Castelobruxo - Aliança Enfeitiçada escrita por Éden


Capítulo 10
Capítulo 8 - Colombina, Arlequim & Pierrô [1 de 3]




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Miguel se esforçou para sair da cama quando o galo cantou, melancolicamente, uma música triste qualquer de Beethoven. Era tradição na escola que, quando alguém importante falecesse, o galo cantasse a música favorita deste. Era tradição também que uma música carnavalesca, uma marchinha, fosse cantada no dia que marcava o começo do carnaval, para Miguel era hoje, mas música nenhuma diminuía o clima triste por conta da morte no dia anterior. O rapaz nem chegou a conhecer o professor Petrônio, viu ele apenas no seu primeiro dia na Castelobruxo, na cerimônia da Dama de Quatro Pontas, onde se descobriu infante. Ele era um homem alto e maduro, tinha barba e cabelos grisalhos e andava sempre com a varinha presa a uma bainha na cintura, como uma espada. Segundo o que todos diziam, ele não era o tipo de bruxo que se entregaria a morte facilmente, então custam acreditar que ele tinha se matado e custam mais ainda aceitar que ele fora assassinado. Estava tudo muito misterioso, mas o que não saía dos pensamentos de Miguel era a marca na mão do professor, identifica a do seu muiraquitã, que ele deu por desaparecido depois que a cópia que fizera na aula de feitiços se desfez.

Era a hora de levantar e seguir. Ele se pôs de pé, foi para o banheiro, tomou banho e vestiu seu uniforme colorido ao som de “Jardineira”, uma marchinha de carnaval. Ah! Ele adorava carnaval. As músicas, as cores, os enredos..., mas, bem, nesse clima terrível da escola, ele esperava que todos estivessem pouco animados para uma comemoração carnavalesca. Ele estava errado, pois, ao olhar da janela do quarto, viu uma multidão de alunos zanzando pelo pátio, acompanhados de professores e usando roupas informais. De uma coisa Miguel tinha certeza: Nada abala a Castelobruxo.

Sorriu, voltou ao banheiro e colocou uma roupa diferente, seu vestuário típico de casa: camisa azul escuro, com “I’m Gonna Marry” escrito na frente e “The Night” atrás, acompanhada da foto da Lady Gaga; uma bermuda jeans qualquer e tênis, bem clichê mesmo. Se espreguiçou e tirou o gel dos cabelos, hoje seus cachos ficariam soltos. Voltou ao quarto e se surpreendeu ao ver que os amigos já estavam de pé.

− Bom dia – ele disse, sentando em sua cama e pegando o livro “Segura essa poção aí, mon amour” e a varinha de andurá com pena de anjo. Os amigos lhe lançaram sorrisos forçados. Visivelmente todos estavam abalados com o ocorrido com o professor, muito porém, queriam sorrir e dar as boas-vindas a comemoração mais amada da escola.

− Ah... hoje começam as preparações, − começou Fernando, trocando o pijama por uma roupa mais informal, camisa xadrez e calça justa. Algo dizia a Miguel que Leonel, o irmão de Doralice, usaria algo parecido – Soube que Javalentes e Arabelos se juntaram para o bloco. Aquelas araras são tão perfeccionistas quando o assunto é beleza que nossa vitória tá garantida.

− O problema mexmo é que a gente é meio estressado e eles são avoados. Eu sou deboa com essa união, mas sempre tem um Bernardo para reclamar – disse Rodrigo, também se vestindo com roupas informais: uma bermuda, camisa de abotoar branca e chinelo de dedo. Miguel estava meio perdido na conversa, mas pelo que ouviu de Maria Flor, cada ano tem uma competição carnavalesca e duas casas se juntam para criar um desfile, com direito a tudo, enredo, alegoria e fantasias. Aparentemente, Javalis e Araras estavam juntos esse ano, o que significava: Nada de Maria por perto.

