Caderno de ideias escrita por Benihime


Capítulo 21
Quinn




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 E aí, quem é o pirado da vez?

Doutora Sommers! Verony, minha assistente, repreendeu, soando escandalizada.

Caramba, Very! Eu ri Cadê seu senso de humor?

Não se brinca com trabalho, doutora.

Revirei os olhos e segui Verony cada vez mais fundo no subsolo, até chegarmos à ala de segurança máxima, a parte mais profunda do Arkhan. Poucos desciam até ali, a menos que ...

Designação especial?

Sugestão pessoal do comissário Gordon. Verony respondeu, contrariada Não sei o que ele estava pensando quando propôs isso ao diretor. Você deve conhecer alguém muito influente.

Ignorei o olhar desconfiado dela e olhei em volta. Estávamos chegando ao final de um longo corredor, no qual havia uma grossa porta equipada com barras de ferro.

Uau. Comentei Isso é mesmo necessário?

É Harley Quinn, a garota do Palhaço. Ela explicou enquanto digitava o código no painel digital que abria a porta.  Por mim, seria a solitária em tempo integral.

Ainda bem que você não é a diretora, Verony.

Sinceramente, aquela mulherzinha inflexível estava começando a me dar nos nervos. Eu não podia acreditar que o diretor a designara como minha assistente.

A porta foi aberta e entrei em um quarto minúsculo onde havia apenas um catre de aparência desconfortável. Lembrava mais uma cela de prisão do que um sanatório. Sua ocupante, uma mulher loira, me fitava com franca curiosidade.

Verony. Cumprimentou amargamente. Quem é a sua amiga?

 Sua nova doutora.  Verony respondeu, parada na porta Expert em eletroterapia.

A loira se encolheu visivelmente, seus olhos azul-pálido se arregalando.

 Verony! — Repreendi, soando um pouco mais veemente do que pretendia.  Saia. Nos deixe a sós, por favor.

A contragosto, ela obedeceu. Me virei e sorri para a loira assim que ficamos sozinhas.

Ignore a Verony.  Eu disse  Ela é uma chata.

 Inveja  A loira declarou, dando de ombros  Já me acostumei.

 Duvido. Aquela ali é osso duro.

Os lábios da moça se curvaram em um sorriso. Não pude deixar de notar que eram cheios e rosados, com um leve formato de coração. Muito bonitos.

 Duro e seco. Osso velho.

Ri da malícia de suas palavras, encostando-me casualmente na parede. Apesar das palavras anteriores de Verony, eu não sentia que a loira fosse uma ameaça.

 E então, loira, qual é o seu nome?

Digo meu nome se me disser o seu, doutora.

É justo. Concordei Sou Lilian Sommers.

Harley Quinn Ela pulou de pé e estendeu uma das mãos num único gesto gracioso, como o de uma acrobata.  Muito prazer.

Trocamos um breve aperto de mãos e pude sentir que a pele de Harley era quente, quase queimando a minha onde encostara. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ouvi Verony me chamar.

Preciso ir. Anunciei Nos vemos por aí, Quinn.

Harley pareceu apreciar minha ironia, e se despediu com um tchauzinho enquanto eu saía.

Dias depois

Os guardas a deixaram e saíram, trancando a porta da sala pelo lado de fora. Harley se jogou no divã, acomodando-se confortavelmente enquanto eu me sentava na poltrona ao seu lado.

E aí, loira? Algo novo?

Fora as caras daqueles guardas?

Não consegui não rir de sua piada, o que fez seus olhos azuis brilharem de prazer.

Ok, então ... Vamos ver ... Peguei algumas folhas em branco.  Paciente pouco colaborativa ... Verbalmente agressiva ...

Mordi meu lábio inferior para abafar uma gargalhada quando ela protestou em voz alta, com medo de que os guardas ouvissem. Eles não podiam desconfiar de que Harley e eu estávamos nos tornando amigas.

Você ... Não escreveu nada aí, não é? Sobre o que eu contei?

Ergui os olhos do que estava escrevendo para encontrar Harley de bruços no divã, com os braços cruzados sobre o encosto da parte mais alta e o rosto aninhado neles, me encarando com curiosidade.

É claro que não. Respondi Você sabe o que escrevi. Eu lhe mostrei.

Ótimo. Ela relaxou e voltou a deitar de barriga para cima, os braços agora cruzados atrás da cabeça.  Obrigada, doutora.

