Ayamare escrita por Miss America, Mrs Days


Capítulo 1
Desculpe-me.


Notas iniciais do capítulo

Ayamare é uma expressão japonesa que significa em tradução literal “desculpe-me”.



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"Querida Sun,

Querido Kim,

Eu definitivamente não sei como começar essa carta. Quando ela chegar até suas mãos, nós não estaremos mais escondidos na minha casa e eu não estarei abraçado com você por debaixo dos lençóis, beijando cada centímetro do seu corpo.

Minha imaginação é fértil e minha mente, mais cruel ainda. Imagino agora o seu belo rosto angelical se contorcendo de tristeza ao ler as palavras que escrevo aqui. Suas sobrancelhas provavelmente estarão franzidas, lágrimas descerão pela sua pele de porcelana e trilharão um caminho dos seus olhos de avelã até as suas bochechas rosadas que sempre foram as minhas partes favoritas em você. Uma de suas mãos estará no coração e a outra, sobre os lábios, como você faz quanto está surpresa.

Desde a época em que começamos a nos ver me surpreendo com o quanto você erra e acerta sobre mim. Teve êxito em descrever minha expressão ao receber essa carta, porém se esqueceu de um detalhe importante: a pontada que meu coração recebe a cada palavra lida.

Infelizmente isso não é uma surpresa acompanhada de flores como eu gostaria, você sabe o meu destino e eu queria que você pudesse sentir a brisa do oceano fazendo cócegas na sua pele como estou sentindo agora. Sei que pode parecer loucura, mas não consigo evitar achar esses belíssimos tons de azul do oceano uma verdadeira obra prima, mesmo sabendo que esse mesmo oceano da cor do seu vestido preferido logo será o meu cemitério.

Eu também cultivo uma imaginação fértil e penso te conhecer o bastante para saber como está se portando ao escrever essa carta. Lábios pressionados, tentando evitar que os seus soluços sejam mais altos do que dos seus colegas, coçando os olhos periodicamente por conta da irritação, os cabelos desgrenhados pelas inúmeras vezes que seus dedos passaram por eles. Eu queria desgrenhá-los também.

A caneta entre meus dedos foi girada milhões de vezes e meus olhos já se cansaram de olhar o papel em branco intocado na minha frente. Meu cérebro está cansado demais e minhas pálpebras estão fechando-se sozinhas. Por mais que eu tente descrever em palavras essa confusão de sentimentos que está aprisionada no fundo do meu peito, eu não consigo.

Sabe que nunca me importei com flores, bombons ou coisas do tipo quando nos encontrávamos. Portanto que visse o seu sorriso, meu dia estaria perfeito. Ainda me recordo do dia em que nos conhecemos. Queria ter dito sim quando me chamou para sair, porém o medo daquilo ser uma piada ou uma alucinação foi maior. Tínhamos sonhos incompatíveis e eu nunca imaginei o quanto nos afetaria. Recorda-se do motivo do vestido azul ser o meu favorito? Você jogou sorvete nele quando saímos pela primeira vez e por mais que tenha lavado e lavado, a mancha nunca saiu. Pensei que essa seria uma prova de que não nos separaríamos.

As imagens de cada momento ao seu lado me trazem lembranças nostálgicas e eu estou com uma imensa vontade de chorar, desejando que o meu avião amanhã de manhã falte combustível ou dê qualquer outro desses problemas imbecis para que eu possa voltar para o aconchego dos seus braços e sentir o seu cheiro que já se tornou familiar para mim.

Você não foi o único a repensar sobre as palavras que seriam postas nesse papel. A pilha amassada e descartada ao meu lado é uma prova visível disso. Nunca fui muito boa com declarações perto de você e não era por descaso ou indiferença. O problema era que, todas as vezes que pousava os meus olhos em você todos os meus sentimentos e emoções – desde as mais primitivas até as mais complexas – se resumiam em três palavras: Eu amo você. E perdi as contas de todas as vezes que repetia isso sem motivo espontaneamente.

Você pode acreditar que não, mas antes deu me ver obrigado a caminhar para frente quando me perguntaram no recrutamento se eu me voluntariaria, pensei em nós dois. Você também sempre me disse que eu era apressado demais e por mais que eu não quisesse entender isso na época, hoje entendo perfeitamente. Aquela iniciativa que tomei foi dolorosa e aquele passo curto com certeza foi o mais longo da minha vida.

Estou tentando ser forte como você me ensinou. A engolir minhas lágrimas, por mais difícil que fosse, porém ao imaginar que está em um avião com hora para partir e sem esperanças de voltas, apenas me sinto despedaça. Uma parte egoísta de mim ainda reza que dê algo errado na hora de partir e você passe por aquela porta para que possamos dizer tudo o que foi escrito cara a cara.