− Bom, yo estou super ansioso com tudo – disse Diego – sempre quis conhecer o Carnaval – e depois se foi para o banheiro e se trancou. Miguel pegou seus materiais e se espreguiçou, se pôs de pé e caminhou até a porta, Rodrigo agarrou seus livros e correu atrás do amigo, Fernando preferiu esperar Diego.

Desceram pelo elevador sentimental, que também estava triste e desanimado, desceu normalmente e, no final do trajeto, atirou confetes e serpentinas na dupla, sem animação alguma. Carioca falava incansavelmente sobre tudo que Miguel precisava saber sobe o Carnabruxo, mas o rapaz estava tão avoado e sem vontade de ouvir tudo que escutou o essencial e fez uma lista mental:

1 – O carnaval dos bruxos dura três dias, sendo os dois primeiros dedicados a preparação e o último para a comemoração em si. 2 – Magia direta era proibida, mas nada impedia o uso de artefatos mágicos. 3 – Na Castelobruxo havia a tradição de que os bruxos se vestissem a) como seus antepassados ou b) com alguma figura histórica que vejam semelhança consigo. Miguel não sabia sobre seus antepassados, tampouco sobre alguma figura histórica como ele. Rodrigo, por sua vez, já tinha sua fantasia em mente:

− Demétrius Pavanelli – comentou orgulhoso – O primeiro Pavanelli a chegar na América, mesmo que todos só deem destaque para o irmão dele – ele fez uma cara de nojo ao sibilar – Denterno Pavanelli, que era um exibido bobão.

− Como você sabe que foi esse tal Demétrius?

− Ele era o inteligente, Miguel. Meus irmãos lá da Itália estavam pesquisando a família mais a fundo e descobriram isso. Denterno era o bonitão, que só tinha palavra, e Demétrius era o que ia e fazia. Eles vieram juntos dos irmãos Aquiller – Rodrigo deu uma risada – Nem esses irmãos levaram a parte deles na fama, se você ver nos livros de história só se fala do Denterno e... – e Rodrigo percebeu uma certa distração de Miguel – Você tá meio calado. Já sabe qual fantasia usar? – questionou. Miguel lhe olhou de relance e coçou os cabelos.

− Não faço a mínima ideia – respondeu aos risos baixos.

Após caminhar pelo pátio chegaram a torre Arabela, cuja presença ilustre de Tijuca, acompanhado por Leonel, os recebeu. Miguel corou no mesmo instante.

− Como vai o infante da Castelo? – disse Tijuca, jogando a caixa cheia de plumas e tecidos que segurava no chão. Miguel olhou para Rodrigo sem saber o que fazer, então forçou uma risadinha. Tijuca estava muito mais bonito que de costume. Usava uma regata vermelho claro, calça jeans e sapato. Havia aparado a barba e exalava cheiro de colônia masculina. Leonel estava com um estilo parecido com o de Fernando. Miguel acertou sua pressuposição.

− Vou be-bem – respondeu Miguel, corado, alisando os cachos. Tijuca, sem inibição alguma, passou as mãos no cabelo do rapaz, os atrapalhou, agarrou a caixa e, prestes a ir, deu um passo para trás e encarou Miguel com um sorriso.

− Não sei se você já escolheu sua fantasia, mas saiba que você ficaria ótimo de Dom Portugal... – e gargalhou, caminhando em frente. Leonel foi atrás e Miguel respirou envergonhado. Depois, olhou de relance para Rodrigo com um sorriso envergonhado, mesclado com uma leve confusão.

− Já sei. Você não sabe quem é Dom Portugal – ponderou Rodrigo, Miguel assentiu, ainda corado. O meio elfo deu uma risadinha e voltou a caminhar, o amigo foi atrás – É meio que uma lenda da Castelobruxo. Ele era o filho bastardo de um rei, mas não tinha direito ao trono, muito porém, tinha sua parte na herança e a rainha não ficou alegre com isso, mandou caçar a mãe e seu filho...