De nada. Quer me ajudar a inventar o relatório de hoje?

Ela negou com a cabeça, de olhos fechados. Parecia tão relaxada que eu podia ficar olhando para sempre. 

Isso não vai ... Complicar as coisas para você ... Vai?

Pouco provável. Respondi, escrevendo rapidamente Sou a única responsável pelo seu tratamento. Eles não tem como acompanhar todos os relatórios. E estou fazendo uma imagem bem favorável. Se quiserem fazer uma avaliação, serei notificada e teremos tempo de repassar os detalhes. Podemos dar um jeito.

Harley sentou-se, me encarando com uma expressão muito séria. Por um momento, ela parecia uma pessoa completamente diferente.

Quer dizer que vai ser tudo mentira?

 É, mais ou menos isso.

Sua expressão séria se desfez em um sorriso enorme, infantil, que logo se tornou uma gargalhada.

Eu adorei essa ideia!

Não pude evitar um sorriso enquanto Harley se empoleirava em um dos braços de minha poltrona, inclinando-se para ler o que eu escrevera. Ela adicionou suas próprias observações, ditando-as para que eu escrevesse. Nós duas terminamos e rimos como crianças. Eu tinha que admitir, aquele esquema era excitante.

Semanas depois

Segurei a lanterna com mais firmeza. Eu detestava quando precisava ficar no Arkhan para o turno da noite. Meus olhos se arregalaram ao ver Harley ser carregada pelo corredor por quatro guardas. Corri até eles, que a levavam para a ala hospitalar.

Tudo bem, rapazes, podem deixar comigo. Falei Vou aplicar um sedativo.

Sedativos injetáveis eram equipamento de sobrevivência. Eu e os outros médicos sempre mantínhamos pelo menos um de prontidão. Os guardas se afastaram e apenas um ficou, ainda contendo Harley. Me inclinei, fingindo procurar a veia em seu braço.

Harley, sou eu. — Sussurrei, baixo demais para que mais alguém ouvisse Calma, ok? Se parar de lutar, vão nos deixar sozinhas.

Ela fixou os olhos em mim por um momento, e temi que não tivesse entendido a mensagem, mas aos poucos parou de lutar. Fui rápida, fingindo injetar o tranquilizante. O guarda me ajudou a leva-la e a colocou em uma maca. Rapidamente amarrei seus pulsos e tornozelos com as tiras de contenção, afivelando-as frouxamente.

Obrigada ... Chequei o crachá do homem à minha frente Hum ... Duncan.

Ele assentiu com a cabeça em sinal de reconhecimento e se retirou. A enfermeira responsável pela ala hospitalar veio até mim, parecendo nervosa.

Suzanne. Cumprimentei Onde está o Dr. Black?

Ele ... Ele está de folga ...

Dava para ver que a mulher estava aterrorizada ante a ideia de tratar Harley. Esbocei um sorriso, tentando tranquiliza-la.

Tudo bem, então. Eu posso assumir por esta noite. Ela está sedada, de qualquer forma. Não deve dar trabalho.

Suzanne corou, e pude ver a ética travando uma batalha com o alívio por trás daqueles olhos castanhos. Por fim, ela cedeu.

Muito obrigada, doutora Sommers.

Ela praticamente correu para longe, deixando Harley e eu a sós. Eu me inclinei na direção da loira, deixando as sombras esconderem meus lábios.

Pode parar de fingir agora. — Sussurrei — Estamos sozinhas por enquanto.

Seus olhos se abriram e um sorrisinho travesso curvou seus lábios.

Não acredito ... Que eles caíram nessa.

Nem eu.  Rebati Você é uma péssima atriz. A pior que eu já vi.

Busquei um pano e um pouco de água para limpar o sangue do corte em sua bochecha. Não era profundo, de modo que apenas fiz um curativo. O verdadeiro problema eram suas costelas. Mesmo sob o uniforme largo do Arkhan, era possível ver a protuberância que indicava uma fratura, talvez mais.

— O que aconteceu, afinal? — Inquiri — Brigou com uma bola de demolição, foi?

Um grandalhão na sala ... Estava falando ... Coisas ruins ... De você. Eu não gostei. Dei ... Uma lição ... Nele.

Meu coração deu um salto ao apreender o fato de que Harley apanhara por me defender. Era culpa minha.

Tente descansar. Recomendei, fazendo o melhor para controlar minha voz. Vou lhe dar algo para a dor.

