Caderno de ideias escrita por Benihime


Capítulo 26
Sanatorium




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Massachussets, ano de 2022. Jane Swan, uma jovem psicóloga recém formada, recebe uma proposta de emprego em um antigo sanatório chamado Black Thorn, localizado em uma região isolada da floresta Asburnham. Apesar da distância, é uma boa proposta e a jovem a aceita.

A viagem até seu novo local de trabalho seguiu tranquila, e é noite quando Jane finalmente chega ao seu destino. Uma freira taciturna a encontra no portão, uma antiga peça de ferro negro já com algumas marcas de ferrugem, e a apresenta ao lugar. Após um jantar tardio, Jane é guiada até seu quarto, onde adormece quase imediatamente.

No dia seguinte a mesma freira lhe busca para o café da manhã. O refeitório, embora grande, está completamente vazio. Estranhando o fato, a jovem tenta iniciar uma conversa com sua guia, sem sucesso. Mal tendo terminado de comer, foi guiada até um pequeno escritório em uma parte isolada do enorme edifício, onde a freira entregou-lhe uma grossa pilha de prontuários de pacientes.

— Leia todas com atenção. — A mulher ordena secamente. — É melhor que saiba com o que vai lidar.

Jane obedece sem protestar. Os prontuários são muitos e antes que perceba já é hora do almoço. A mesma coisa se repete durante a tarde, com as horas voando em um emaranhado de letras e informações.

Durante uma semana a mesma rotina é repetida, sem variações. Na manhã do oitavo dia, já frustrada, a jovem se atreve a perguntar o motivo de seu isolamento.

— Você está em treinamento. — A freira responde rispidamente. — De jeito nenhum vou deixa-la lidar com qualquer paciente até que esteja pronta.

Por mais uma semana Jane é mantida sob estrita vigilância,  desempenhando pequenas tarefas e lendo documentos sobre o local. Um dia, tendo algum tempo para si, decide explorar e se familiarizar mais com o prédio.

Os primeiros dois andares são desinteressantes, com nada mais do que portas fechadas e poucas enfermeiras circulando pelos corredores. O terceiro andar, no entanto, é diferente. Lá tudo é silêncio, um silêncio pesado que faz companhia ao cheiro de mofo e poeira presente no ar.

Curiosa, a jovem avança devagar e espia por algumas portas entreabertas , comprovando que aquele andar de fato está vazio. Em um dos quartos, com um antiquado chão de tábuas, Jane tropeça em uma tábua solta e tem uma surpresa: sob o assoalho, alguém escondera um diário. O objeto é de couro e parece antigo, como se estivesse ali há muito tempo.

Tomada por um estranho impulso e tirando proveito da momentânea falta de supervisão, a jovem pega o tomo e o leva para seu quarto, onde o esconde entre seus pertences. Naquela noite, finalmente a sós, começa a lê-lo:

17 de Outubro, 1982

Não entendo o motivo, mas o doutor Galen insistiu que manter um diário será bom para mim. Segundo ele, vai me ajudar a lidar com minhas “emoções instáveis”. Bobagem, se quer saber. Como se eu precisasse de um lugar para “ser eu mesma” em que cada sentença que escrevo será lida e analisada, dissecada como um rato de laboratório.

De qualquer forma, meu nome é Dahlia Rivers e sou paciente do sanatório Black Thorn há seis meses. Não me pergunte como cheguei aqui, pois não me lembro de nada antes de acordar nesse lugar. Nada exceto meu primeiro nome. O sobrenome é uma pequena piada interna. Uma das enfermeiras passou a me chamar assim porque o pequeno riacho nos fundos do terreno é um de meus lugares favoritos.

Tudo bem, agora preciso ir. Está na hora dos remédios da noite, e depois vão apagar as luzes.

 

24 de Dezembro, 1982

É difícil se acostumar com o quanto tudo é quieto por aqui. Este lugar é como ser enterrada viva.