− Malvada.

− Você nem imagina o quanto.... Enfim, a mulher e seu filho correram para a floresta. Ela acabou tendo o azar de encontrar uma cobra no caminho e ser picada por ela. Imagina, uma mulher morrendo envenenada e uma criança na mata. Ela morreu rapidamente e seu filho zanzou até parar nas margens de um rio, onde uma linda sereia o acolheu e previu que no futuro ele salvaria seus súditos do fogo, porque ele era a água. Se bem que dizem que essa previsão era sobre outro príncipe, mas enfim.... Vinte anos se passaram e a Castelobruxo foi atacada por uma serpente de fogo gigantesca: o boitatá. Os bruxos naquela época não tinham suas varinhas próprias até completarem dezoito anos e por isso usavam varinhas emprestadas de um estoque, que foi incinerado pelo bicho. Estavam sem poder se defender, então clamaram por ajuda, que veio da água. O bastardo do rei, que já era moço, imergiu das águas para ajudar seu povo.

− E como ele era?

− Ah, dizem que ele tinha cabelo cacheado, pele em tom de oliva e era alto. Agora que tô pensando, você se parece bastante com ele... Bom, voltando a história, ele imergiu das águas completamente despido, levando consigo apenas uma espada que ganhou de presente do trovão e da areia, uma espada espelhada. Chegou a Castelobruxo, na parte onde as moças estudavam... naquela época havia divisão por gênero. Elas logo perceberam que ele seria seu salvador, mas um salvador nu não era muito bom naquela época. Deram a ele as únicas roupas que tinham: uma saia rodada, uma blusa branca de abotoar e uma capa feita de retalhos. Chamaram ele de Dom Portugal, porque ele tinha sotaque português. Depois, ele marchou para o alto da torre principal, onde o boitatá dormia, ele acordou e atacou o Dom com uma rajada de chamas, o salvador empunhou sua espada contra o fogo e atirou de volta para o monstro, depois, fez com que ele olhasse no próprio reflexo. A cobrona petrificou e se tornou pó e a escola estava a salvo de novo. Bom, depois disso dizem que o Dom nunca mais foi visto, mas com certeza é só uma...

− Historinha – cortou a professora Ísis, que surgiu do nada atrás dos alunos no corredor da torre das araras. Estava caricata, como sempre, uma senhora fofinha, com roupas bordadas e um xale vermelho, um sorriso carismático e maçãs do rosto rosadas. – Agorinha, vamos direto para a salinha. Vocês estão atrasadinhos – e deu uma gargalhada fofa, caminhando graciosamente em frente, até ficar parada na porta de uma sala. Miguel e Rodrigo se entreolharam e decidiram acatar as ordens da professora. Correram até ela e entraram na sala, que estava meio vazia. Ambos contaram cinco pessoas: Oscar, Maria Flor, Daiana, Aline Nobre e Frederico Gaspar. Entraram e sentaram um de cada lado da amiga Maria. A professora Ísis saltitou sorridente para sala e, assim que fechou a porta, o sorriso deu lugar a uma carranca séria. Estava muito diferente do normal. As maçãs do rosto rosadas pareciam ter sumido, as cores vivas nas roupas se tornaram tom pastel e seus saltinhos graciosos deram lugar a um andar pesado.

A sala era normal para os padrões Castelobruxo, quase parecia uma das salas da antiga escola de Miguel, a não ser pelas prateleiras com líquidos multicoloridos e os utensílios de poções por todos os lados.