Não me deixa sozinha Pediu Esse lugar ... Me dá calafrios.

Em mim também. Confessei Relaxe, Quinn. Não vou sair daqui. Eu prometo.

Fiquei ali até Harley enfim cair no sono. Haviam cadeiras disponíveis, para quando os médicos precisavam vigiar pacientes difíceis. Me soltei de Harley e fui em busca de uma dessas, voltando imediatamente para seu lado.

Mesmo inconsciente, uma de suas mãos ainda tateava o ar. Eu a peguei. Harley se aquietou imediatamente. Eu me acomodei melhor, sem nunca soltar sua mão, e acabei caindo no sono sem perceber.

 Acordei na manhã seguinte com alguém sacudindo gentilmente meu ombro. Abri os olhos para ver um homem já em seus cinquenta anos, com gentis olhos escuros e cabelos castanhos que começavam a ficar grisalhos. Adrian Black.

Lilian, passou a noite aqui?

Seu tom foi levemente surpreso, e muito mais admirado. Precisei de um momento para conseguir forçar uma resposta coerente de meu cérebro embotado pelo sono.

Eu ... Ah ... Peguei no sono sem querer. Desculpe, Adrian, não percebi que estava tão cansada.

Tudo bem. Vá para casa e descanse. Seu turno só começa à tarde.

Eu prefiro ficar e esperar Harley acordar. Ela pode ser imprevisível, e é minha responsabilidade.

— Sim, sim, eu soube. O comissário Gordon a designou pessoalmente. De qualquer forma, se acha mesmo que pode fazer isso ...

 É claro que sim. Só preciso de um pouco de café.

Seu comprometimento é admirável, Lilian. Adrian disse.  Apenas lembre-se de não se deixar envolver demais.

O que quer dizer?

Designações especiais tendem a criar laços. É algo extremamente perigoso. Como Harleen Quinzel.

Todos conheciam a história da psiquiatra brilhante que fora seduzida por seu paciente. Ela ocasionou uma regulamentação muito rígida das designações especiais.

Não se preocupe, Adrian. Garanti Minha mente e coração estão seguros.

Ele não respondeu, mas se dispôs a examinar Harley enquanto ela ainda estava sedada. Aproveitei para escapar até a cozinha e tomar uma xícara enorme de café.

Harley só acordou na metade da manhã, quando eu já estava há muito acomodada na cadeira ao seu lado. Seus olhos, ainda desfocados, se voltaram quase que imediatamente à minha procura.

Estou aqui. Eu disse, estendendo uma das mãos e pousando-a em seu ombro Não tente levantar. Você quebrou duas costelas.

Ela assentiu levemente, ainda parecendo confusa.

Passou a noite aqui? Inquiriu, sua voz levemente rouca de sono e dor.

Você me pediu. Respondi, dando de ombros.

Não demorou muito para uma das enfermeiras trazer o café da manhã de Harley: café com leite e sanduíches de queijo. Eu a ajudei a comer, apoiando-a, e depois a fiz deitar novamente.

O grandalhão de quem você falou ontem à noite. — Comecei Quero saber o nome dele.

Ela ficou em silêncio por um longo momento, em seguida soltou um suspiro derrotado.

Aaron. O nome dele é Aaron.

Aaron Curtis? Da ala 3?

É, eu acho que sim. Mas por que isso importa?

Importa porque vou fazer esse idiota ter o que merece. Vou falar com o diretor assim que sair daqui.

Boa sorte. Aaron tem brigado há anos, e o diretor nunca fez nada. Acho que tem medo dele.

Pois vou ser mais assustadora ainda. Rebati Você vai ver. Dessa vez Aaron vai ser punido. Uma semana na solitária e terapias de choque, se eu puder escolher.

Desde quando você é a favor de punições?

Desde agora.

 Isso não é da sua conta, doutora.  Ela declarou  A culpa foi minha. Eu procurei briga.

 Não me venha com essa!  Sibilei.  É da minha conta, sim. E, se não é, vou fazer com que seja.

 Por que?

Porque você é minha amiga, sua idiota! Rebati, irritada Entendeu agora?

A expressão de Harley abrandou imediatamente e ela estendeu uma das mãos para mim, seus dedos longos e finos envolvendo meu pulso num aperto delicado.

Desculpe. Ela disse suavemente Eu não quero brigar com você.

Tudo bem. Cedi, voltando-me para ela novamente Chega de discutir.