Não tenho mais muito tempo, as luzes já se apagaram no nosso quartel faz meia hora. As lágrimas nesse momento estão molhando o papel e sei que dificilmente eles vão me dar outro, então eu preciso ser o mais breve o possível e necessito tomar cuidado para que minha letra não se torne ilegível. Alguns dos meus companheiros estão soluçando baixinho, sabendo que eles não terão mais uma noite de sono e eu estou aqui, escrevendo no escuro, experimentando a sensação de viajar em um navio pela primeira e única vez.

No dia em que você se voluntariou ser recrutado fui egoísta novamente. Pensei que um sorriso no rosto e um pequeno incentivo te ajudariam, porém acho que os meus olhos me entregaram. Eu não queria que você fosse, mas não iria impedi-lo de realizar seu sonho e sua ambição, por mais que tenha impedido de realizar o meu.

Os soldados disseram para nós que morreremos como verdadeiros heróis e que a segurança, assim como a honra do nosso país, será a recompensa de nossos sacrifícios. Ninguém falou nada nessa hora, mas eu tinha consciência de que por dentro, todos nós estávamos desejando que eles estivessem certos. Eles também nos incentivaram a fazer essas cartas para nos desculpar pelo estrago que causamos nas vidas de nossas famílias e dizer a elas nossos arrependimentos.

Meus pais me visitam todos os dias, perguntando-me se estou bem. Queria poder contar sobre tudo o que aconteceu, desabafar. Porque estou morta, Kim. Desde aquele dia em que você tomou uma decisão que faria bem aos dois, metade de mim morreu. E agora, o que restava de mim acabou de ser enterrado. Sou apenas um corpo com órgãos e funções maquinais.

Eu não tenho mais família desde que perdi todos há muito tempo, você é a única que me restou e é por isso estou escrevendo-lhe esta carta. Todas as palavras aqui são suas e eu sempre soube que nós dois éramos o oposto do outro e que tínhamos cem por cento de dar errado. Você disse “não” para mim quando a convidei para passar uma tarde comigo e desde aquele dia, eu vi que teria que me arriscar e ser persistente caso quisesse chamá-la de minha. Foi uma tarefa difícil, preciso confessar. Nós éramos a água e o vinho, o branco e o preto, o céu e o mar, mas mesmo com todas as nossas divergências eu não desisti.

Acho que ainda não processei o que está acontecendo e tenho medo de quando minha mente e meu coração entrarem em sintonia. Porque você se foi e não pude dizer mais do que aquelas três palavras idiotas. Queria gritar com você, bater em você e xingá-lo, porém a empatia me calou. E agora a dor está me calando. Eu não queria desculpas por uma carta. Queria que você estivesse aqui. Kim, você teve muito tempo para fazê-lo, porém preferiu ignorar o meu sofrimento alegando que era o melhor para nós dois.

Acho que um pedido de desculpas agora seria insuficiente. Minha cabeça foi à loucura quando você disse que estava esperando um filho meu. Eu ainda não tinha colocado uma aliança em seu dedo e nós tínhamos apenas dezoito anos. Éramos praticamente crianças e seus pais, sendo eles descendentes de uma longa linhagem de famílias tradicionais, iriam expulsá-la de casa. Eu não podia deixar isso acontecer por mais que toda célula do meu corpo a amasse e implorasse para que você logo viesse dividir a cama comigo.

Recordo-me do dia em que você me contou sobre ser sozinho. Como quis te abraçar e acolhê-lo, só que se eu fizesse você acharia que era por pena. Não seria por pena. Por isso olhei em seus olhos e prometi a mim mesma que te daria a família que merecia. Seria engraçado ver as pessoas nos encarando com espanto pelo modo como nossa história de duas pessoas oposta se tornou a história de duas pessoas que se amavam e ao fruto desse amor. Mas, depois de tudo o que houve, tem uma parte raivosa de mim que queria que você tivesse desistido de mim ou que nunca tivesse me olhado. Muito menos que aquele maldito sorvete tivesse caído em meu vestido e consolidado o nosso amor.

Nunca pensei que as consequências disso tudo fossem tão catastróficas, mas eu simplesmente não podia deixar que o meu filho nascesse sem a presença do pai. Tenho certeza de que se você continuasse com a criança em seu ventre, seus pais iriam proibi-la de me ver e você seria obrigada a criar o nosso filho sozinha, coisa que sei que você não é capaz. Nunca mais você conseguiria mais arranjar emprego e seria chamada de nomes horríveis, nomes esses que eu entenderia caso eu fosse seus parentes.

Ele era o nosso bebê, Kim. Você me fez quebrar a minha promessa e isso me despedaçou. Era uma maneira de te fazer recomeçar e você me tirou essa oportunidade sem ao menos me dar a chance de questionar. Eu não ligava para os meus pais, que éramos jovens ou qualquer coisa ridícula que me disse naquele dia. Só pensava se ele teria os meus olhos ou os seus. Se seria tão teimoso quanto você ou quieto como eu. Eu nem tive a chance de saber se era menino ou menina. Você não me deixou sonhar.

Talvez você não acredite, mas agora eu me detesto por tais pensamentos e me sinto a pior pessoa que já pisou nesse planeta por tê-la obrigado a fazer o que custou lágrimas, uma vida e consequentemente, uma parte de seu coração.