− Sou Lia, professora de Poções, Elixires & Misturas— ela disse fria – Gostaria de lembrar que a mulher que vocês conheceram lá fora, cheia de frufrus e patuás é a Isis Lia e eu sou APENAS Lia. Não esperem doçuras de mim – e então todos estranharam que ela havia formulado uma frase sem nenhum diminutivo. – Abram o livro na página cinco – sentou-se na cadeira, abriu o livrou e começou a ler em voz alta – Uma dose de lua, bebem aqueles que amam carne crua. Duas doses de sol, afugentam aqueles que fogem do anzol. Três doses de vida pulsante, para aqueles que fugiram da morte é como refrigerante. Capítulo primeiro, poções para se livrar de criaturas indesejáveis. Copiem o texto das páginas cinco, seis, sete e façam a ilustração da oito, depois que terminarem estão livres para ajudarem suas casas no carnaval.

...

Psiu – chamou Daiana. Miguel se virou para a garota, enquanto a professora Lia (Desculpa) lia um livro qualquer. – O que houve com sua amiga? – ela questionou, se referindo a Maria Flor. Miguel também havia percebido algo de estranho, ela estava muito mais quieta que o normal, nem sequer tinha dito oi. Seus olhos estavam tão dentro do livro que as letras já ameaçavam fugir com medo.

− Eu não sei – respondeu. A professora levantou os olhos e percebeu uma conversinha estranha. Dai deu de ombros e jogou seus cabelos louros para trás, abriu um sorriso e encarou Miguel.

− Decidi que esse ano estarei do lado dos Arabelos, temos tudo para ganhar dos esquisitões e dos nerds – ela disse – É como diz o lema das araras: Vemos beleza em cada detalhe. Nós vamos achar a beleza dos javalis e... como é o lema dos javalente mesmo?

− O valente não conhece a covardia – disse a professora Lia, surgindo perante a dupla completamente irritada – Dez minutos de detenção no sábado – Dai ficou estupefata.

− Mas sábado é dia livre – ela falou irritada – Pretendia conhecer a Vila das Flores – Lia deu de ombros e voltou para sua mesa.

− Problema seu. E agora são vinte minutos para a senhorita – e se sentou. Maria Flor juntou seus materiais e levou seu caderno para a professora, que, com a varinha, fez o desenho do yin e yang – Muito bem senhorita, está livre – e então, Maria pegou seu caderno e o apertou contra o peito, deixando a sala cabisbaixa sem sequer piar. Rodrigo e Miguel trocaram olhares de preocupação, assim como Oscar, que levou o caderno correndo para a professora e, depois de liberado, foi-se atrás de Maria Flor pelo corredor.

− Maria! – ele chamou. A garota se virou e o rapaz pode observar seus olhos cheios de lágrimas e preocupação – Eu... eu... eu...

− O que você quer, Oscar? – ela perguntou com uma voz esganiçada.

Antes que Oscar pudesse gaguejar novamente, Natasha surgiu, com um vestido extravagante e cheia de plumas e paetês, um chapéu de frutas estilo Carmem Miranda e o colar da Amara no pescoço.

− Inhaí gen... – antes que Naty terminasse, Maria Flor a empurrou e correu para fora da torre como um trem, sem desviar de ninguém e empurrando tudo que via. Miguel, Rodrigo, Dai e os demais alunos saíram da turma e assistiram tudo de fundo. – Ai credo, que problemática – e se foi para o meio de um grupo de pessoas fantasiadas, que tocavam e cantavam marchinhas. Miguel não deixou de observar o colar em seu pescoço, mas ele estava mais preocupado com a amiga.

− Rodrigo, eu vou atrás da Maria Flor, você vem? – questionou Miguel.

− Eu vou primeiro no nosso quarto colocar uma fantasia mais carnavalesca, te encontro na torre dos Golfinos, ok?

− Ok – e se foram, cada um para um lado.

...

Maria Flor, ao contrário de que Miguel pensou, foi-se para o lago das vitórias direto, em vez da torre dos golfinhos. Ela precisava de um tempo a sós para digerir tudo. Uma das características que a garota herdou do pai, Ubiratã, era a conexão empática: ela conseguia sentir tudo que as pessoas sentiam e isso só lhe trouxe problemas, como a grave depressão após a morte do pai, refletindo sua tristeza e a de sua mãe Sônia. Hoje ela experimentava dos piores sentimentos que absorveu no jardim dos suicidas e na sala do professor Petrônio. Seu coração doía e seus pensamentos estavam embaraçados.