É verdade?  Harley inquiriu depois de alguns segundos de silêncio.  Me considera mesmo uma amiga?

Claro que sim. Pensei que você já tivesse percebido isso, sua cabeça de vento. — Tive que rir, afastando alguns fios de cabelo loiros de sua testa.  Você é mais boba do que pensei, Quinn. Ou vai ver a surra afetou seus miolos.

Harley ergueu a mão livre para bater na minha, mas ela também estava sorrindo.

(...)

Aproximei-me da janela, aproveitando os raios de sol do final da tarde, contente que o dia finalmente estivesse chegando ao fim.

Uma batida na porta me lembrou de que o turno ainda não acabara. Havia trabalho a ser feito. Dois guardas praticamente empurraram Harley para dentro. Eu me apressei e a apoiei enquanto ouvíamos a porta ser fechada.

Já fazia algumas semanas desde que ela quebrara as costelas e o ferimento estava melhorando rápido, embora Harley ainda sentisse dor.

— E aí, como a minha garota está se sentindo hoje?

— Melhor. — Ela respondeu, sentando-se cuidadosamente no divã — Não dói tanto se eu ficar quieta. E você? Parece cansada.

— Está assim tão ruim?

— Depende. — Ela zombou — Se zumbi for o que você considera ruim ...

— Tá, já entendi. — Interrompi, rindo — Credo, Harley!

— Vem cá. — Ela chamou, dando uma palmadinha no espaço ao seu lado — Sei como melhorar isso.

— Tem certeza?

— Ah, vamos, doutora! — Exclamou, fazendo beicinho. — Confie um pouquinho em mim.

Cedi e me sentei ao seu lado, de costas como ela pedira. Harley soltou meu cabelo do coque cuidadosamente feito que eu usara o dia todo e deixou escapar uma exclamação de prazer.

— Ruiva! — Exclamou, suas mãos correndo entre meus cachos — Uau! Eu nunca imaginaria.

— Você já viu meu cabelo várias vezes, Harley.

— Não solto. — Ela rebateu — Isso muda a cor. Eu pensava que era castanho arruivado, mais escuro.

— Essa era a ideia.

— Por que? Do que está se escondendo?

— Quanto menos souber sobre isso, melhor para você.

Harley não discutiu, o que achei muito estranho. Ao invés disso, senti suas mãos pressionando minhas têmporas. Mesmo a leve pressão me fez gemer alto com a dor.

— Relaxe — Harley disse — Feche os olhos e relaxe, doutora.

Lembrando de algumas longínquas aulas de ioga, fechei os olhos e sincronizei minha respiração com o ritmo de minhas batidas cardíacas.

Seus dedos hábeis tinham um toque de pluma. Aos poucos, a tensão foi cedendo e a dor de cabeça passou.

— Melhorou?

Abri os olhos e me virei para encarar Harley. Vi preocupação sincera naqueles olhos azuis.

— Melhorou — Respondi — Obrigada.

— Eu que agradeço. — Ela sorriu — Você é a única pessoa legal daqui.

— Não mesmo. — Rebati — Verony é legal, também.

— Tão legal quanto um dragão.

Nós duas rimos. Fui até minha mesa, peguei o pote que mantinha escondido em uma das gavetas e nós duas nos servimos dos biscoitos recheados.

— Onde aprendeu aquele truque, afinal? — Inquiri — A massagem.

Harley não respondeu de imediato e, quando enfim me olhou, parecia haver alguém completamente diferente por trás daqueles olhos azuis.

— Também já fui psiquiatra. — Revelou, seu rosto ensombrecendo — Isso é, até me apaixonar pelo homem errado.

— Nunca é tarde demais para consertar um erro, Quinn.

— Só se ele estiver morto.

O clima na sala se tornara pesado, opressivo. Harley encarava o céu pela janela, torcendo distraidamente uma mecha dos cabelos loiros tingidos de azul e rosa.

— Boa — Rebati, fingindo entusiasmo — Com qual arma?

Ela voltou a me olhar e finalmente reconheci minha amiga maluca quando Harley riu.

— Me solte que eu arrumo uma. Qualquer uma serve, contanto que seja bem grande.

— Bela tentativa, garota. Não vou jogar esse jogo com você.

— Ah, vamos, doutora! — Ela fez beicinho de novo, me provocando — Vai ser divertido.

— Desista, maluquinha.

Eu ri, mas me surpreendi ao perceber que realmente estava considerando a opção. Não o assassinato, claro, mas a fuga. E, sinceramente, a ideia não me parecia nada ruim.