Uma das doutoras trouxe um pequeno buquê de violetas para mim como presente de Natal. Ela é nova aqui, mas pelo que vi a maioria já a adora. Talvez eu tente descobrir o nome dela. Definitivamente seria bom ter uma amiga com quem conversar.

Jane revira os olhos, um sorriso se formando em seus lábios. Não precisava ser nenhum gênio para compreender o que havia acontecido. De fato, ao passar os olhos pelas páginas seguinte, capta um rol de elogios à nova médica, cujo nome logo descobriu: Selina. Selina Anderson.

Durante vários meses, segundo o diário, Dahlia e Selina mantiveram uma relação próxima. Não estavam exatamente envolvidas, mas definitivamente flertavam. Ou pelo menos a doutora o fazia com frequência.

 

05 de Julho, 1983

Selina tem sido maravilhosa, exatamente a companhia que sempre esperei ter neste lugar.  Ela diz que sou diferente das outras e que quer me ajudar. Disse que vai embora logo, e que posso ir com ela se quiser. Partiremos no final deste mês. Não vejo a hora de ir embora deste lugar.

 

12 de Julho, 1983

Há algo diferente nela, uma frieza em seu olhar e em suas atitudes que não consigo definir. É como se eu mal a conhecesse, como se ela fosse outra pessoa. Tem alguma coisa errada com aquela mulher. Estou começando a ficar com medo.

Jane ergue uma sobrancelha para o papel amarelado à sua frente, sua curiosidade completamente despertada. Agora sim, ela pensa antes de continuar a ler, encontrei algo que vale a pena.

 

15 de Julho, 1983

Oh Deus, foi horrível! Houve uma grande briga hoje na sala comum, e Mary acabou muito machucada. Mary é uma das pacientes mais antigas daqui, pelo que uma das enfermeiras me contou, está aqui desde que era uma garotinha, e ela gosta de  arranjar problemas com todas as outras.

Hoje, ela e a doutora Anderson discutiram. Selina a atacou! Eu não teria acreditado se não tivesse visto com meus próprios olhos: ela se pôs de pé, pegou um garfo e o cravou no pescoço de Mary.  Ao que parece não foi fundo o bastante para ser fatal, mas mesmo assim foi uma ferida bem feia. O diretor não viu e, quando ele perguntou a todas nós o que aconteceu, todas estávamos assustadas demais para dizer sequer uma palavra. Nem mesmo as enfermeiras e o resto da equipe tiveram coragem de contar a verdade.

 

22 de Julho, 1983

As coisas estão muito estranhas por aqui. Grace, uma das outras pacientes, ultimamente tem aparecido com hematomas enormes. No começo, ouvi as enfermeiras dizendo que ela mesma estava fazendo isso, mas um dos médicos descartou a teoria. Como Grace poderia ter deixado um hematoma no próprio pescoço? Ou nas costas? 

Estou com muito medo. O que está acontecendo aqui? Preciso sair logo desse lugar.

 

24 de Julho, 1983

O quarto de Grace é ao lado do meu. À noite, posso ouvir ela gritar. Ontem, ela escapuliu e veio falar comigo. Está tão magra e tão branca que parece um fantasma., mas mesmo assim fiz o melhor que pude. Acho que ela precisava muito de alguém com quem conversar, já que mais ninguém acreditaria no que ela me contou.

Eu acredito.  Não entendo o porquê, mas acredito.  A história dela faz sentido, de um jeito mórbido e louco. Agora a pobre Grace está apavorada com seus pesadelos, dizendo que “ela” virá pegá-la.

 

27 de Julho, 1983

Todos estão muito agitados hoje. Grace desapareceu e a equipe organizou vários grupos de busca, porém nenhum teve sucesso.

O quarto dela estava trancado por fora, como sempre, e as janelas estavam bem fechadas. Não há como Grace ter fugido. É como se ela tivesse simplesmente sumido no ar. 