Ela se sentou na grama, a margem do lago de águas cristalinas, deixou seus livros de lado, pegou sua varinha e, com ela, começou a fazer ondulações na água, a girando para esquerda e para direita, da ponta surgia um ar geladinho, que fazia bolhas brancas e passava a sensação de paz. Pequenos e coloridos peixes foram surgindo e nadando perto da garota, se divertindo no ar frio feito pela varinha.

Abriu um sorriso por alguns segundos. Não estava feliz, mas estava em paz.

Então, mais criaturas foram surgindo, vindo diretamente do fundo do lago: eram criaturinhas humanoides do tamanho de uma palma aberta. Eram multicoloridos, tinham barbatanas que reluziam com a luz e olhos curiosos. Maria sabia das ninfas do lago. Ela sabia que tais criaturas só surgiam quando as pessoas estivessem em uma guerra interna contra si mesmas. As ninfas traziam consigo um espírito capaz de apaziguar toda disputa, mesmo aquelas do coração.

Maria Flor sorriu e observou as ninfas dançando sobre seu reflexo na água. Depois, arriscou-se a esticar a mão sobre o lago e tocar em uma delas, muito porém, elas fugiram desesperadas antes que ela sequer tocasse a água. Restou apenas o reflexo, que borbulhava com o nadar rápidos das criaturinhas. Flor bufou.

− Ótimo – ela disse, dando um soco no seu reflexo que voltava a se formar sob a agua. Irritada, deixou a beirada do lago com os braços cruzados, sem olhar para trás ou novamente para o lago. Ela nem sequer havia percebido o que espreitava a suas costas: um palhaço de dois metros de altura, vestindo roupas de losangos multicoloridos, com uma máscara grega de tragédia cobrindo todo o rosto: um arlequim. Aquele que apavorou as ninfas do lago.

O arlequim esperou Maria Flor se afastar consideravelmente e, enfim, partiu atrás da garota, aproveitando para ver a própria imagem no lago, novamente.

...

Miguel zanzou pelo primeiro andar da torre dos golfinhos a procura de Maria Flor. Vagou de sala em sala, cumprimentou professores e alunos, desviou de alguns livros voadores – chegou a ganhar um galo na testa por culpa de um exemplar de Anatomia Animágica – e chegou à conclusão que ela não estava naquele andar.

Ele até iria para o segundo andar, mas dada suas experiências com os elevadores malucos da escola ele não arriscaria. Preferiu, por fim, se encostar na parede do corredor de salas e aguardar um Golfino mais experiente que lhe ensinasse sobre as peculiaridades do elevador de sua casa. Como a principal característica dos golfinhos era a erudição, Miguel esperava algo bem complexo para fazer o elevador funcionar.

Enquanto esperava, Miguel não conseguiu deixar de pensar em tudo que tem acontecido desde seu ingresso na Castelobruxo: Muiraquitãs que somem, aparecem e deixam marcas estranhas, criaturas que podiam copiar a forma humana, desmaios, vozes estranhas, personalidades misteriosas do passado e até uma morte. Ele acabava se questionando se aceitar o convite para ser um bruxo fora uma boa ideia. Ele acreditava trazer maus agouros. Era o que sempre a mãe Creuza, do candomblé, alertava a sua mãe, Glorinha, “Esse menino tem negro no destino, filha. A alma dele diz que ele vai trazer muito mal para onde for”. Glorinha não gostava dessas previsões, mas acabava acreditando. Tanto que levou Miguel para tudo quanto é religião: levou para terreiros, missas, cultos, sessões espiritas... só, realmente, desistiu de acreditar que o filho era amaldiçoado quando ele recebeu a Primeira Chamada, uma carta enviada a todo bruxo quando completam dez anos, informando de suas habilidades mágicas. A partir daí sentiu que Miguel era só diferente e que aquilo que a mãe disse fora interpretado ao pé da letra.