Semanas depois

Agradeci aos céus por ter conseguido tirar Harley do confinamento de nível máximo e transferi-la para o segundo andar. As acomodações ali eram melhores. É claro, eu tivera que lançar mão de um argumento que jurara nunca mais utilizar, mas valera imensamente a pena.

Minha mão paralisou a milímetros da maçaneta do "quarto" de Harley. Apurei os ouvidos, tentando distinguir o que me fizera parar. Vozes. Uma discussão sussurrada.

— Acabou — Eu a ouvi dizer — Me deixe ir.

A nota de pânico era bem óbvia em sua voz. Seja lá quem estivesse com ela, era alguém que a aterrorizava. Alguém do submundo de Gotham?

— Nunca — Uma voz masculina soou — Você me deve, docinho. Você é minha.

Gelei até os ossos ao reconhecer aquela voz. Minha mente deu voltas, tentando entender como ele conseguira entrar, mas logo deduzi que o príncipe do crime devia ter aliados em todos os lugares.

— Não sou mais!

Uma risada maníaca soou, algumas palavras ininteligíveis, Harley gritou e então algo pesado caiu. Tentei abrir a porta, mas algo a bloqueava por dentro. Mãos me seguraram antes que eu pudesse tentar arromba-la. Só resisti por um segundo, até reconhecer a silhueta sombria.

— Vá. — Batman disse — Tire os outros daqui e chame Gordon. Rápido!

— Mas Harley ...

— Eu cuido dela. Vá!

Obedeci, correndo o mais rápido que podia, minhas mãos discando automaticamente em meu celular.

Minutos depois

Parada entre a multidão reunida no pátio externo do Arkhan, eu estava impaciente. Batman não retornara. Onde estava Harley?

De repente uma figura apareceu na porta principal. Reconheci imediatamente a silhueta sombria recortada contra as chamas, carregando nos braços alguém inconsciente.

— Harley!

Minhas pernas agiram sem um comando, levando-me direto até eles. Arquejei ao ver a extensão dos ferimentos de minha amiga. Ela nem ao menos parecia respirar.

— Ela está viva — O morcego garantiu. — Vai se recuperar.

Meu alívio foi tanto que a corrente de adrenalina que me mantivera até ali se desfez. Misericordiosamente, senti que estava perdendo os sentidos.

Acordei desorientada e a primeira coisa que vi foram cabelos ruivos, presos em um rabo de cavalo. Eu reconheceria aquilo em qualquer lugar. De fato, assim que consegui focar no rosto de quem estava ao meu lado, eu a reconheci.

— Barbara. — Minha voz estava baixa e rouca, mas a ruiva me escutou — Barbara, o que aconteceu? Onde estou?

Barbara Gordon fixou em mim seus olhos azul-esverdeados.

— Papai e eu a trouxemos para casa. — Informou — Do que você se lembra, Lilian?

— Eu me lembro do incêndio ... Batman ... E ... Ah, meu Deus! Harley!

— Ela está bem. Foi levada ao hospital.

Barbara me alcançou um copo de água e me ajudou a sentar. Suas mãos seguraram as minhas, me ajudando a ingerir o líquido.

— Barbara, tem uma coisa que preciso que Batman saiba. — Declarei — Antes de o incêndio começar ... Eu o ouvi no quarto de Harley. Coringa estava lá.

— Coringa? — Sua surpresa foi evidente — Tem certeza disso?

— Absoluta. Eu ouvi o que estavam dizendo, pouco antes de tudo acontecer.

— Vou dizer a ele. — Garantiu — E você tente descansar. Bateu a cabeça quando caiu.

— Eu estou bem. — Asseverei — Tenho que ir ao hospital. Preciso ...

Uma das mãos de Barbara pousou em meu ombro, restringindo-me. Mesmo presa a uma cadeira de rodas, aquela mulher era forte.

— Hoje não, Lilian. Durma e espere até amanhã.

Apesar da adrenalina eu estava muito cansada, e acabei mesmo cedendo ao sono.

No dia seguinte

Segurei gentilmente a mão esquerda de Harley, a que não sofrera queimaduras tão graves. Bolhas se espalhavam por todo seu corpo e ela usava uma máscara de oxigênio devido a inalação de fumaça.

Mãos pousaram em meus ombros. Virei-me rapidamente e encarei Batman.

