo o que ele queria deixar para trás. Segurou a pedra. Dura. Negra.

Ergueu os olhos para a criança desconsolada, e chorou outra vez, mas silenciosamente.

Dolorosamente.

Ele era aquele menino.

Eu não sou esse menino!

Arremessou a arma improvisada com toda a sua força. De tão perto, ele não erraria. Mirou na cabeça.

O impacto derrubou os dois ao mesmo tempo, homem e menino. Ao cair, a mão infantil e sem vida largou o cristal, que bateu na parede de pedra com violência, trincando como uma casca de ovo.

Mas não quebrou.

* * *

Kylo Ren acordou na fronteira entre o mar e a lama, como uma criatura marítima que tivesse morrido e sido desovada na praia barrenta. Havia sido despertado pela chuva e pelo cheiro nauseante que emanava da água, um sulfuroso odor de peixe. Cambaleou até a beira d'água e vomitou, mesmo sem ter comido nada há... há quanto tempo, mesmo?

Vasculhou sua mochila em busca da barra de proteína que deixara guardada, mas encontrou outra coisa antes. A caixa metálica estava tão quente que quase o queimou. Rasgou parte de sua túnica e envolveu o cubo com os trapos. Não se lembrava de como havia encontrado o cristal, muito menos de como o removera das paredes da caverna. Na verdade, não se lembrava de nada do que se passara depois de ter encontrado a entrada da gruta. Olhou ao seu redor, nem sinal da estranha clareira. Concentrou-se por alguns instantes, tentando se localizar.

Sentiu a Força como uma onda de calor, faiscando ao redor de seu corpo fatigado, rodopiando próxima ao receptáculo que guardava seu cristal. Não ousou abri-lo, não enquanto não tivesse o restante dos instrumentos que restaram na nave. Mas enxergou dentro de sua mente o cristal fraturado e instável, pulsando de modo irregular, assustadoramente belo. Era mais forte que o cristal de qualquer outro sabre que já havia manejado.

Surpreendeu-se prazerosamente quando constatou que a Força restaurou-lhe parte do vigor. Foi tomado de ímpeto e orgulho, e naquele instante decidiu que lugar visitaria primeiro assim que concluísse seu sabre. Um feixe de plasma construído com aquele cristal precisava de sangue jedi para ser batizado, e há anos ele havia jurado se vingar de Luke Skywalker.

Ergueu-se e guardou a caixa com cuidado na mochila. Encontrou e engoliu a barra de proteína em segundos. Soube que estava inexplicavelmente próximo dos destroços de seu pouso forçado. Refletiu que talvez a caverna tivesse uma segunda saída... mas não se importou em entender o que havia acontecido, como percorrera quase todo o caminho de volta em tão pouco tempo. Resoluto, Kylo Ren reiniciou a caminhada até seu cargueiro, onde usaria parte da energia do cristal para emitir uma mensagem de resgate e voltar para casa, para junto do Líder Supremo.

Ainda levaria muitos anos para que pensasse novamente em Ben Solo.


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Notas finais do capítulo

É isso, pessoal.
Espero que tenham gostado. Espero também não ter decepcionado ninguém, mas eu queria uma história mais dramática, focando na construção psicológica do Kylo Ren, nos motivos que o levaram a ser quem é no momento do episódio VII.
Sugestões e correções são, como sempre, mais do que bem-vindas.
Tenho curtido tanto esse Kylo Ren que eu inventei para mim que tenho até pensado em escrever mais sobre ele, hehe. Quem sabe?
Obrigada pela leitura. :)