Miguel se perguntava se realmente havia, sua mãe, interpretado ao pé da letra, ou se realmente as previsões eram claras e todo esse “negro no destino” começasse a acontecer. Ok. Ele decidiu que era melhor tirar isso da cabeça.

Passos coloriram o ambiente silencioso da torre. Miguel se ajeitou de pé e aguardou, esperançoso, quem quer que estivesse vindo: era um rapaz alto, magro e que preferiu usar uniforme de sua casa mesmo sendo um dia livre. O infante não pode distinguir nada mais, já que o golfino estava com o rosto enterrado em um livro de álgebra. Estranho. Um bruxo que se interessava por matérias humanas (Chatas) quando podia estar aprendendo novas magias não devia ser algo muito comum.

O rapaz continuou concentrado em seu livro. Sequer desviou um pouco o rosto para que assim Miguel pudesse observar seus traços. Ele passou direto pelo infante, ignorando o fato de que ele havia dito:

− Oi. Poderia me ajudar?

O golfino entrou no elevador, apertou um dos botões do painel e uma voz eletrônica falou:

− Cite os vinte primeiros algarismos de PI.

− 3,14159 26535 89793 2384 – o rapaz disse. Sua voz era melodiosa. O elevador se fechou, fez “Plim” e subiu. Miguel estava corado por conta do vácuo que havia levado.

− Ah... bem, sempre existirá a escada – proclamou Miguel consigo mesmo, logo em seguida, caminhou para a direita na direção das escadarias. – Devia ter feito isso antes... – pensou, perante a porta, seguidamente empurrou e entrou, subindo pela escada da torre.

Assim que a porta das escadarias bateu na parede e se fechou, o elevador desceu dos andares a cima e parou no primeiro. O sino tocou e a porta se abriu. Lá de dentro saiu um palhaço de roupas largas brancas, com uma máscara de expressão melancólica do teatro grego e olhos vermelho fumegantes. Ele carregava consigo dois balões de gás em forma de coração, carmesim e macabros. Assim que deixou o elevador, foi-se atrás de Miguel, em passos largos e lentos pela escadaria.

...

Rodrigo foi-se para a torre dos Javalentes, acompanhado por Fernando, que só sabia falar de balada sertaneja e “breja” gelada. Passaram pelo pátio xadrez e, para a alegria do meio elfo, o assunto se voltou para três beldades que passavam por perto: Concórdia, Discórdia e Aline Nobre. As gêmeas andavam sincronizada, como robôs, tinham seus cabelos negros levados pelo vento e seus olhos brilhavam em ciano com o tocar da luz solar. Aline Nobre era uma das tarantavélicas, a única das tarântulas que Rodrigo conhecia, não era “diferente” como as demais, mas não deixava de ter um mistério nos olhos, negros como a noite. Sua pele era pálida, sem nenhuma corzinha, uma característica de sua casa é o amor pela escuridão e, por esse motivo, muitos tinham pele quase anêmica. Os cabelos de Aline eram castanho-mel e médios, seus lábios eram rosados. Ela cheirava a amêndoas. A fruta favorita de Fernando, que ficou hipnotizado pela moça.

− Deus... – ele sussurrou boquiaberto. Aline riu de alguma coisa que as meninas disseram. Fernando ficou cada vez mais encantado. Concordia deu uma piscadinha para Rodrigo, que só tinha olhos para Discórdia. Ele acenou para a garota, que corou de vergonha e apertou o passo junto das amigas, tirando a chance de Fernando falar algo para Aline. Seus ombros desabrocharam e seu sorriso deu lugar a uma expressão triste. Carioca deu-lhe tapinhas nas costas, tentando consolar o amigo.