— Barbara me deu seu recado — Ele informou, direto como sempre. — Tem certeza de que era o Coringa?

Assenti, sem querer falar mais sobre o assunto.

— Estou com medo. — Confessei — Aquele ... Aquele louco não vai parar. Arkhan não é seguro.

 

Batman tirou a máscara, revelando o rosto que eu mais amava no mundo. O rosto de meu irmão.

— Eu vou tira-las de lá. — Ele garantiu. — E o Batman as manterá seguras.

— Obrigada, Bruce.

Ele apenas abriu os braços, e me deixei ser abraçada, escondendo o rosto naquele peito largo. Eu sabia que ele sempre me protegeria.

Um mês depois

Entrei no quarto de Harley e ela sorriu ao me ver. Suas queimaduras estavam bem melhores, não sendo tão graves quanto pareceram a princípio. Eu sabia, inclusive, que ela receberia alta a qualquer momento.

— Oi, doutora.

— Oi. — Respondi — Sei que já pedi para me chamar de Lilian.

Harley corou levemente.

— Desculpe. Ainda não me acostumei.

— Relaxe, garota. — Eu sorri — E aí, como se sente? Bruce disse que você provavelmente vai ter alta hoje.

— Bruce? Bruce Wayne? — Sua voz subiu algumas oitavas com a surpresa — Você o conhece?

— Talvez melhor do que eu mesmo.

Harley e eu pulamos de susto ao ouvir a voz vinda da porta. Bruce Wayne estava parado ali, casualmente encostado no batente com um sorriso diabólico.

— Bruce! — Eu sorri — Pensei que estaria fora da cidade até a semana que vem.

— Sem chance — Ele respondeu — Tenho uma promessa a cumprir aqui.

— Você é o melhor, Bruce. De verdade.

— Vá se trocar — Meu irmão disse apenas, entregando-me uma sacola grande — Alfred está esperando na saída dos fundos.

Assenti e entrei no banheiro anexo. Bruce separara um uniforme de enfermeira, completo com máscara.

Quando saí do pequeno banheiro encontrei Harley vestida em um uniforme idêntico. Ao invés de máscara, porém, ela usava óculos de aros grossos que disfarçavam suas feições.

— Bruce já foi?

— Já. — Ela respondeu — Mas o que diabos está acontecendo, Lilian?

— Eu explico no caminho. — Prometi — Agora, preciso que confie em mim. Vamos!

Ela hesitou, mas enfim assentiu. Quando estava prestes a sair do quarto, segurei seu pulso.

— Ainda não. Falta uma coisa.

Seus olhos escureceram quando me aproximei. Forcei-me a ignorar o desejo, endireitando a gola de seu uniforme, ajeitando seus óculos e prendendo atrás de sua orelha uma mecha de cabelo rebelde que escapara do coque.

— Agora sim. — Declarei — E tente agir naturalmente.

Como prometido, Alfred nos esperava em um discreto Mercedes preto. Embarquei no banco de trás com Harley e o velho mordomo sorriu para mim pelo retrovisor.

— É um prazer revê-la, miss Wayne.

— É bom vê-lo também, Alfred. — Eu sorri — Como vão as coisas? Bruce tem dado trabalho?

— Bem, a senhorita conhece o patrão Bruce. Ele sempre foi ... Um espírito independente.

Ri com gosto da resposta de Alfred.

— Lilian. — Harley interrompeu antes que eu pudesse falar. — Você me deve uma explicação.

— Sim, eu devo. Pergunte o que quiser.

— Você e Bruce Wayne são ... Próximos? Tipo ... Estão juntos?

Achei graça que aquela fosse sua primeira pergunta, a primeira preocupação.

— Não. Credo! — Eu ri — Bruce é meu irmão mais novo. Meu nome verdadeiro é Eleanor Wayne.

— Mas por que nunca me disse? Por que mentiu?

— Eu fugi, Harley. Quando tinha dezoito anos. Alfred e Bruce me ajudaram a construir minha nova identidade, e desapareci. Por isso não podia usar meu nome verdadeiro. Só retomei contato com meu irmão depois que nossos pais morreram, mas é claro que ninguém podia saber o que fizemos. Para todos os efeitos, Eleanor Wayne morreu no mesmo ano em que Thomas e Martha.

— E ... Para onde estamos indo?

— Para um lugar seguro.

Seguro e bem longe de Gotham. A viagem durou horas, horas de percurso silencioso. A certa altura, Harley começou a bocejar.