Nenhum dos pacientes quer andar sozinho. Estão todos com medo demais para isso.

 

29 de Julho, 1983

Finalmente encontraram Grace. Ouvi as enfermeiras falando sobre isso quando pensavam que estavam sozinhas no pátio. Eu me escondi atrás de umas árvores. Sou muito boa em me esconder, elas nem desconfiaram.

O corpo de Grace foi encontrado na floresta, com quase todos os ossos quebrados e muitos cortes profundos. Disseram que ela com certeza não saiu sozinha, que alguém de dentro a ajudou. Mas quem faria uma coisa dessas?

 

30 de Julho, 1983

Agora Selina está realmente estranha. Hoje, quando perguntei a ela sobre nossa fuga, ela me olhou em silêncio por vários segundos antes de desconversar. E, ultimamente, quase não a vejo. Ela não aparece para as refeições, nunca está no escritório e nem no seu quarto. Eu me pergunto o que há de errado com ela.

 

10 de Agosto, 1983

Ouvi o diretor conversando com um dos médicos. Ele disse que a polícia encontrou algumas marcas estranhas no corpo de Grace. Eu estava espiando por uma fresta na porta, e vi onde ele guardou a cópia do arquivo do caso. Vou vê-la hoje à noite. Sei que não devo, mas simplesmente preciso saber.

 

11 de Agosto, 1983

Quando Grace me contou, parte de mim não quis acreditar. Mesmo agora que vi tudo e li o arquivo, ainda não consigo acreditar.  Meu Deus, como fui burra! Ela é a assassina e cada palavra que Grace disse era verdade.

 

13 de Agosto, 1983

Selina veio me procurou hoje, e eu disse a ela que não quero mais fugir. Ela ficou muito, muito zangada comigo. Disse que sou uma vadia traidora covarde, entre outros insultos. Acho melhor eu manter distância dela de hoje em diante.

 

20 de Agosto, 1983

Selina não tem mais falado comigo desde aquele dia. Ela simplesmente fica por perto, e eu sei que está olhando para mim. Onde quer que eu esteja, sinto os olhos dela. Estou começando a ficar com muito, muito medo.

 

27 de Agosto, 1983

Ela continua a mesma. Sempre por perto, sempre me observando. Às vezes, pelo sorriso que me dá, acho que ela desconfia de que sei seu segredo.

No momento este diário é meu único confidente, pois parei de mostrá-lo ao doutor Galen há meses. Disse a ele que o perdi, e venho mantendo esse caderno escondido. Pelo menos nessas páginas posso ser eu mesma.

 

13 de Setembro, 1983

Há outra garota histérica como Grace. Seu nome é Sarah, e ela só tem treze anos. Não posso deixar isso continuar. Preciso contar o que sei a alguém, pôr um fim nisso de algum jeito.

 

14 de Setembro, 1983

Agora ela com certeza já sabe. O que sei não é mais segredo. Preciso conseguir ajuda, e logo. Estou com medo do que ela vai fazer.

 

Não há mais nada escrito, deixando as últimas duas ou três páginas amareladas completamente vazias. Jane fecha o pequeno livro com capa de couro no mesmo instante em que uma rajada de vento abre a porta de seu quarto tão violentamente que a faz bater contra a parede.

Com um grito de susto a jovem se põe de pé e se apressa a fechar a porta, porém para de súbito, congelada no lugar. Há alguém no corredor.

 — Quem está aí?

Sua voz, mesmo trêmula e baixa, ecoa com clareza cristalina naquele silêncio absoluto.

— Não tenha medo, Jane. — Uma voz familiar soa. — Não vim machucá-la. Pelo menos não ainda.

Jane reconhece a voz da freira que a vem supervisionando, mas não a figura parada à sua frente. É uma mulher alta e voluptuosa, cujos lábios se abrem em um sorriso ao capturar seu olhar.

— Quem é você?