− Acontece – disse o meio elfo, sorridente. Fernando se contentou e, junto do amigo voltou para a torre laranja dos javalis, passando por uma coluna de plantas no canto do pátio.

De trás dessa coluna, segundos depois, saiu uma palhaça de vestido longo de época, peruca branca vitoriana e máscara do teatro grego com um sorriso macabro de canto a canto. Seus olhos tremeluziam em escarlate. Ela retirou um leque da cintura, abriu, abanou e foi-se na torre atrás de Ro.

...

Miguel percorreu toda a torre e nada de achar Maria Flor – ou dar de cara com o Pierrô misterioso, que parecia uma sombra atrás do rapaz sem ser percebido. O sinal tocava lá fora, indicando que o intervalo havia terminado e era hora da próxima aula: Biomagia. Apesar de saber que Rafa não era uma Aldrina da vida, Miguel decidiu não querer perder outra aula. Mais tarde ele encontraria a amiga. E foi-se para a torre dos javalis, com o pierrô caminhando atrás de si em passos lentos e sem ser percebido.

Miguel chegou a torre dos javalis e se foi para a sala de Rafa, que ficava ao lado da sala de Ícaro. Entrou e o palhaço misterioso foi-se para a sala vazia a esquerda, batendo a porta com uma tremenda força contra a parede. Miguel se assustou e, no mesmo instante olhou ao redor para ver o que havia causado a batida da porta. Não encontrou, se contentou e entrou na sala.

A sala do Pavanelli não era o que Miguel esperava. Ele dividia o quarto com um a cerca de quatro dias e, nesse meio tempo, percebeu que Rodrigo era bem desmazelado. Deixava roupas espalhadas pelo chão, seus livros tinham manchas de gordura e, raramente, ele tomava banho. Sim, Miguel sabia que sua natureza élfica o fazia ter cheiro de sabonete eternamente, mas ele ainda tinha alguma sujeira sob as unhas e nos longos cabelos. Rafael, pelo contrário, mantinha sua sala bem organizada: havia metade do tamanho da sala de Amara, mas ainda sim era grande comparada as salas da antiga escola de Miguel. Haviam cinco fileiras de carteiras, com cerca de dez delas enfileiradas uma atrás da outra. O chão imitava pedra bruta e nas paredes havia uma pintura realista da natureza, com árvores, palmeiras, um riacho e animais que se moviam como em vídeos.

Seus colegas de sempre aguardavam na sala, com exceção de Maria e Rodrigo. Miguel entrou e observou um lugar na fileira do canto na parede, entre Discórdia e Karine. Ele foi, disse oi para os colegas e se sentou. Não demorou muito para que lhe cutucassem o ombro. Ele olhou para trás.

− Ei, oi – disse Karine. Miguel sorriu e respondeu. Ela parecia tímida e um pouco assustada – Eu queria pedir desculpa pelo outro dia, eu... eu... – ela parecia temer olhar nos olhos de Miguel. Sua voz estava rouca.

− Sem problemas... se quiser posso dar a entrevista que você queria mais tarde? – ela sorriu por um instante com as palavras de Miguel, mas logo murchou novamente. – O que foi? – Miguel questionou preocupado.

− Meu irmão disse que você nunca é bonito demais para ter sua imagem em um site fracassado de uma esquisitona – Miguel ficou dividido. Apesar da alegria de ter sido chamado de bonito por um dos mais interessantes rapazes da Castelobruxo, ele estava meio surpreso com o que o Tijuca havia dito a própria irmã. Karine ergueu um pouco seu rosto e Miguel percebeu um roxo em sua bochecha. Eram marcas de dedos. Ele ficou atônito. Seu galanteador colega arabelo seria responsável por aquilo? Se sim, seria uma decepção enorme.

Rafa entrou na sala antes que Miguel pudesse questionar o óbvio. Rodrigo entrou logo atrás, junto de Fernando, eles sentaram-se no fundo da primeira fileira.