Adquiri uma rotina na hora de dormir. Primeiro deito-me e olho para o lado, para que pare de idealizá-lo ao meu lado me abraçando, depois passo a mão por minha barriga vazia pensando no que estaria fazendo naquele momento se tivesse dito “não” mais uma vez para você. Querendo ou não, no momento em que você decidiu que não queria o nosso bebê, você decidiu que não queria uma vida comigo.

A dor que me consome é insuportável e hoje penso que sua vida poderia ter sido diferente. Se eu não tivesse aceitado o desafio que era apaixonar por você, você nunca teria me conhecido e estaria agora casada com um marido melhor do que eu jamais poderei ser. Os dois iriam sorrir um para o outro em frente ao espelho enquanto discutem qual vai ser o nome da criança e você nunca iria pensar na minha miserável existência.

Eu te amei, Kim. Jurei que te faria feliz e seríamos unidos. Que te apoiaria nas decisões e que no dia em que neguei sair com você, seria a última vez que diria “não” enquanto estivéssemos juntos. Entretanto esqueci-me de uma coisa importante. Você não me prometeu nada disso.

 Seus olhos estavam inchados de tanto chorar e seu nariz escorria, mas mesmo assim eu me lembro de tê-la achado linda. Seus braços finos que me esquentavam com o seu calor inebriante rodeavam os seus joelhos dobrados e você esquivou-se de mim quando tentei tocá-la e abraçá-la, dizendo que eu era um monstro e que me odiava.

Quer saber a pior parte? Se eu pudesse voltar no tempo, tendo consciência de tudo o que aconteceria, eu faria novamente. Agradeça as boas lembranças que em algumas noites frias sobrepõe as ruins e eu ainda consigo te ver como o garoto por quem me apaixonei e devotei por tanto tempo, não o homem que renegou nossa felicidade e me fez abortar o nosso próprio filho. São poucas noites em que isso acontece, mas ainda assim elas existem.

Seu toque se tornou venenoso para mim, Kim. Suas palavras me enchiam de emoções que deveriam ser proibidas aos seres racionais. Quando você quis apenas seguir como se nada tivesse acontecido – mesmo quando estava bastante evidente o quanto tinha nos destruído – eu te odiei e aquelas três palavras apenas sumiram de meu vocabulário.

Dói dizer que as suas palavras profanadas contra mim eram verdadeiras e saber que você tem nojo de mim por ter destruído o seu sonho de um dia nós formamos uma família é meu maior castigo. Você não fez igual as outras mulheres dos meus colegas de recrutamento e apareceram no porto antes de nós partimos nesse navio com destino ao suicídio, abraçando-os e dizendo que os amavam com lágrimas nos olhos. Minha cabeça deu voltas e eu recordo de olhar uma última vez a terra firme, querendo achá-la na multidão de estranhas para agarrá-la e nunca mais soltá-la.

Você não é um monstro, Kim, apenas medroso. O que mais me fez ter ódio de você foi a sua coragem em dar sua vida para o país, mas se negar a poupar a vida de nosso filho. Só que eu sou medrosa também, de no momento em que te visse partindo naquele barco e minha mente berrasse que seria nosso último encontro, que eu te perdoasse o nosso assassinato. Que eu me perdoasse.  

Sinto muito por tudo. Sinto muito pelo que causei. Sinto muito por eu ser quem fui e a única coisa que eu posso fazer para tentar consertar o meu erro é pedir desculpas.

A culpa não foi sua, apenas minha por ter me apaixonado por você.

Desculpe-me, Sun.

Fico me questionando até hoje se seria diferente se eu não tivesse me negado à debater sobre o nosso futuro. Se eu não tivesse apenas assentido e dito que você estava certo, por ser mais experiente e ter uma outra visão do mundo. Uma visão cruel. Meu espírito está morto, só resta a casca.

Eu queria ter me aberto para você quando tive oportunidade e queria estar em casa, olhando o seu rosto que me fez cego de amor. Queria estar segurando sua mão e acariciando sua pele macia, confortando-a e dizendo que tudo ia ficar bem. Queria sentir os seus lábios pressionados nos meus uma última vez. Queria estar dizendo que  nosso filho irá nascer lindo  e que eu manterei o meu juramento de amá-la até o meu último suspiro.

Não se preocupe, Kim. Iremos nos encontrar o mais breve que acha.

Sei que esta carta não vai chegar a tempo e quero que você saiba, quando meu avião mergulhar em direção aos americanos, eu sussurrei seu nome para guardá-lo para sempre no meu coração e me certificar de que cumpri a minha promessa.

E quando o vento frio me tocar pela última vez não terei medo, pois sei que nos encontraremos e poderemos ter a chance de recomeçar. E quando te ver, sussurrarei o seu nome para que me ache na multidão de pessoas estranhas. Essa é a minha promessa e eu me esforçaria para cumprir.

Kimuro Takana, 11 de maio de 1945.

Sun Yasoto, 21 de maio de 1945."


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