A desconhecida se aproxima. Está agora tão perto que, mesmo na penumbra, Jane nota que seus olhos tem um misterioso tom de âmbar.

— Ora essa, pequenina. — Ela responde num ronronar. — Não me diga que não sabe. Afinal, estava lendo sobre mim.

— Não! — Jane arqueja de choque ao compreender. — Não pode ser. Já fazem trinta e nove anos. Você não pode ser …

— Ah, eu sou sim. Doutora Selina Anderson, a primeira e única. — Ela sorri novamente, estendendo uma das mãos para tocar a ponta do nariz da jovem à sua frente num gesto brincalhão. — Impressionante, não acha?

Jane não pode acreditar nos próprios olhos, que viajam avidamente pelo corpo da doutora. Ela é perfeita, aparentando não mais do que seus vinte e cinco anos.

— Como … — A jovem recém formada mal consegue formar as palavras, tamanha sua surpresa.. — Como isso é possível?

Selina Anderson dá um gracioso passo para trás e estende uma das mãos no que é obviamente um convite. A mão da médica é fria como gelo ao toque de Jane.

A jovem é guiada por uma série de corredores cada vez mais dilapidados até uma passagem sem saída que termina em uma grossa porta de ferro, já enferrujada pelo passar dos anos.

— Sabe onde estamos, pequena Jane?

— Na ala de confinamento.

— Na antiga ala de confinamento. — A doutora a corrige enfaticamente. — Fechada muito antes de eu vir para cá. Agora, somente eu uso este lugar.

Jane olhou em volta, sentindo um arrepio de fria antecipação percorrer seu corpo.

— Usa … Para quê?

Selina Anderson abriu um largo sorriso, revelando dentes muito brancos. Cada um deles terminava em uma ponta afiada como a de uma agulha.

— Você já vai descobrir.

A pesada porta é aberta com destreza e facilidade, revelando uma senhora encolhida em um dos cantos da pequena sala acolchoada. Ela é muito pequena, e tão magra que é possível ver-lhe os ossos por sob a pele. O cheiro de morte e decadência impregna o minúsculo cômodo.

— Minha doce, doce Dahlia. — Selina anuncia carinhosamente. — Ela preferiu ficar aqui, então atendi seu desejo. Uma agonia extremamente deliciosa, devo admitir.

— Como é possível que ela tenha envelhecido, mas você não?

— É possível, minha pequena Jane, porque o sofrimento dela me alimenta. Assim, jamais envelhecerei — Selina abriu mais uma vez um largo e luminoso sorriso, um gesto cheio de malícia. — Curiosa, não é?

Jane nada diz, tomada de surpresa e horror. Seus olhos, porém, expressam um indisfarçável fascínio que lhe rende um gesto de aprovação da demoníaca doutora.

— Como … — Jane engasga de asco ante as palavras em sua boca, ante sua própria curiosidade. — Como é feito?

— Ah! — A doutora exclama, delicada. — É tentador, não é? Ser jovem e bela para sempre …

— Como é feito? — Jane repete, dessa vez com exigência na voz.

— Não é algo que possa ser explicado. — Selina responde mansamente. — Mas pode ser concedido. Permitirei que se junte a mim, pequena Jane, se este for seu desejo.

— Sim, eu desejo. — É a resposta. — Mas … Por que eu?

— Porque … — A doutora demoníaca se aproxima, correndo delicadamente o indicador direito sobre os lábios de Jane. — Sinto uma alma sombria em você. E venho procurando uma companheira há muito, muito tempo.

— Bem … — Não há mais medo, apenas aceitação na voz da jovem Jane. — Eu estou aqui agora.

Selina sorri mais uma vez, então garras afiadas como navalha se enterram no pescoço de Jane e a jovem cai sem vida no chão em questão de segundos.

Inclinando-se para beijar-lhe delicadamente os lábios, a doutora Anderson ergue a jovem nos braços. Muito em breve sua companheira despertará sob uma nova forma.

 


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