— Tente dormir — Eu lhe disse — Ainda falta um pouco para chegarmos.

Surpreendendo-me, ela apoiou a cabeça em meu ombro e fechou os olhos. Ri baixo, passando um braço por sua cintura e apoiando meu queixo no topo de sua cabeça. Não sei dizer quem de nós dormiu primeiro.

Forcei minhas pálpebras pesadas a se abrirem e olhei em volta, confusa. Levou alguns segundos para as lembranças voltarem.

Acordo com a mão grande de Alfred em meu ombro.

— Chegamos, senhorita.

Forço meu cérebro embotado a reagir, sacudindo levemente o ombro de Harley para acorda-la. Não surte efeito.

— Vá na frente a acenda as luzes, Alfred. Eu cuido dessa dorminhoca.

Alfred obedece. Respiro fundo, reunindo minhas forças, e então pego a loira no colo. Ela é bem mais leve do que imaginei.

Ao entrar vejo que o velho mordomo já acendeu as luzes do andar de cima. Posso ouvi-lo no quarto de hóspedes, e é para lá que me dirijo.

Alfred acendeu a luz e já arrumou a cama. Ao me ver com Harley ele gentilmente a toma de meus braços, deitando-a na cama. Eu a cubro e saímos silenciosamente.

— Obrigada, Alfred. — Digo — Por tudo.

— É um prazer, senhorita. — Ele responde — Precisa de algo mais?

— Só de um bom descanso. E você também, meu amigo.

Alfred assente, me dirigindo um leve sorriso.

— Boa noite, senhorita.

— Boa noite, Alfred.

Dirijo-me até a porta no final do corredor decorada com flores azuis. Meu antigo quarto. O local foi mantido exatamente como era doze anos atrás. As cortinas de renda. As paredes azul-claro. A colcha colorida sobre a cama. Os móveis brancos. Os livros e os bichos de pelúcia na estante. Meu porta-joias aberto sobre a penteadeira. Cada objeto traz de volta antigas lembranças.

Vou até a cômoda de madeira e abro a primeira gaveta. Como pensei, meus pijamas ainda estão aqui. Agradeço silenciosamente por meu corpo ainda ser o mesmo, escolho um e troco de roupa. Não muito depois, ouço uma batida na porta. Eu reconheceria essas batidas firmes em qualquer lugar.

Alfred entra no quarto com uma xícara da qual sobe fumaça, e o cheiro imediatamente me atinge. Chá de camomila.

— Imaginei que precisaria disso, senhorita.

Seu gesto me emociona. Alfred sempre fora como um pai para mim. O único que realmente conheci.

— Obrigada, Alfred. — Faço o meu melhor para sorrir — É ... Difícil voltar aqui.

O velho mordomo me conhece como ninguém, e me distrai com uma de suas histórias de guerra enquanto bebo o chá. Como se ainda fosse uma garota, permito que Alfred me coloque na cama e adormeço sem nem perceber.

Sentei na cama, penteando meus cabelos com os dedos para tentar domar a confusão. Levanto, me visto e desço para a cozinha. Alfred já está lá, e o cheiro de ovos com bacon é irresistível.

 Bom dia, senhorita.  Ele diz ao me ver  Teve uma boa noite?

— Surpreendentemente boa.  Respondi  Alfred, você não precisava ...

 Sei disso — Foi a resposta — Mas eu quis.

Acabei rindo. Alfred não mudara nem um pouco. Ele sempre gostara de me mimar, talvez mais do que eu merecia.

— Você sempre me mimou demais.

— Nesse ponto nós concordamos.

Me virei na direção da voz e ali estava ele: Bruce. De jeans, sem camisa, pés descalços, com uma xícara de café nas mãos e um sorriso enorme. Era como se o tempo não tivesse passado, como se ainda fôssemos crianças.

— Bruce! O que está fazendo aqui?

 Além de checar se minha irmã está bem? — Ele zombou  Vim buscar meu cúmplice no crime.

Ele e Alfred trocaram um olhar significativo e eu ri, aceitando o copo de suco de laranja fresco que o mordomo me estendia. Bruce, Alfred e eu tomamos café da manhã juntos e eles partiram logo depois.

 Tem certeza disso, Lili?

 É claro, Bruce — Eu sorri  Vamos ficar bem.

Não pude evitar um arrepio de expectativa ao proferir aquelas palavras, sabendo que ficaria sozinha com Harley por tempo indeterminado.