− Bom dia juventude bruxa! Sou o Rafael Pavanelli e... – e antes que o professor pudesse terminar, Maria Flor entrou, cabisbaixa. Todos lhe lançaram olhares assustados e ela se sentou em silêncio na carteira da frente. Oscar, que até agora Miguel não tinha percebido, deixou seu lugar no fundo e se sentou ao lado da garota em uma das carteiras da frente. Ele sorriu para ela, mas ela ignorou. – Bem, sou o professor de Biomagia de vocês. E hoje vamos falar de... – e antes que pudesse terminar de falar, um javali, acompanhado de cinco filhotes, surgiu da mata na pintura e rodeou as quatro paredes da sala, cuinchando e fuçando no chão. Os ombros de  Rafa arquearam, ele suspirou e se preparou para falar, mas novamente fora interrompido por animais, dessa vez botos que saltavam alegremente no riacho. Os alunos ficaram maravilhados e Discórdia, que estava mais próxima da pintura, pode jurar que a agua saltou para fora da parede num dos mergulhos dos golfinhos – Tudo bem.... Hoje teremos uma aula especial na Anixarifado. Venham – e então, juntou alguns livros da mesa e se foi para fora. Os alunos foram logo atrás, com exceção de Miguel que resolveu esperar por Maria Flor e entender o que se passava com a amiga.

Ela estava desanimada. Todos já estavam longe e ela ainda juntava os livros e a força de vontade. Miguel sorriu e se aproximou.

− Tudo bem? – ele exalava conforto, segurança e sinceridade. Maria Flor, com sua empatia, podia sentir isso e, em questão de segundos, seus olhos se enxergam de água e, pela primeira vez em anos, ela chorou, sem se importar com sua promessa ou com todo o resto. Ela se encolheu em pranto e Miguel a envolveu com um sincero abraço. Os animais da pintura se aglomeraram e olharam com alegria para a dupla, que se abraçou durante duradouros minutos.... Até que Rodrigo chegou.

− Abraço em grupo! – ele falou e, instantaneamente, correu para abraçar os amigos. Maria sentia sua alegria, sua fidelidade aos amigos e, bem, suas orelhas pontudas arranhando sua orelha.

− Obrigada – ela disse com o coração mais leve, se desvencilhando do abraço e enxugando suas lágrimas – Vocês me conheceram a quatro dias e já conseguiram quebrar a maior das minhas promessas – ela riu.

− Bem, vocês me conheceram a quatro dias e no primeiro deles vocês viram o quanto sou desastrado e não desistiram de mim – disse Rodrigo, com um sorriso sincero – muitas pessoas se afastariam só de ver minhas orelhas, sabe? Ninguém gosta de meio-bruxos... mas, enfim, obrigado, muito obrigado! – Miguel e Maria se entreolharam, ergueram as sobrancelhas e abraçaram o amigo novamente.

− Vocês são as melhores pessoas que eu poderia desejar... Meio sistemáticos, mas ainda sim as melhores. Obrigado, obrigado e muitíssimo obrigado! – disse Miguel. Os amigos se desvencilharam novamente e se recomporão. – Agora vambora para esse tal de Anixarifado antes que o Rafael apareça e arraste a gente pela orelha...

− Orelhas são sagradas para elfos, pode ficar calmo que a sua vai continuar aí – disse Maria, caminhando com os amigos para a saída. Miguel apertou e rodou a maçaneta da porta.

− Vish... o problema mermo é que o Rafa é só meio elfo, não prometo que ele não... – e antes de terminar, Miguel abriu a porta e, atrás delas, jazia três palhaços macabros, os mesmos que andaram nas sombras dos três amigos pelo dia... Se bem que agora eles estavam bem visíveis.

Maria, Miguel e Rodrigo se entreolharam assustados e já sacando as varinhas.

 


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