 Semanas depois

Harley desligou a televisão e suspirou com enfado. Ergui os olhos do livro que estava lendo.

— Já entediada, Harl? — Provoquei.

 Já. — Ela reclamou, deitada de bruços no sofá, suas pernas balançando no ar. — Aqui não tem nada pra fazer.

— Tem sim.  Discordei, só para implicar com ela  Que tal ler um livro?

 Chato!

Eu ri alto. Minha principal diversão nas últimas semanas tinha sido provoca-la. Nossas discussões sempre acabavam em algo divertido, como uma guerra de travesseiros ou um torneio de pega-pega.

— Eu não acho  Continuei  Ler é bom. Aliás, esse livro é ótimo.

— Deve ser. — Harley rebateu, fazendo biquinho — Você está lendo quase o dia inteiro.

Ao invés de responder, fingi estar concentrada no livro. Ouvi quando Harley pulou de pé e um momento depois ela arrebatou o livro de minhas mãos.

 Nada disso — Ela declarou — Você oficialmente virou uma chata, Lilian.

— Chata? Chata, eu?!

 Chata, sim.  Insistiu — E é por isso que eu declaro: chega de livros por hoje.

 Harley, me devolva. Eu quero terminar a história.

 Não. Se quiser, venha pegar.

Ela disparou pela casa e eu a segui, subindo a escada de dois em dois degraus. Harley me enganou e deslizou pelo corrimão de volta ao primeiro andar antes que eu conseguisse pega-la, disparando porta afora até o jardim.

 Você não me pega! — Gritou.

 Ah, espere só!

Corri atrás dela até o jardim e serpenteamos entre as arvores até nenhuma das duas aguentar mais. Fui a primeira a desistir, me jogando na grama.

— Já ... Chega. — Ofeguei — Estou ... Ficando ... Velha.

Harley se jogou ao meu lado, soltando uma risada distorcida pela falta de ar.

 Eu ... Te ... Disse.

Estendi uma das mãos e bati em sua perna, aproveitando o fato de que ela usava um short curto. O tapa a faz dar um gritinho.

 Ei!  Exclamou — Malvada!

 Você ... Começou.

Nós duas apenas ficamos ali deitadas até recuperarmos o fôlego. Em algum momento, Harley se deitou por cima de mim, sua cabeça em minha barriga. Uma de minhas mãos começou a brincar em seu cabelo.

 Quer saber?  Eu disse, assim que me recuperei — Você merece uma punição por roubar meu livro.

Eu fui rápida e girei para ficar por cima dela, prendendo seus quadris entre minhas pernas e seus braços acima da cabeça com uma das mãos.

 É mesmo? E o que você vai fazer?

 Nada  Cantarolei inocentemente. — Só ... Empatar o jogo.

Ela demorou um segundo para perceber minhas intenções antes que eu começasse a lhe fazer cócegas. Harley ria e se contorcia sob mim, me implorando que parasse, mas eu não queria parar. Aquilo era bom demais.

— Não, não.  Rebati  Você foi uma menina má, agora vai aguentar o castigo.

Não sei como aconteceu. Num segundo ela estava rindo, e no outro suas mãos agarraram minha blusa, puxando-me para si. Nossos lábios se encontraram. O gosto dela era como pimenta na língua. Eu poderia ficar ali para sempre, não fosse o toque de um telefone dentro de casa.

Harley foi a primeira a se levantar, correndo para dentro. Eu deixei, e continuei ali, ainda tentando entender que diabos acontecera.

 Eleanor!  Eu a ouvi chamar, pouco depois  Ellie! Você não vai acreditar!

 O que foi, Harl?

Antes que eu me desse conta ela estava sentada de pernas cruzadas na grama, ao meu lado.

 Coringa está morto! — Anunciou  Seu irmão acabou de ligar para dar a notícia.

Suas palavras fizeram meu peito se retorcer de dor.

— Isso quer dizer que podemos voltar a Gotham. Podemos recomeçar.

Seu sorriso sumiu e ela voltou a deitar com a cabeça em minha barriga.

 Não, Ellie. Eu não quero voltar.

 E não precisa. — Declarei  Bruce e eu cuidamos de tudo. Pode ir para onde quiser, recomeçar a vida.

— E se eu quiser ficar aqui com você?

— Então fique, se é mesmo o que você quer.

Harley riu, girando para ficar de bruços e me beijar mais uma vez. Dessa vez, eu correspondi.


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